A "BBC" iraniana
03/04/12 13:15O leiaute é moderno e sóbrio. A imagem na tela tem alta definição, em roupagem predominantemente azul. O inglês dos apresentadores e repórteres oscila entre o mais puro sotaque britânico e o jeitão americano, passando por variações africanas e asiáticas. Notícias, programas e entrevistas se sucedem num ritmo ágil e preciso, 24 horas por dia.
A emissora Press TV, com sede em Teerã, se parece com qualquer outro canal noticioso internacional, não fosse por dois aspectos fundamentais: as jornalistas cobrem o cabelo com o véu islâmico e a linha editorial vai na contramão de quase tudo que se vê na mídia ocidental.
Transmitida por satélite em boa parte do mundo (mas não no Brasil), a Press TV é uma das principais armas de propaganda do regime iraniano. O estilo dinâmico e incisivo não esconde uma rígida agenda política e ideológica. Para saber qual o pensamento dominante na cúpula do governo do Irã, basta sintonizar o canal.
Aquilo que é conhecido no Ocidente como “Primavera Árabe”, por exemplo, é tratado na emissora sob o título “Despertar Islâmico”. O argumento óbvio é que líderes e partidos islamitas são os grandes vencedores das revoltas árabes até agora. A explicação martelada pela Press TV é a seguinte: as populações da região querem se libertar de seus ditadores laicos para viver sob um sistema religioso, igualzinho ao que ocorreu no persa Irã há 33 anos. Por isso Teerã apoia com tanta ênfase os levantes populares que se alastram.
Nenhuma revolta árabe merece tanto a atenção da TV quanto à do Barein, onde uma monarquia sunita pró-Ocidente reina sobre uma maioria de xiitas inspirados pelo Irã. Qualquer escaramuça entre manifestantes antirregime e forças de segurança vira abertura de telejornal e acaba retratada como repressão sangrenta. A notável exceção no apoio aos levantes árabes é a Síria, aliada incondicional do Irã.
Na versão da Press TV, a Síria sofre uma onda de ataques por parte de terroristas estrangeiros que servem interesses do Ocidente. Já Bashar Assad é, nos relatos da emissora, um estadista que soube ceder e lançar grandes reformas após compreender as aspirações de seu povo. De qualquer maneira, a guerra na Síria aparece pouco na programação.
Em compensação, a emissora é obcecada pelo conflito israelo-palestino, tratado de forma passional em favor dos palestinos que, na linguagem oficial, vivem sob o julgo ocupante do “regime sionista”. A cada dia há relatos abundantes das supostas injustiças cometidas por Israel contra cidadãos palestinos: prisões arbitrárias, bloqueio econômico e sanitário, barreiras à livre circulação de pessoas… Como o Irã não reconhece Israel, o conflito é sempre apresentado sob o mesmo ponto de vista. O curioso é que a Press TV foca boa parte da cobertura na faixa de Gaza, governada pelo grupo islâmico Hamas, apoiado e financiado por Teerã. Já a Autoridade Nacional Palestina, dominada pelo secular Fatah e dirigida na Cisjordânia pelo presidente Mahmoud Abbas, é quase sempre ignorada. Interlocutor preferido do Ocidente, Abbas é visto pelo Irã como um líder fraco e submisso aos interesses de Israel e EUA.
A ideia de um Ocidente decadente e vítima de sua própria arrogância norteia a programação. A crise econômica nos EUA e na Europa está em todos os telejornais. A Press TV adora o Occupy Wall Street e deu grande destaque à recente greve geral na Espanha. Hoje mesmo vi uma reportagem que dizia haver um aumento no número de suicídios de empresários italianos arruinados pela crise. Mais cedo assisti a uma matéria apontando as supostas arbitrariedades da polícia australiana na recente morte do brasileiro Roberto Laudisio, ignorada por outros canais internacionais.
A emissora iraniana tem um programa chamado “American Dream”, que mostra o lado mais sombrio dos EUA, incluindo racismo e pobreza. Dia desses foi divulgada uma longa reportagem sobre as condições miseráveis dos moradores de rua de Los Angeles.
Na grade há ainda o “Double Standards”, que denuncia as contradições diplomáticas do Ocidente. Exemplo clássico: EUA e Reino Unido exigem respeito aos direitos humanos e à democracia mas apoiam a medieval e implacável monarquia saudita.
Entre os demais programas da TV há um sobre britânicos convertidos ao islã e outro que defende os direitos das mulheres _vítimas da violência, trabalhadora escravas, presidiárias etc.
Uma das coisas que mais impressionam é a estrutura da Press TV. O canal tem correspondentes nos EUA, Reino Unido, Itália, Espanha, Síria, China, Argentina, Itália, Espanha, Austrália, Nigéria, África do Sul e até na Somália, onde veículos estrangeiros são raríssimos. Há repórteres de incontáveis nacionalidades, incluindo vários americanos. A TV paga bem seus funcionários e colaboradores. Quando cobri a queda de Trípoli, em agosto, conheci um cinegrafista francês que dizia ganhar mais de 300 euros por dia de trabalho com a Press TV. O canal France 2, diz o colega, pagaria menos da metade pela mesma diária. Até meses atrás a TV ainda buscava um correspondente no Brasil.
Defensores da Press TV dizem que o Ocidente é hipócrita ao acusá-la de ser pró-regime iraniano enquanto outras emissoras também são financiadas por Estados, como a britânica BBC, a francesa France 24 e a Al Jazeera, do Qatar. Segundo essa visão crítica, nenhum canal bancado por governos pode se dar ao luxo de ser totalmente independente.
Mas a credibilidade da Press TV anda mesmo muito baixa. O canal, que tem também versões em árabe (Al Alam) e espanhol (Hispan TV), é tido por muita gente como mero porta-voz do regime, sem qualquer preocupação com o equilíbrio noticioso e editorial. Comenta-se que a emissora esforçou-se, logo após a sua fundação, em 2007, para exercer um jornalismo crítico e razoavelmente isento. Mas a repressão que calou a oposição iraniana após a controversa reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad dois anos depois aniquilou vozes dissonantes dentro e fora da emissora. Hoje a Press TV é criticada inclusive por servir de palanque a revisionistas americanos e europeus do Holocausto judeu.
O site da emissora: www.presstv.ir