O quiosque da orientação islâmica
08/08/12 08:22Madrugada no sempre tumultuado aeroporto internacional Imã Khomeini, ao sul de Teerã. No vão central do saguão, um cartaz encostado numa pilastra avisa, em farsi e inglês: “Tire suas dúvidas sobre a religião islâmica”. A alguns passos dali, dois mulás (clérigos) de túnica e turbante estão instalados numa mesa virada de frente para o vaivém das pessoas.
Um jovem aparentando 20 e poucos anos, sentado numa cadeira e cotovelos na mesa, ouve com atenção um dos mulás. O religioso, barbudo e de óculos, sorri e gesticula suavemente enquanto olha com atenção nos olhos do rapaz, dando a impressão de explicar algo muito importante. Enquanto isso, o outro clérigo, mais jovem e sem óculos, parece ler algo na tela de seu notebook.
Após observar a cena de longe, me aproximo da mesa e pergunto ao mulá mais moço se ele fala inglês. “Yes, of course”, responde com ar sério.
Começo a conversa me apresentando como correspondente de um jornal brasileiro e mostro minha credencial de imprensa do governo. No Irã convém jogar impo e deixar claro, sempre que possível, que não há nada a esconder.
O religioso diz ser membro de uma ONG que ajuda as pessoas a entender melhor os ensinamentos e práticas do islã (embora ele não tenha feito a distinção, devo dizer que ele se referia exclusivamente ao islã xiita, majoritário no Irã). O quiosque da orientação religiosa atende gratuitamente qualquer pessoa e responde qualquer pergunta sem tabu, garante o clérigo, que diz chamar-se Dr. Hoseini.
“Não temos nenhuma relação com o governo”, garante o clérigo, iPhone colocado na mesa. É verdade que ser religioso no Irã não significa necessariamente estar ligado ao regime. Há inclusive muitos clérigos e até mesmo alguns aiatolás rompidos com o establishment teocrático. Mas é difícil conceber que uma organização deveras independente, por mais devota que seja, consiga montar um quiosque em lugar público sem aval das autoridades. Ainda mais num área sensível como um aeroporto internacional supervisionado pela Guarda Revolucionária, a força de elite do governo iraniano.
Não consegui descobrir que conselhos o jovem rapaz estava pedindo aos mulás. Meu farsi não deu conta, ainda mais porque os dois falavam baixinho demais. Mas aproveitei para para me arriscar a também tirar dúvidas sobre o islã com o Dr. Hoseini, um sujeito pouco efusivo, mas disposto a falar com um gringo.
Primeiro perguntei sobre a forte influência de rituais pagãos e/ou pré-islâmicos nos hábitos culturais iranianos.
– “Pular fogueira e colocar maçãs sobre a mesa para dar sorte na virada do ano não seria superstição incompatível com o islã?”
– “O que você cita são rituais ligados à cultura iraniana, não à religião em si. O islã aceita perfeitamente expressões culturais populares ancestrais. Pular fogueira é um hábito que remonta aos tempos do zoroastrismo, uma fé que o islã respeita, como todas as outras. O limite é quando esses rituais ferem a liberdade e o conforto de outras pessoas. Quem aproveita a cerimônia da fogueira para fazer barulho e incomodar a vizinhança está cometendo um pecado”.
Minha segunda pergunta foi sobre o véu islâmico obrigatório para as mulheres.
– “Em alguns países islâmicos, a mulher não precisa usar o véu mas em outros ela deve cobrir o rosto inteiro. Na Arábia Saudita, elas podem deixar os olhos à mostra e no Irã só os cabelos devem estar cobertos. Afinal, o que diz o Corão?”
– “Há várias linhas de estudos islâmicos, muito diferentes umas das outras. Aqui no Irã seguimos a linha xiita, que recomenda que a mulher cubra os cabelos e se abstenha de maquiagem pesada. A intenção é evitar que a mulher seja transformada, desculpe a expressão, em objeto sexual. É importante para preservá-la. Mas a mulher pode se maquiar à vontade e deixar os cabelos à mostra se estiver num ambiente privado e em meio a parentes próximos.”
As respostas não trouxeram nada de fundamentalmente novo, mas o questionamento livre direto na fonte clerical, em pleno mês sagrado de Ramadã, representa por si só uma oportunidade extraordinária num país tão cheio de restrições.
Olhei para o relógio e percebi que já estava atrasado para o meu embarque. O jovem ao meu lado continuava ouvindo os conselhos do mulá. Dr. Hoseini não quis me dar um cartão nem o número do seu iPhone, mas aceitou fornecer seu endereço email. Quero muito continuar essa conversa.
Samy, muito bons seus posts, acompanho sempre que posso. mas a palavra “deveras” é junto, não separado 🙂
Caro Samy, tenho uma pergunta a respeito da sua opinião com relação ao islã xiita. Seu conhecimento deve ser baseado nos ensinamentos sunitas, porém o tempo em que voçê tem convivido numa sociedade de maioria xiita provavelmente lhe trouxe percepções acerca da diferença entre uma sociedade baseada e sunismo e outra no xiismo. A minha pergunta é sobre o nível de tolerancia em relação a individualidade. O Irã pós revolução me da uma impresão de que o individualismo/individualidade foi substituida pela socialização (preocupação com o bem comum) em relação ao interesse público em contraste ao direito individual. Talvez seja uma forma de inibir idéias revolucionárias e proteger a revolução. Sei porém que em matéria de liberdade a sociedade iraniana está a anos-luz a frente de paises como a Arabia Saudita e Afeganistão, e em comparação ao Egito e o Libano paises mais liberais o Irã xiita seria o modelo perfeito de sociedade islamica como alardeam seus governantes ?
Caro André Luiz, em primeiro lugar acho importante ressaltar que, ao contrário do que se pensa no Brasil, xiitas não são mais radicais do que sunitas. Xiismo não rima necessariamente com radicalismo. Na verdade, muitas das correntes mais extremistas são sunitas, entre elas a Al Qaeda. Também me parece importante, com base no que você descreve, distinguir governo e população. O Irã tem um governo conservador e uma população que tende a ser mais aberta, moderna e tolerante. Paquistão e Iêmen têm governos seculares e modernos e populações extremamente conservadoras. Essa dissonância tende a causar atritos e tensões. Não acho que existam modelos perfeitos porque o conceito de perfeição é subjetivo sem si. Mas se olharmos fatores objetivos e racionais, a Turquia é um bom exemplo. De maioria muçulmana, com sistema de governo secular, dirigido por líderes com raízes religiosas, é hoje uma potência econômica, diplomática e cultural.
Mais um excelente post! Mudando de assunto, gostaria de saber qual a repercussão que os jogos olímpicos estão tendo no Irã. Os medalhistas de ouro (três em luta greco-romana e um em levantamento de peso) já chegaram aí? Há alguma preocupação com eventual enfrentamento entre iranianos e israelenses ou contra americanos? O povo acompanha os jogos na televisão ou não dão importância? Abraços e parabéns!
Excelente matéria hoje na Folha, 11/08/2012! Abraços!!
Samy, se vc tiver a oportunidade de entrar em contato com Dr. Hoseini novamente, pergunte a ele porque atualmente o islã está promovendo um banho de sangue entre os cristãos, como está ocorrendo da Nigéria, ou porque se um cristão quiser se tornar um islamita não há problema, mas se acontece o contrário, é acusado de morte por apostasia.
Interessante que no Ocidente o hijab persa seja visto como opressão, mas os consultores iranianos dizem que é uma maneira de preservar e proteger as mulheres. De fato, algumas me disseram que se sentiam bem e era direito seu usá-lo, embora outras se queixassem. No Brasil, consideramos certas vulgaridades como o equivalente da liberdade, numa visão positiva. Em alguns países europeus, não há lenços, mas o recato, pelo menos em público, é valorizado, de forma a meu ver equilibrada. Cada lugar com uma cultura e uma visão de mundo.
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Pessoalmente, o que mais me atrai no Islamismo, além da História e Arquitetura, é o Sufismo, que Hafez seguia. Samy, se tiver oportunidade, poderia perguntar sobre a visão deles a respeito dos filósofos sufis? Obrigado.
Muito legal esse post. E muito bem colocado por você José Henrique.
Tenho a mesma opinião. Sou facinado pela História e Arquitetura islâmica. Não sou religioso, mas cresci com pais frequentando encontros SUFI e acho a filosofia SUFI fascinante, encantador e rico!
Realmente muito boa essa matéria. A imagem dos mulás jovens e comunicativos surpreende a muitos. Os clérigos muçulmanos como senhores barbudos de ar austero e intransigentes com certeza está mais marcada no imaginário do Ocidente. Gostaria de aproveitar este espaço para citar 2 excelentes filmes:
Marmulak (de Kamal Tabrizi) que é uma sátira, a história de um ladrão que finge ser um mulá
Ouro e Cobre (Homayoun Assadian), a história de um jovem aspirante a mulá que tem que cuidar dos filhos depois que sua esposa adoece.
Abraços!
Gostei muito da sua matéria, isenta de preconceitos e ideias preconcebidas. Sou fascinada pelo tema Oriente Médio, sua história, cultura, religião. E o ponto de vista e os relatos de pessoas como você, cultas, idôneas e ideologicae religiosamente neutras são preciosos. Vou continuar acompanhando seu blog. Parabéns!!!!
Prezado Samy, acompanho com muito interesse o seu blog, principalmente porque sou um entusiasta da cultura persa. Diferentemente do que se propala, alguns dos seus posts tem deixado bem claro que o Irã é um país etnicamente bem diversificado, que mescla povos e culturas distintas convivendo em harmonia uns com os outros. Ao menos, diferentemente do que ocorre em outros países europeus, asiáticos e africanos de inclinação fundamentalista, não se tem notícias de conflitos étnicos sangrentos e desintegradores no Irã. Sabemos que a cultura zoroastra, a qual deu o tom ideológico da expansão do poderoso Império Persa na antiguidade, pregava com veemência a tolerância e a paz entre os povos e o respeito a cada cultura, tanto que os persas jamais massacram os povos conquistados ou proibiram as suas manifestações culturais, antes o contrário. Pergunto para você: você percebe alguma herança da cultura zoroastra na política e na mentalidade média do iraniano atual?
A presença deles no aeroporto realmente é inusitado, mas, provavelmente, as respostas serão sempre gerais e, talvez, evasivas. De qualquer maneira, soa interessantíssimo e estou muito ansiosa para poder ler a continuação dessa conversa. 😉 A propósito, parabéns pelas suas matérias!