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Samy Adghirni

Um brasileiro no Irã

Perfil Samy Adghirni correspondente em Teerã.

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O aeroporto que é a cara do Irã

Por Samy Adghirni
07/05/12 10:49

O aeroporto internacional Imã Khomeini de Teerã é um retrato abrangente do Irã atual. Quase tudo está lá: a pressão autoritária do regime, a paranoia securitária da região, a modernidade, o atraso, a relação do país com o mundo, a religiosidade, a diversidade social e cultural dos iranianos.

 

Iranianos com flores no aeroporto de Teerã

O aeroporto, conhecido nas convenções de aviação pelo código IKA, fica numa planície árida distante 60 km do centro de Teerã, na autoestrada que leva a Qom e ao golfo Pérsico. Raramente tive que andar tanto de carro para pegar avião. Muitos voos felizmente chegam e saem de madrugada, o que permite uma viagem sem trânsito até lá. No caminho, logo após sair da zona urbana, passa-se pelo gigantesco santuário que abriga a tumba do aiatolá Khomeini, fundador da República Islâmica. Em seguida, pedágio e pista de alta velocidade sem radar.

O prédio principal do IKA tem a forma de um elegante arco de metal e vidro, que se destaca no horizonte aos olhos de quem chega. Um carro da polícia moral, facilmente reconhecível pelas laterais verdes, está sempre estacionado no portão principal. A presença dos agentes parece querer lembrar às mulheres que o aeroporto ainda é território iraniano, e que cobrir cabelo, pescoço, perna e braços continua obrigatório mesmo na porta de saída do país. No sentido oposto, passageiros a bordo de aviões estrangeiros ouvem logo após a aterrissagem em Teerã uma mensagem dos comissários avisando que as mulheres devem cobrir o cabelo em cumprimento da legislação local.

Agentes à paisana estão sempre circulando pelo saguão. Costumam ser reconhecíveis pela aparência _barba rala, terno e camisa sem gravata. Como em muitos aeroportos no Oriente Médio, somente pessoas com passagem emitida têm acesso à área onde ficam os balcões de check in. Ou seja, a primeira barragem de segurança, com raio-x, detector de metais e controle de passaporte, acontece antes mesmo de despachar a bagagem. O Irã pode não ter grande histórico de ataques terroristas sofridos, mas a sombra dos inimigos numerosos exige cautela máxima. Com as malas despachadas, os viajantes geralmente voltam à área geral para um último abraço nos parentes e amigos.

Afetuosos e emotivos, os iranianos são muito mais próximos dos brasileiros que dos europeus. Os portões de embarque e de chegada vivem cheios de gente chorando, falando alto e se abraçando. Há pessoas de todos os tipos, de barbudões e mulheres de chador (véu integral) até senhoras elegantes e jovens bombados com cabelo espetado de gel. O curioso é que a polícia moral, tão atenta do lado de fora, parece fazer vista grossa para o incessante contato físico entre homens e mulheres, em tese proibido em público. Já vi até selinho entre namorados que se reencontram.

A tara dos iranianos por flores se nota em cada canto do saguão. Difícil ver uma família que não esteja levando um enorme buquê para o ente querido de volta ao país. As áreas de chegada parecem velórios com tanto arranjo nas mãos das pessoas. As duas pequenas floriculturas do aeroporto vivem cheias.

O saguão se estende por um corredor de cerca de 200 metros, com um terminal em cada ponta. O ambiente é sóbrio, leve e moderno, com painéis eletrônicos coloridos que trazem informações sobre os voos. No centro do corredor há uma porta com dezenas de pares de sapato do lado de fora. É a mesquita principal do aeroporto, sempre movimentada.

Já o comércio se resume a agências bancárias, lanchonetes ruins e estandes precários _de frozen yogurt a venda de TVs de plasma. Pior mesmo é o banheiro, impraticável para ocidentais que não abrem mão da privada. No IKA quase só existe o estilo turco, ou persa. Buraco no chão com duas bases laterais para apoiar os pés.

Mas o que mais chama minha atenção é a quantidade de voos e a diversidade dos destinos. O aeroporto Imã Khomeini é a prova viva de que o Irã está longe de ser tão isolado como alguns gostariam. Muitas companhias europeias têm voo direto para Teerã. A alemã Lufthansa lidera esse nicho com um voo diário vindo de Frankfurt. Avião grande, sinal de rota rentável. A holandesa KLM e a Alitalia também voam várias vezes por semana para o Irã. Até a pequena Austrian Airlines tem rota iraniana _é a linha usado pelos inspetores nucleares da ONU para voar de Viena, sede da AIEA, a Teerã. Companhias de países próximos, como Emirates, Turkish ou Qatar Airlines, oferecem uma ponte aérea com vários voos diários. Bem diferente de lugares como Iêmen, Iraque, Afeganistão, Somália ou Coreia do Norte, onde pouquíssimas companhias operam.

De Teerã é possível chegar sem escala a quase todas as principais capitais europeias e a destinos como Malásia, China, Japão, Rússia e Tailândia (paraíso dos turistas iranianos). O único voo para a América Latina, que ia a Caracas, foi suspenso em 2010 por falta de passageiros.

Também surpreende o número de ocidentais que desembarcam a cada instante em Teerã. Há grupos de turistas em excursão, jovens mochileiros, acadêmicos e executivos de multinacionais. Já vi muito motorista com plaquinha de empresas como Siemens ou Bosch à espera de viajante gringo. Sinal de que, apesar das sanções e da pressão internacional, o Irã ainda faz negócios com europeus.

A história do aeroporto por si só já é uma aula sobre Irã contemporâneo. Começou a ser construído pelo xá Reza Pahlevi para ser uma cópia do aeroporto de Dallas, nos EUA. Um consórcio americano estava com contrato na mão quando veio a Revolução Islâmica de 1979, engavetando o projeto durante anos. Teerã continuava usando o aeroporto Mehrabad, a oeste da capital. No decorrer dos anos 80, o regime fez uma parceria com engenheiros franceses para retomar a obra, mas o projetou avançou pouco, até ser entregue de vez a empresas iranianas.

O primeiro avião pousou no Imã Khomeini em 2004. Hoje o aeroporto só recebe voos internacionais, enquanto o pequeno e envelhecido Mehrabad é o epicentro da vasta malha aérea nacional.

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Diplomatas e seus deslizes

Por Samy Adghirni
25/04/12 18:22

Ao saber que eu era brasileiro, o vendedor de produtos de cozinha num bazar de Teerã perguntou: “como é essa história do diplomata iraniano no Brasil que fez coisa errada com crianças?”.

A partir dali não restou dúvida: o caso envolvendo um alto funcionário da Embaixada do Irã acusado de bolinar meninas com idade entre 9 e 15 anos numa piscina de Brasília já está na boca do povo em Teerã.

A mídia estatal manteve silêncio, mas o incidente bombou na internet e nos canais de TV por satélite emitidos por iranianos na Europa e em Dubai.

Contei ao vendedor o que eu sabia, e ele emendou: “aquilo foi muito, muito errado. Peço desculpas em nome do meu país”.

Em várias outras ocasiões nos últimos dias fui interpelado sobre o ocorrido. Hoje ouvi um iraniano tomar partido em favor do acusado, dizendo que o diplomata talvez estivesse simplesmente ensinando crianças a nadar.

O assunto também caiu no burburinho das rodas diplomáticas em Teerã. E todo o mundinho das embaixadas se lembra de como o regime reagiu alguns anos atrás, quando um diplomata suíço foi flagrado em pleno amasso com uma iraniana numa barraca. O funcionário foi declarado persona non grata e teve que sair do país por manter relações íntimas num lugar público com uma mulher com quem não era casado.

O fato é que diplomatas sempre aprontaram, independentemente de sua origem, status ou religião. Em meados dos anos 90, o número dois da Embaixada da França em Brasília foi denunciado por fazer sexo com meninos de rua, a quem ele supostamente fornecia droga, segundo alguns relatos. Teve que voltar para Paris. Em 2007, Israel chamou de volta seu embaixador em San Salvador depois que o sujeito foi encontrado fora da embaixada bêbado, com as mãos amarradas e usando apenas roupas de sadomasoquismo.

Mais ou menos graves, escorregões de diplomatas geralmente não são punidos devido à imunidade assegurada pela Convenção de Viena (1961). O documento que norteia as regras da vida diplomática afirma que funcionários de Estados ou organismos estrangeiros em missão no exterior não podem ser julgados nem condenados. O texto ressalta que os diplomatas devem respeitar as leis do país que os recebe, mas prevalece a certeza de não ter problemas com a Justiça.

O problema maior é quando deslizes individuais de comportamento se intrometem nas relações entre Estados. O governo brasileiro ficou furioso com a reação inicial das autoridades iranianas. A embaixada em Brasília disse que o incidente era fruto de um mal entendido acerca de “diferenças culturais”. Ninguém entendeu, já que no Irã homens e mulheres não podem sequer ficar juntos na piscina. A trapalhada reforça uma tese amplamente difundida: o Irã precisa com urgência de uma boa assessoria de relações públicas.

O Brasil deixou claro o que espera do Irã no caso presente: que seja formalizada a retirada do diplomata. Ele embarcou às pressas para Teerã desde que a denúncia foi destacada na imprensa, mas continua oficialmente credenciado junto ao Itamaraty. Se o Irã não tornar definitiva a sua saída, o Brasil poderá declará-lo persona non grata, o que causaria um embaraço generalizado nos contatos entre funcionários dos dois países.

A relação Brasília-Teerã já andava esfriando desde o início do governo Dilma, que suspendeu os esforços do Brasil na questão nuclear iraniana e parece menos tolerante que o antecessor Lula com a má reputação do Irã em matéria de direitos humanos. Mas Mahmoud Ahmadinejad quer participar da cúpula Rio + 20 e há de se esperar que seu governo se esforçará para aparar as arestas com o anfitrião.

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"Não há diversão no islã"

Por Samy Adghirni
11/04/12 08:45

Muro com imagem do aiatolá Ruhollah Khomeini

Meses depois de fundar a República Islâmica do Irã, em 1979, o aiatolá Ruhollah Khomeini fez um discurso em cadeia nacional de rádio que definiu boa parte do padrão social e cultural promovido até hoje pelo regime.

Khomeini declarou o seguinte:

“Alá não criou o homem para que ele pudesse se divertir. O objetivo da criação é pôr à prova a humanidade por meio de dureza e oração. Um regime islâmico deve ser sério em todos os aspectos. Não há piadas no islã. Não há humor no islã. Não há diversão no islã. Não pode haver diversão e alegria naquilo que é sério. O islã não permite nadar no mar e se opõe a seriados de rádio e televisão. O islã, entretanto, permite tiro ao alvo, andar a cavalo e competição”

A fala ecoa em todos os aspectos da vida no Irã de hoje. Difícil achar por aqui alguém que não conheça esse discurso. Mesmo duas décadas após a sua morte, Khomeini continua onipresente _para satisfação de uns e desgosto de outros. A cara de mau do aiatolá espalhada por incontáveis outdoors e murais espalhados nos mais diversos recantos do país parece vigiar o respeito às regras que ele impôs.

A lei iraniana não estipula abertamente o veto ao humor e à diversão. Mas a Revolução Islâmica aboliu bares, álcool, discotecas, shows e festas em lugares públicos. Música é área reservada aos homens, que só podem cantar ou tocar instrumentos após submeter suas obras à avaliação do regime.

Dias atrás o governo anunciou que proibirá aulas de dança e canto nos jardins de infância por considerar as práticas “imorais” (reportagem completa na Folha de hoje, só para assinante). Em compensação, as crianças desde cedo aprendem tudo sobre a temática mórbida dos mártires, obsessão do regime. Os principais feriados religiosos têm a ver com as sanguinolentas mortes dos imãs Ali e Hussein, descendentes do profeta Maomé que originaram a facção xiita dentro do islã. Em todas as cidades há murais com os rostos sérios, geralmente reprodução de fotos de identidade, de soldados mortos na guerra contra o Iraque do então aliado do Ocidente Saddam Hussein (1980-1988).

Nos primeiros anos da revolução as pessoas praticamente só usavam roupas escuras. Mulheres evitavam sair de casa maquiadas. Hoje em dia muitas iranianas andam nas ruas enfeitadas até as unhas. Há inclusive véus e roupas em tons berrantes, mas que ainda destoam do preto predominante na multidão. Os escassos programas de humor no rádio e na TV são caretas ao extremo. Conversas sobre pegação e namoros só ocorrem entre amigos íntimos. Nenhum taxista se atreveria a comentar com um passageiro sobre a belezura que acaba de atravessar a rua.

As cidades são todas austeras e sisudas. Os prédios quase só têm tons marrons ou cinzas, embora em Teerã o atual prefeito tenha mandado instalar dezenas de painéis coloridos abstratos. Os poucos outdoors publicitários evitam mostrar pessoas e quando o fazem, os eventuais sorrisos são pra lá de contidos.

Mas esta ideia de um islã incompatível com a alegria de viver é amplamente rejeitada. O humor e as artes, aliás, são características comuns em quase todas as sociedades muçulmanas, do Marrocos à Indonésia, passando por Senegal e Egito. Prevalece na maioria dos países de fé islâmica a cultura da festa e da ironia, sob formas muito diferentes, é claro. Sim, há outros lugares ultrapuritanos além do Irã, como Arábia Saudita e Paquistão, mas a felicidade cabe perfeitamente no islã.

Alguns teólogos sustentam até que o Corão é muito mais bem resolvido do que a Bíblia ou a Torá no que diz respeito aos prazeres da vida. No islã, a vida e os sentidos são um presente de Deus aos homens e devem ser aproveitados sem culpa, desde que de forma lícita. O sexo, inclusive, está longe de ser um tabu na fé islâmica, segundo o sociólogo tunisiano Abdelwahab Bouhdiba, autor de “A sexualidade no islã” (lançado no Brasil pela editora Globo). Bouhdiba sustenta que o homem e a mulher foram feitos para dar prazer um ao outro uma vez casados. Machismos à parte, eis um trecho pouco conhecido do Corão: “Vossas mulheres são, para vós, como campo lavrado. Então, achegai-vos a vosso campo lavrado, como e quando quiserdes.” (2:223).

Muito estudiosos dizem que o islã em sua forma mais rígida só cresceu e se propagou na era moderna. Afirmam ainda que pensadores, teólogos e clérigos muçulmanos de antigamente eram muito mais hedonistas e liberais que os atuais. Há abundantes relatos de viajantes islâmicos dos séculos passados que voltavam para casa espantados com a intransigência moral que dominava então as sociedades europeias.

Essas contradições estavam presentes até no espírito de Khomeini. O mesmo homem que decretou não haver diversão no islã também afirmou: “o fato de eu ter dito alguma coisa não significa que eu deva ficar preso ao que eu disse”.

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A "BBC" iraniana

Por Samy Adghirni
03/04/12 13:15

Apresentadora do canal iraniano Press TV

O leiaute é moderno e sóbrio. A imagem na tela tem alta definição, em roupagem predominantemente azul. O inglês dos apresentadores e repórteres oscila entre o mais puro sotaque britânico e o jeitão americano, passando por variações africanas e asiáticas. Notícias, programas e entrevistas se sucedem num ritmo ágil e preciso, 24 horas por dia.

A emissora Press TV, com sede em Teerã, se parece com qualquer outro canal noticioso internacional, não fosse por dois aspectos fundamentais: as jornalistas cobrem o cabelo com o véu islâmico e a linha editorial vai na contramão de quase tudo que se vê na mídia ocidental.

Transmitida por satélite em boa parte do mundo (mas não no Brasil), a Press TV é uma das principais armas de propaganda do regime iraniano. O estilo dinâmico e incisivo não esconde uma rígida agenda política e ideológica. Para saber qual o pensamento dominante na cúpula do governo do Irã, basta sintonizar o canal.

Aquilo que é conhecido no Ocidente como “Primavera Árabe”, por exemplo, é tratado na emissora sob o título “Despertar Islâmico”. O argumento óbvio é que líderes e partidos islamitas são os grandes vencedores das revoltas árabes até agora. A explicação martelada pela Press TV é a seguinte: as populações da região querem se libertar de seus ditadores laicos para viver sob um sistema religioso, igualzinho ao que ocorreu no persa Irã há 33 anos. Por isso Teerã apoia com tanta ênfase os levantes populares que se alastram.

Nenhuma revolta árabe merece tanto a atenção da TV quanto à do Barein, onde uma monarquia sunita pró-Ocidente reina sobre uma maioria de xiitas inspirados pelo Irã. Qualquer escaramuça entre manifestantes antirregime e forças de segurança vira abertura de telejornal e acaba retratada como repressão sangrenta. A notável exceção no apoio aos levantes árabes é a Síria, aliada incondicional do Irã.

Na versão da Press TV, a Síria sofre uma onda de ataques por parte de terroristas estrangeiros que servem interesses do Ocidente. Já Bashar Assad é, nos relatos da emissora, um estadista que soube ceder e lançar grandes reformas após compreender as aspirações de seu povo. De qualquer maneira, a guerra na Síria aparece pouco na programação.

Em compensação, a emissora é obcecada pelo conflito israelo-palestino, tratado de forma passional em favor dos palestinos que, na linguagem oficial, vivem sob o julgo ocupante do “regime sionista”. A cada dia há relatos abundantes das supostas injustiças cometidas por Israel contra cidadãos palestinos: prisões arbitrárias, bloqueio econômico e sanitário, barreiras à livre circulação de pessoas… Como o Irã não reconhece Israel, o conflito é sempre apresentado sob o mesmo ponto de vista. O curioso é que a Press TV foca boa parte da cobertura na faixa de Gaza, governada pelo grupo islâmico Hamas, apoiado e financiado por Teerã. Já a Autoridade Nacional Palestina, dominada pelo secular Fatah e dirigida na Cisjordânia pelo presidente Mahmoud Abbas, é quase sempre ignorada. Interlocutor preferido do Ocidente, Abbas é visto pelo Irã como um líder fraco e submisso aos interesses de Israel e EUA.

A ideia de um Ocidente decadente e vítima de sua própria arrogância norteia a programação. A crise econômica nos EUA e na Europa está em todos os telejornais. A Press TV adora o Occupy Wall Street e deu grande destaque à recente greve geral na Espanha. Hoje mesmo vi uma reportagem que dizia haver um aumento no número de suicídios de empresários italianos arruinados pela crise. Mais cedo assisti a uma matéria apontando as supostas arbitrariedades da polícia australiana na recente morte do brasileiro Roberto Laudisio, ignorada por outros canais internacionais.

A emissora iraniana tem um programa chamado “American Dream”, que mostra o lado mais sombrio dos EUA, incluindo racismo e pobreza. Dia desses foi divulgada uma longa reportagem sobre as condições miseráveis dos moradores de rua de Los Angeles.

Na grade há ainda o “Double Standards”, que denuncia as contradições diplomáticas do Ocidente. Exemplo clássico: EUA e Reino Unido exigem respeito aos direitos humanos e à democracia mas apoiam a medieval e implacável monarquia saudita.

Entre os demais programas da TV há um sobre britânicos convertidos ao islã e outro que defende os direitos das mulheres _vítimas da violência, trabalhadora escravas, presidiárias etc.

Uma das coisas que mais impressionam é a estrutura da Press TV. O canal tem correspondentes nos EUA, Reino Unido, Itália, Espanha, Síria, China, Argentina, Itália, Espanha, Austrália, Nigéria, África do Sul e até na Somália, onde veículos estrangeiros são raríssimos. Há repórteres de incontáveis nacionalidades, incluindo vários americanos. A TV paga bem seus funcionários e colaboradores. Quando cobri a queda de Trípoli, em agosto, conheci um cinegrafista francês que dizia ganhar mais de 300 euros por dia de trabalho com a Press TV. O canal France 2, diz o colega, pagaria menos da metade pela mesma diária. Até meses atrás a TV ainda buscava um correspondente no Brasil.

Defensores da Press TV dizem que o Ocidente é hipócrita ao acusá-la de ser pró-regime iraniano enquanto outras emissoras também são financiadas por Estados, como a britânica BBC, a francesa France 24 e a Al Jazeera, do Qatar. Segundo essa visão crítica, nenhum canal bancado por governos pode se dar ao luxo de ser totalmente independente.

Mas a credibilidade da Press TV anda mesmo muito baixa. O canal, que tem também versões em árabe (Al Alam) e espanhol (Hispan TV), é tido por muita gente como mero porta-voz do regime, sem qualquer preocupação com o equilíbrio noticioso e editorial. Comenta-se que a emissora esforçou-se, logo após a sua fundação, em 2007, para exercer um jornalismo crítico e razoavelmente isento. Mas a repressão que calou a oposição iraniana após a controversa reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad dois anos depois aniquilou vozes dissonantes dentro e fora da emissora. Hoje a Press TV é criticada inclusive por servir de palanque a revisionistas americanos e europeus do Holocausto judeu.

O site da emissora: www.presstv.ir

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A maior rua do Oriente Médio

Por Samy Adghirni
28/03/12 09:30
 

Um dos raros pontos em que a rua Valiasr é mão dupla

Teerã é cortada de sul a norte pela rua Valiasr, a mais extensa em todo o Oriente Médio e um dos principais pontos de comércio e lazer na capital iraniana.

A Valiasr, ou Vali Asr, traduz a alma e a diversidade desta megalópole de 12 milhões de habitantes, como pude comprovar dia desses ao percorrer de ônibus seus 17 km de comprimento. O trajeto entre a planície do sul popular-conservador e as ladeiras íngremes do norte abastado-moderninho durou 55 minutos graças ao corredor exclusivo. De carro levaria até três horas, dependendo do trânsito.

Embarquei no início da linha, na estação ferroviária central. Ônibus vazio e razoavelmente confortável. Sentei na janela, bela luz de fim de tarde. Os primeiros quilômetros parecem uma rua qualquer em alguma cidade decadente do interior. Dos dois lados da pista, prédios decrépitos com no máximo dois andares. As lojas são em sua maioria pequenas e toscas _quinquilharias, verdureiros, padarias, vendinhas de eletrônicos etc. Há algumas lanchonetes com aspecto insalubre. As montanhas Alborz erguem-se distantes ao horizonte.

A pista tem quatro faixas: duas em sentido oposto para os ônibus e duas em mão única para os demais veículos. Em quase toda a sua extensão, a rua sobe numa elevação suave mas constante. Calmo nos primeiros quarteirões, o tráfego se intensifica na medida em que nos aproximamos do centro. O ônibus também aos poucos se enche. O comércio nesta zona ainda tem ares populares, mas as lojas já são um pouco maiores. Há muitas vendas de roupa barata e material esportivo. Bastante gente na calçada. A maioria das mulheres usa chador, o véu geralmente preto que cobre todo o corpo, predominante nos meios religiosos. Muitos homens ostentam a barba rala típica de quem é devoto e/ou apoia o regime.

O centrão é um formigueiro humano, com espécimes de todos os tipos circulando entre bancos, lojas de roupa, agências de viagem e shoppings de eletrônicos. Os prédios são mais modernos e mais altos. A Valiasr atravessa duas das principais artérias da capital : a sempre abarrotada Enghelab Eslami e a Taleghani _onde fica a antiga embaixada americana cuja invasão, em 1979, por estudantes furiosos com o asilo dado pelos EUA ao xá recém deposto levou à ruptura entre Teerã e Washington. No barulhento coração de Teerã também há mesquitas, cinemas multiplex e hospitais de vários tipos.

O marco para o início do norte de Teerã é a praça Vanak, um balão caótico onde quatro ruas se cruzam. O lugar é cheio de shoppings e escritórios. Muitos passageiros descem do ônibus aqui. A partir de Vanak a capital vira um lugar opulento e arrumado. Quanto mais ao norte, mais luxo. Há grandes lojas: Rolex, Chopard, Mercedes-Benz… A Valiasr em sua reta final tem fileiras de árvores nos dois lados da pista, além de restaurantes cheios de pompa e alguns dos melhores hotéis na cidade. As calçadas são bem mais vazias do que no centro, e a maioria das mulheres se veste à moda ocidental, com véu jogado de forma displicente por cima do cabelo. Só o trânsito que continua um horror para quem está de carro. A Valiasr termina na praça Tajrish, onde há um mercadão incontornável para turistas. As montanhas Alborz, que alguns quilômetros atrás eram apenas um quadro no horizonte, agora formam uma parede majestosa que se ergue algumas ruas acima da praça Tajrish.

A rua foi construída pelo xá Reza Pahlevi (1877-1944) e mudou de nome após a Revolução Islâmica de 1979. Passou a se chamar rua Mossadegh, em homenagem ao premiê secular democraticamente eleito que nos anos 50 foi derrubado por um golpe americano-britânico. Virou Valiasr anos depois da revolução, adotando o nome de um personagem central na mitologia xiita.

O site da Prefeitura de Teerã diz que autoridades estão preparando a papelada para pedir à Unesco o reconhecimento da Valiasr como patrimônio cultural da humanidade.

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A arte do piquenique iraniano

Por Samy Adghirni
22/03/12 17:29

Com a chegada do sol e temperaturas mais amenas, os iranianos acabam de iniciar a temporada do piquenique, prática na qual parecem imbatíveis.

O fenômeno ainda não está ocorrendo na escala do verão, depois de junho, quando vira febre nacional. Mas a coincidência das férias escolares pelo Ano Novo persa com a chegada da primavera já está levando muita gente a estender toalhas ou cobertores na grama dos parques e recantos de natureza em Teerã e demais cidades.

Há rodas de todos os tamanhos com gente de todos os tipos. Já vi grupos de estudantes com visual moderninho que parecem usar o piquenique como pretexto para paqueras, gargalhadas e fuxicos. Compreensível num país onde bares e discotecas são proibidos. Mas os jovens precisam conter o assanhamento porque a polícia moral dobra a vigilância nesta época em que as pessoas aproveitam o bom tempo para se divertir fora de casa. A pé ou de moto, policiais circulam entre árvores e matinhos à caça de comportamentos ilícitos, como véus femininos mal colocados ou contato físico entre homens e mulheres não casados.

Também há piqueniques de casais, uns com pinta ocidental e outros claramente mais religiosos _ele com barba e anéis de oração nos dedos da mão, ela com chador, um tipo de véu geralmente preto que cobre o corpo todo.

Mas quem realmente ergueu o piquenique ao status de arte coletiva são as famílias. Dia desses perambulei pelo bem cuidado parque Mellat, pertinho de casa, e vi uma cena que parecia conter a alma desta prática. Umas doze pessoas _entre as quais penso ter visto pai, mãe, tios, avôs e netos_ estavam sentadas na grama ao lado da alameda de caminhada, em volta de um verdadeiro banquete. Havia panelas de arroz, senti cheiro de carne e vi vasilhas de saladas, frutas e caixas de doces. Tudo espalhado em toalhas estendidas umas ao lado das outras. As pessoas comiam em pratos de vidro e com talheres de metal. Num canto estava a indispensável bandeja do chá, com copos de vidro e chaleira fumegante. Já ouvi que os iranianos ficam chocados com os sanduíches e pratos de plásticos dos piqueniques ocidentais.

Diante de certeza de que a chuva só voltará no próximo semestre, refeições ao ar livre podem durar horas e resultar às vezes em fusão momentânea de famílias. É comum os participantes oferecerem doces e frutas a quem estiver passando por perto.

Parques são a melhor opção. Ninguém paga para entrar e a grama predominante no Irã é a mais adequada para o piquenique: rasa, macia e fininha, muito semelhante à da Europa. Mas hoje mesmo vi uma família tranquilamente instalada em cima de uma rocha de montanha, num bairro de Teerã cravado na cordilheira Alborz. Adeptos mais ferrenhos às vezes viajam horas de carro para fora das cidades em busca de um cantinho discreto e sossegado de deserto ou floresta.

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Ano Novo e sincretismo no Irã

Por Samy Adghirni
17/03/12 17:24

O Irã está mergulhado num clima de alegria, cordialidade e compaixão. O país vive a efervescência que antecede o dia mais esperado pela população: o Ano Novo Persa, conhecido como Nowruz. A virada ocorre na próxima terça-feira (20.mar), quando começam ao mesmo tempo o ano persa de 1391, a primavera e as férias escolares.

A celebração do Nowruz revela muita coisa sobre a complexidade cultural dos iranianos, mostrando inclusive o quanto eles formam um povo com pouca ou nenhuma semelhança com os vizinhos árabes, turcos, curdos etc.

Primeiro, é curioso notar que esta maneira de contar os anos praticamente só existe no Irã, que tem população e governo islâmicos mas não segue o calendário muçulmano tradicional (atualmente em 1433). O ponto de partida é o mesmo: o ano de 622 D.C, quando o profeta Maomé migra da Meca para Medina. Mas os persas adotaram em seguida um calendário solar, enquanto os árabes mantiveram e espalharam ao longo dos avanços islâmicos na Ásia e na África uma contagem lunar, com anos mais curtos. Daí a discrepância nas contas.

Mais curioso ainda é constatar a prática até hoje generalizada de rituais e tradições que remontam ao zoroastrismo, fé local monoteísta e multimilenar que não tem nada a ver com o islã. Dois hábitos com jeito de mandinga me deixaram atônito. Na noite da última quarta-feira do ano persa, as pessoas fazem fogueiras nas ruas e pulam por cima dizendo algo como: “minha palidez amarela é tua, tua ardente luz vermelha é minha”. Praticamente um culto ao fogo em pleno país muçulmano.

Iraniana pula fogueira durante a celebração do “chaharshanbe suri” (última quarta-feira do ano persa) em Teerã (Vahid Salemi – 14.mar.12/Associated Press)

Outra prática meio pagã é o Haft Sin, que significa literalmente os “sete S” e visa trazer sorte no Ano Novo. Consiste em montar em casa antes do Nowruz uma mesa com sete produtos cujo nome começa com o equivalente da letra “S” no idioma farsi. A lista padrão inclui maçãs para simbolizar saúde e beleza e um frasco de vinagre que representa paciência e sabedoria, entre outros objetos. Nada disso consta no Corão ou nos Hadiths, os relatos dos companheiros de Maomé.

Alguns clérigos mais conservadores abominam tudo isso dizendo que se trata de superstição, algo incompatível com o islã. Mas um amigo iraniano fotógrafo de uma agência de notícias gringa, sujeito xiita devoto, me explicou que a maioria dos iranianos não vê esses costumes como algo religioso. “Pular a fogueira e montar uma mesa com os sete S é tradição ancestral, faz parte da nossa cultura. Não é porque veio antes do islã que é incompatível com o Corão”.

Bem resolvidos com suas raízes sincretistas, os iranianos ficam eufóricos com o Nowruz. Teerã vibra num clima idêntico ao do Natal ocidental, com lojas e shoppings abarrotados de gente comprando presentes para amigos e parentes. Logo mais a cidade ficará esvaziada, com quase todo mundo viajando. As estradas já estão atoladas de engarrafamentos. Rodoviárias e aeroportos viraram formigueiros de gente.

Quando o movimento das partidas estiver encerrado, talvez já neste domingo (18.mar), Teerã se transformará numa agradável cidade sem trânsito.

O cenário já melhorou muito com a repentina chegada dos dias de sol. Há uma semana a neve ainda batia na janela da minha casa. Hoje já saio sem o casacão de inverno que eu usava desde minha chegada por estas bandas, em dezembro. Chamam isso de “milagre de Nowruz”. Me disseram que nos próximos dias as flores cobrirão parques, jardins e canteiros.

A mania tão iraniana de dar presentes atinge extremos nesta época. Tenho ganhado brindes de vários comerciantes, inclusive do doleiro, que me deu uma agenda com capa de couro. Até o regime me mandou um bonito calendário com delicados votos de felicidade. Minha assistente também recebeu. Colegas jornalistas veteranos no Irã dizem que eu preciso retribuir, no mínimo, com uma caixa de chocolates às moças que servem de interface entre o governo e a mídia estrangeira. 

As pessoas também costumam ficar mais genorosas com os necessitados, para que todo mundo possa desfrutar de uma passagem de ano digna.

Nowruz é ainda sinônimo de 13º salário, e nessa eu fui pego de surpresa. Tive que reorganizar minhas contas para pagar o devido mês adicional para a assistente, a professora de farsi e a diarista, que também ganham folga.

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O trânsito sem lei de Teerã

Por Samy Adghirni
13/03/12 09:19

Se você acha difícil dirigir em São Paulo, Salvador ou no Rio de Janeiro, é porque não conhece Teerã. O trânsito da capital iraniana dá vertigem de tão infernal. Isso se deve, na minha humilde leitura, a dois fatores fundamentais: anarquia generalizada e lentidão causada pelo desesperador excesso de veículos.

A circulação parece norteada por uma única regra: preferência para quem entrou primeiro. Como as faixas de circulação não existem, motoristas vão avançando nas ruas em função dos espaços que se criam na medida em que os veículos se deslocam. Se o motorista da frente estiver parado, o certo por aqui é jogar o volante para o lado onde couber a dianteira do meu carro.

Jovens iranianos atravessam rua movimentada em Teerã (Kamran Jebreili - 29.fev.12/AP)

A mesma regra vale para as preferências nos balões e retornos. Quem entrar primeiro tem prioridade, e fim de papo. O sinal de seta quase nunca é usado. Mesmo acionado, teria pouca utilidade diante das constantes manobras bruscas de uns e de outros. Quase todos os faróis têm painel eletrônico com contagem regressiva. Uns são respeitados e outros, ignorados sem culpa. As mãos de circulação são respeitadas apenas nas vias principais, onde o volume de carros é tamanho que ninguém se atreveria a navegar no contrafluxo. Mas quanto menor a via, maior o caos. As placas de sentido proibido parecem sevir apenas para enfeite. Pior mesmo são as motos, que circulam até nas calçadas e corredores de ônibus.

Bate-bocas são frequentes, mas só uma vez vi uma briga, dois homens trocando socos no meio de um cruzamento, com seus carros parados e com as portas abertas, atrapalhando todo mundo.

O que mais me impressiona é a quantidade relativamente baixa de acidentes e atropelamentos que presenciei nas ruas de Teerã. E olha que passo os dias batendo perna por aí.

 

Motoristas não respeitam a sinalização em Teerã (Vahid Salemi - 25.fev.12/AP)

 

A ruazinha Zinat Alley, onde moro, situada numa área residencial ao norte de Teerã, traduz em microescala o espírito que reina no trânsito de Teerã. A via é uma descida íngreme e muito estreita, pode onde mal passa um carro. Até hoje não entendi qual é a mão da Zinat Alley. Moradores estacionam de qualquer jeito nos dois lados da rua, que sequer tem acostamento. Imaginem o que acontece quando dois motoristas em sentido oposto se encontram na ladeira estreita sem mão definida. Se algum cavalheiro ao volante fizer a gentileza de recuar para dar preferência à moçoila que vem no sentido contrário, ele terá de suar frio para subir de ré a apertada ladeira _e rezar para que nenhum outro carro apareça no caminho. Em dias de neve, como ontem, surge o agravante do gelo no asfalto.

Filósofos de plantão dizem que o trânsito é maluco desse jeito porque os iranianos o utilizam para extravasar as várias restrições em suas vidas, transformando carros e ruas num espaço de liberdade individual sem limite.

Os iranianos de fato não parecem se incomodar com essa confusão surpreendentemente silenciosa, com pouquíssimo uso das buzinas.

O que incomoda mesmo são os engarrafamentos a toda hora e em todo lugar. Quando para a avenida Valiasr, a artéria que corta Teerã de sul a norte, motoristas simplesmente desligam o motor. Há vias expressas, viadutos e túneis, mas tudo fica impraticável a partir das 16h. Cansei de ficar preso no trânsito, sentado no banco do carona de algum taxista que insiste em puxar papo apesar de eu saber pouco mais de três frases em farsi. Para (tentar) relaxar nessas horas, costumo ficar olhando para as enevoadas montanhas Alborz que dominam Teerã. Quando o tempo permite, abro a janela do carro, sem me preocupar com assaltos ou arrastões, coisas inexistentes por estas bandas.

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O Dia da Mulher no Irã

Por Samy Adghirni
08/03/12 12:06

O Dia da Mulher existe no Irã, mas a data difere do 8 de março celebrado no Ocidente. Aqui a festa ocorre no quinto mês do calendário islâmico lunar, para coincidir com o aniversário de nascimento de Fatima Zahra, filha do profeta Maomé. Em 2012, a data equivalente no calendário gregoriano será entre o fim de abril e o início de maio.

Algumas iranianas rejeitam a data islâmica e comemoram no mesmo dia que nos países ocidentais, obviamente sem sair da esfera privada. Críticos e críticas dizem que a celebração oficial das autoridades de Teerã é inócua, já que o Dia da Mulher é celebrado ao mesmo tempo que o Dia das Mães. Isso prova, na visão antirregime, que os clérigos no poder só conseguem enxergar a mulher como dona de casa e reprodutora. É fato que a mulher iraniana hoje não tem os mesmos direitos que em outros lugares, mas a realidade do dia a dia é cheia de nuances.

Na época da monarquia secular do xá Mohamed Reza Pahlevi, lá pelos anos 60 e 70, o Irã era um dos países mais ocidentalizados do Oriente Médio. Mulheres não enfrentavam nenhuma restrição para se vestir e frequentavam bares onde bebida alcoólica era liberada. Poligamia, casamento adolescente e segregação na escola eram combatidos pela monarquia. O uso do véu chegou a ser proibido, o que enfureceu inclusive mulheres nas camadas mais conservadoras. Foi na época do xá que as iranianas alcançaram pela primeira vez cargos importantes no governo.

Mas a repressão política era implacável, mais acirrada do que hoje na opinião de muitos iranianos. O regime tinha naquela época a polícia política tida como a mais cruel e sanguinária do mundo: a Savak, treinada pela CIA. Apesar das inúmeras restrições impostas pelo atual governo de Teerã, hoje em dia ninguém tem medo de falar publicamente mal dos líderes políticos, o que era impensável nos tempos da Savak.

Jovens iranianas conversam em rua de Teerã (Morteza Nikoubazl - 26.fev.12/Reuters)

A Savak não poupava as mulheres que participavam da oposição clandestina ao xá. Muitas foram presas, torturadas ou/e mortas. Mesmo assim, a ala feminina teve papel chave na revolta popular que varreu o regime do xá Reza Pahlevi, em fevereiro de 1979. Quando o aiatolá Ruhollah Khomeini voltou de seu exílio nos arredores de Paris para instaurar a República Islâmica, a expectativa era de que tudo no país iria melhorar. Mas muitas mulheres sentiram uma regressão nos seus direitos.

Usar o véu passou a ser obrigatório, assim como cobrir braços, ombros e pernas. Contato físico entre homens e mulheres foi vetado em locais públicos. Não pode apertar a mão, muito menos dar beijinho ou abraçar. Ônibus, escolas e até centros de votação têm espaços para cada gênero. Vários clérigos incentivaram a mulher a não trabalhar, mas Khomeini lhes garantiu esse direito. Mulheres foram banidas de estádios e atletas iranianas só podem competir se respeitarem as regras indumentárias, mesmo em campeonatos no exterior. Há praias para homens e outras, para mulheres. Eu só poderia frequentar a moderninha academia de ginástica e musculação perto da minha casa na parte de tarde, já que o acesso aos homens é proibido de manhã. Andar de bicicleta até hoje é um privilégio exclusivamente masculino. Assim como cantar e tocar instrumentos musicais.

Mas o quadro está longe de ser preto e branco, principalmente à luz da situação em outros países da região. No Irã as mulheres dirigem, trabalham e estudam sem nenhuma restrição. Aliás, nas universidades iranianas há mais estudantes mulheres do que homens (60%-40%). Na rua, mulheres batem boca com taxistas e vendedores sem qualquer constrangimento. Uma das mais acoloradas discussões que presenciei por aqui envolvia uma senhora que xingava horrores um policial de trânsito. Não há nenhum problema em se dirigir a uma mulher desconhecida para pedir informação. Dia desses andei num taxi dirigido por uma mulher. Elas estão também no Parlamento e em vários cargos de governo _geralmente secundários, verdade seja dita.

Na Arábia Saudita, as mulheres não podem dirigir nem experimentar roupa na loja. No secular Iêmen, é recomendado que os homens se abstenham de falar com mulheres que não sejam parentes. No Afeganistão, o uso da burca continua generalizado mesmo 11 anos após a queda do bárbaro regime taleban. Burca é o lenço que cobre o corpo todo, tapando inclusive os olhos, que só enxergam por meio de uma espécie de grade de tecido. No Irã as mulheres cobrem o cabelo, não o rosto. Jamais vi uma burca sequer por aqui. O apedrejamento de mulheres acusadas de adúlterio, raríssimas vezes aplicado, foi recentemente revogado das leis iranianas.

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Iranianos e americanos, tudo a ver

Por Samy Adghirni
04/03/12 12:59

Iranianos e americanos são muito mais próximos do que se imagina e compartilham inclusive uma maneira muito parecida de enxergar o mundo e a si próprios.

A tese, que pode soar esdrúxula, é defendida pelo veterano repórter e escritor Scott Peterson no “Christian Science Monitor”, uma das mais respeitadas e tradicionais publicações do jornalismo americano.

Peterson sustenta que os dois países têm tudo para voltar a ser “aliados naturais”, como foram até a Revolução Islâmica de 1979. O autor lembra que o Irã foi um dos únicos países do Oriente Médio onde as pessoas acenderam velas em massa em apoio aos EUA após o 11 de Setembro.

O artigo, divulgado dias atrás no site do jornal (link abaixo), argumenta que as semelhanças entre as duas populações podem ser organizadas em torno de cinco características comuns, aqui resumidas, em tradução livre:

1. Excepcionalismo

Os dois países tendem a se achar nações de primeira grandeza no rol da história. Por isso, se sentem incumbidos de uma missão nobre que permeia suas políticas interna e externa.

2. Combate à tirania

Para muitos iranianos, derrubar a ditadura do xá pró-Ocidente Mohamed Reza Pahlavi era uma obrigação moral da mesma maneira que os americanos buscam liberdade e democracia. O então presidente iraniano Mohammad Khatami disse em 1998: “O que nós buscamos é o que os fundadores [dos EUA] buscavam séculos atrás. Por isso temos uma afinidade intelectual com a essência da civilização americana”.

3. Orgulho nacional

Governos de EUA e Irã adoram falar de paz, mas também estão entre os que mais ameaçam recorrer à força. Cada um dos dois países sente que o mundo gira ao seu redor e só consegue enxergar a história através da lente nacionalista.

4. Individualismo

As culturais sociais no Irã e nos EUA compartilham a mesma obsessão pelo sucesso e pelo individualismo extremo. Por isso iranianos se adaptam tão facilmente à vida nos EUA, segundo o historiador iraniano Reza Alavi, formado em Harvard e Oxford.

5. Espiritualidade

No Irã, o governo se diz a serviço de Deus, e a fé está em toda parte. Nos EUA, a Declaração de Independência diz que “todos os homens são fortalecidos por Deus”, a população se vê como “nação sob Deus” e cada nota de dólar é estampada com um “em Deus nós confiamos”.

Scott Peterson enxerga sintonias naturais entre Irã e EUA, mas também deixa claro que essas mesmas características comuns, indissociáveis de orgulho e teimosia, hoje tornam mais difícil uma reaproximação.

O link para a versão integral do artigo:

http://www.csmonitor.com/World/Middle-East/2012/0201/Iran-US-tensions-5-ways-Americans-and-Iranians-are-actually-similar/Exceptionalism

A argumentação foi tirada de seu livro sobre o Irã publicado em 2010: “Let the Swords Encircle Me: Iran A Journey Behind the Headlines” (em tradução livre, Deixe as espadas me cercarem – uma jornada por trás das manchetes)

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