Samy AdghirniPolícia moral – Samy Adghirni http://samyadghirni.blogfolha.uol.com.br Um brasileiro no Irã Tue, 15 Jul 2014 23:37:37 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 A polícia moral iraniana em ação http://samyadghirni.blogfolha.uol.com.br/2012/05/16/a-policia-moral-iraniana-em-acao/ http://samyadghirni.blogfolha.uol.com.br/2012/05/16/a-policia-moral-iraniana-em-acao/#comments Wed, 16 May 2012 14:47:30 +0000 http://samyadghirni.blogfolha.uol.com.br/?p=276 Continue lendo →]]> Hoje vi pela primeira vez a polícia moral iraniana em ação contra uma mulher com aparência imprópria para os padrões legais da República Islâmica. Já havia me acostumado a ver os agentes de uniforme militar verde escuro atentos nas principais esquinas de Teerã, mas nunca tinha presenciado uma abordagem.

Iranianas são detidas pela polícia em Teerã, no Irã, acusadas de não se cobrirem o bastante em público

A cena ocorreu quando eu voltava a pé para casa no fim da tarde, sob um sol intenso de véspera de verão, após uma entrevista num café. Subia a rua Valiasr, tema de um texto postado em março neste mesmo blog, até enxergar uma pequena e aparentemente tensa aglomeração poucos metros à minha frente na calçada.

Compreendi rapidamente o que estava acontecendo ao ver um policial moral e uma mulher usando chador preto, o véu integral, cercando outra mulher, com visual pra lá de ocidental, numa barraquinha de suco de frutas. Não restou dúvida: a senhora coberta era uma policial feminina prestes a efetuar uma prisão sob supervisão do agente masculino. Afinal, o regime proíbe qualquer contato físico entre sexos opostos em locais públicos.

Para observar a cena sem chamar a atenção, parei do lado da barraquinha, peguei meu celular e fingi estar mandando um SMS. Passo facilmente por iraniano, nessas horas isso ajuda um monte.

A mulher abordada tinha todos os “vícios” da típica infratora: maquiagem berrante, roupa colorida, casaco que bate na coxa em vez do joelho e, principalmente, um véu cobrindo apenas a parte de trás da cabeça, deixando à mostra cabelos tingidos de loira. A moça, entre seus 25 e 30 anos, pediu aos policiais que ao menos a deixassem pagar o suco consumido.

Em seguida, a mulher de chador a acompanhou até a van da polícia moral, estacionada na frente da barraquinha. O veículo, facilmente reconhecível pelas laterais verdes, estava atrapalhando o trânsito.

Na frente da van estava um dos reluzentes sedã Mercedes usados pelos policiais masculinos _armados_ para dar apoio aos agentes de abordagem, quase todos mulheres. Alguém um dia me explicou que o carro de reforço foi implementado pelo regime porque a turma da van às vezes não dava conta de enfrentar sozinha eventuais ataques por parte de cidadãos indignados que queriam livrar as mulheres de ser embarcadas.

A moça levada na van estava acompanhada de uma amiga, que não foi incomodada pela polícia. Assim que a van partiu, a amiga pegou o celular e ligou, presumo, para algum conhecido para relatar o ocorrido.

A cena ocorreu em meio à indiferença geral. Fiquei com a impressão de que as únicas pessoas que acompanharam a abordagem eram funcionários das lojas vizinhas.

Por mais chocante que possa parecer para um ocidental, a história não leva a nenhum desfecho trágico. Embora eu jamais tenha presenciado cena semelhante, conheço muitas meninas que passaram pela mesma situação. O roteiro é clássico. As infratoras batem boca com as policiais ou choram no caminho até a delegacia. Ao chegarem, ouvem um sermão do delegado e em seguida algum parente ou amigo é convidado a levar uma roupa mais apropriada para que a moça possa sair de lá sem problema. Peças inapropriadas são confiscadas ali mesmo. A maquiagem, obviamente, precisa ser retirada. Por fim, as moças assinam antes de ser liberadas um termo se comprometendo a ter mais cuidado com a própria aparência.

Reincidentes às vezes enfrentam a Promotoria, mas o caso geralmente é resolvido com uma multa.

Os relatos do que acontece nas delegacias enquanto as moças esperam que alguém venha buscá-las são surreais. Há policiais que paqueram as infratoras. Alguns agentes pedem desculpas, alegando estar apenas fazendo o que a lei manda. A namorada de um amigo que já passou horas na delegacia conta que uma policial lhe confidenciou existirem cotas de mulheres a serem abordadas por dia.

A polícia moral foi criada logo após a Revolução Islâmica de 1979, com o objetivo de caçar o “vício social” e a “corrupção moral”. Homens também são visados. Short e bermuda, nem pensar. É curioso ver marmanjos usando calça para jogar futebol na rua. Camisetas baby look ou com motivos impróprios também são caçadas. Já ouvi que um jovem com uma camiseta do Michael Jackson foi obrigado a entregá-la à polícia, que a rasgou na frente dele. Os agentes entregaram ao rapaz outra peça, surrada e suja, para que não ficasse com metade do corpo à mostra.

Casais de namorados são outro alvo preferencial. Ai de quem for pego num carro com sexo oposto que não seja parente. Os agentes também não hesitam em invadir as casas de quem estiver fazendo festança com música ocidental e bebida.

Isso dito, a chance de ter problema com a polícia moral existe, mas não há um clima de paranoia como se poderia esperar. Conheço moças que andam por aí enfeitadas como se estivessem na balada e com véu quase na nuca e nunca foram levadas à delegacia.

Engana-se quem pensa que o país inteiro é contra a polícia moral. No bairro onde moro, área de classe média alta ao norte de Teerã, é provável mesmo que quase todo mundo odeie esse rigor. Mas, pelo que pude ver e sentir em seis meses no país, minha impressão é de que a sociedade _religiosa, rural, agrícola_ é muito conservadora. Numa avaliação impressionista, eu diria que metade dos iranianos, ou quase isso, apoiam a rigidez moral do regime.

Estrangeiros geralmente não são incomodados. No máximo, uma advertência verbal para lembrar às gringas a maneira adequada de se vestir no Irã.

Todo mundo sabe que há períodos mais repressores e outros, mais liberais. No início dos anos 2000, sob governo do presidente reformista Mohammad Khatami, o ambiente era bem mais permissivo. Casais paqueravam em público e eram raros os casos de abordagem por roupa imprópria.

Eleito em 2005, o conservador Mahmoud Ahmadinejad apertou o cerco. Mas desde então ele se revoltou contra os excessos da polícia moral. Por incrível que pareça, Ahmadinejad é hoje o mais liberal na cúpula do regime. Ele inclusive chegou a defender que as mulheres pudessem frequentar estádios. Até hoje ele critica a obsessão da polícia moral com o vestuário feminino. Mas quem manda mesmo no país é o líder supremo, aiatolá Ali Khamenei.

Encerro este post com um trecho de uma entrevista que me foi dada em fevereiro, em meio à celebração do 33º aniversário da Revolução Islâmica, por Mohammad Bagher Khoramshad, diretor-geral do todo poderoso Ministério da Cultura e da Orientação Islâmica.

KHORAMSHAD: “Na época de Khatami [1997-2005], as mulheres podiam usar roupa colorida e vestuário mais livre. As famílias estavam tranquilas em relação a isso. Mas, no final do governo de Khatami, havia mulheres que chegavam a extremos, e essas mesmas famílias já não achavam isso tão legal. Muita gente queria que algo fosse feito, e essa necessidade de voltar aos princípios necessários da Revolução Islâmica é uma das razões que levaram à eleição de Ahmadinejad. Havia uma demanda das pessoas por mais espiritualidade e para deixar de lado essa liberdade exagerada. Isso dito, se houver excessos no governo atual em relação ao ambiente mais fechado, então poderemos voltar a regras mais moderadas.”

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