"Não há diversão no islã"
11/04/12 08:45Meses depois de fundar a República Islâmica do Irã, em 1979, o aiatolá Ruhollah Khomeini fez um discurso em cadeia nacional de rádio que definiu boa parte do padrão social e cultural promovido até hoje pelo regime.
Khomeini declarou o seguinte:
“Alá não criou o homem para que ele pudesse se divertir. O objetivo da criação é pôr à prova a humanidade por meio de dureza e oração. Um regime islâmico deve ser sério em todos os aspectos. Não há piadas no islã. Não há humor no islã. Não há diversão no islã. Não pode haver diversão e alegria naquilo que é sério. O islã não permite nadar no mar e se opõe a seriados de rádio e televisão. O islã, entretanto, permite tiro ao alvo, andar a cavalo e competição”
A fala ecoa em todos os aspectos da vida no Irã de hoje. Difícil achar por aqui alguém que não conheça esse discurso. Mesmo duas décadas após a sua morte, Khomeini continua onipresente _para satisfação de uns e desgosto de outros. A cara de mau do aiatolá espalhada por incontáveis outdoors e murais espalhados nos mais diversos recantos do país parece vigiar o respeito às regras que ele impôs.
A lei iraniana não estipula abertamente o veto ao humor e à diversão. Mas a Revolução Islâmica aboliu bares, álcool, discotecas, shows e festas em lugares públicos. Música é área reservada aos homens, que só podem cantar ou tocar instrumentos após submeter suas obras à avaliação do regime.
Dias atrás o governo anunciou que proibirá aulas de dança e canto nos jardins de infância por considerar as práticas “imorais” (reportagem completa na Folha de hoje, só para assinante). Em compensação, as crianças desde cedo aprendem tudo sobre a temática mórbida dos mártires, obsessão do regime. Os principais feriados religiosos têm a ver com as sanguinolentas mortes dos imãs Ali e Hussein, descendentes do profeta Maomé que originaram a facção xiita dentro do islã. Em todas as cidades há murais com os rostos sérios, geralmente reprodução de fotos de identidade, de soldados mortos na guerra contra o Iraque do então aliado do Ocidente Saddam Hussein (1980-1988).
Nos primeiros anos da revolução as pessoas praticamente só usavam roupas escuras. Mulheres evitavam sair de casa maquiadas. Hoje em dia muitas iranianas andam nas ruas enfeitadas até as unhas. Há inclusive véus e roupas em tons berrantes, mas que ainda destoam do preto predominante na multidão. Os escassos programas de humor no rádio e na TV são caretas ao extremo. Conversas sobre pegação e namoros só ocorrem entre amigos íntimos. Nenhum taxista se atreveria a comentar com um passageiro sobre a belezura que acaba de atravessar a rua.
As cidades são todas austeras e sisudas. Os prédios quase só têm tons marrons ou cinzas, embora em Teerã o atual prefeito tenha mandado instalar dezenas de painéis coloridos abstratos. Os poucos outdoors publicitários evitam mostrar pessoas e quando o fazem, os eventuais sorrisos são pra lá de contidos.
Mas esta ideia de um islã incompatível com a alegria de viver é amplamente rejeitada. O humor e as artes, aliás, são características comuns em quase todas as sociedades muçulmanas, do Marrocos à Indonésia, passando por Senegal e Egito. Prevalece na maioria dos países de fé islâmica a cultura da festa e da ironia, sob formas muito diferentes, é claro. Sim, há outros lugares ultrapuritanos além do Irã, como Arábia Saudita e Paquistão, mas a felicidade cabe perfeitamente no islã.
Alguns teólogos sustentam até que o Corão é muito mais bem resolvido do que a Bíblia ou a Torá no que diz respeito aos prazeres da vida. No islã, a vida e os sentidos são um presente de Deus aos homens e devem ser aproveitados sem culpa, desde que de forma lícita. O sexo, inclusive, está longe de ser um tabu na fé islâmica, segundo o sociólogo tunisiano Abdelwahab Bouhdiba, autor de “A sexualidade no islã” (lançado no Brasil pela editora Globo). Bouhdiba sustenta que o homem e a mulher foram feitos para dar prazer um ao outro uma vez casados. Machismos à parte, eis um trecho pouco conhecido do Corão: “Vossas mulheres são, para vós, como campo lavrado. Então, achegai-vos a vosso campo lavrado, como e quando quiserdes.” (2:223).
Muito estudiosos dizem que o islã em sua forma mais rígida só cresceu e se propagou na era moderna. Afirmam ainda que pensadores, teólogos e clérigos muçulmanos de antigamente eram muito mais hedonistas e liberais que os atuais. Há abundantes relatos de viajantes islâmicos dos séculos passados que voltavam para casa espantados com a intransigência moral que dominava então as sociedades europeias.
Essas contradições estavam presentes até no espírito de Khomeini. O mesmo homem que decretou não haver diversão no islã também afirmou: “o fato de eu ter dito alguma coisa não significa que eu deva ficar preso ao que eu disse”.