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Samy Adghirni

Um brasileiro no Irã

Perfil Samy Adghirni correspondente em Teerã.

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Salehi, o chanceler gente fina

Por Samy Adghirni
23/07/12 15:00

 

Ele obteve diplomas em algumas das melhores universidades do mundo, fala inglês perfeito, atende a todos com elegante simpatia e tem modos pra lá de sofisticados. O ministro das Relações Exteriores Ali Akbar Salehi, 63, é unanimemente considerado um dos melhores _e mais moderados_ quadros do governo iraniano.

Os embaixadores estrangeiros em Teerã adoraram quando o presidente Ahmadinejad demitiu no final de 2010 o então chanceler Manouchehr Mottaki, de estilo truculento e inglês mediano, e entregou a pasta a Salehi. De repente, os diplomatas gringos passaram a tratar com um homem refinado e capaz de entender as preocupações e anseios de governos que não pensam como o seu. É comum ouvir embaixadores ocidentais se derramarem em elogios ao ministro.

Um dos trunfos de Salehi é sua dupla trajetória de acadêmico e diplomata.

Filho de um rico empresário, ele nasceu no santuário xiita de Karbala, no Iraque, onde sua família tinha negócios. Começou sua andança pelo mundo ao terminar o segundo grau. Foi primeiro ao Líbano, até então epicentro da vida cultural e acadêmica no Oriente Médio. Graduou-se em engenharia mecânica pela Universidade Americana de Beirute, após passar anos imerso no ambiente cosmopolita da capital libanesa. Em seguida foi fazer doutorado em física nuclear no Massachussets Institute of Technology, o famoso MIT americano. Conseguiu o diploma em 1977 e voltou ao Irã para lecionar. Suas credenciais científicas lhe permitiram integrar o Centro Internacional de Física Teórica, um prestigiado órgão sediado na Itália e chancelado pela Unesco.

Após a Revolução Islâmica de 1979, Salehi passou parte dos anos 80 e o início dos 90 como reitor da Universidade Sharif de Teerã, que ele ajudou a transformar numa das melhores escolas de engenharia do mundo nas palavras de Burton Richter, da Universidade Stanford. “Sem sombra de dúvida, a melhor universidade do mundo em termos de graduação em engenharia é a Universidade Sharif de Teerã (…). Os estudantes aqui são impressionantes”, disse Richter ao visitar o Irã em 2007.

Mas foi no período em que Salehi chefiou a universidade que ele teria supervisionado a aquisição de material nuclear ilegal pelo regime, segundo o think-thank americano Instituto para a Ciência e Segurança Internacional (ISIS, na sigla em inglês).

Aos olhos dos detratores, pesa contra Salehi o fato de ele ter passado os últimos 15 anos como um dos figurões do programa nuclear _que o Irã diz ser voltado apenas para fins energéticos e medicinais. Em 1997, o governo reformista de Mohammad Khatami o escolheu para ser embaixador na agência nuclear da ONU, a AIEA, sediada en Viena. Salehi manteve-se no cargo mesmo após a chegada ao poder do conservador Ahmadinejad em 2005. Foi nesse período que ele conquistou de vez o respeito dos círculos diplomáticos ocidentais. Há quatro anos Salehi assumiu a Agência de Energia Atômica do Irã, onde ficou até tornar-se chanceler, função intimamente ligada à defesa do enriquecimento de urânio.

Hoje Salehi atua como espécie de porta-voz dos partidários da conciliação dentro do regime. Há quem diga que é ele o responsável por convencer Ahmadinejad a reduzir sua retórica incendiária contra Israel e o Ocidente. E nos últimos dois anos, período em que conflitos e problemas internos obrigaram o presidente a se concentrar em temas domésticos, Salehi vem conduzindo uma política externa sensata e cautelosa, embora limitada pelos humores do líder supremo, comandante absoluto do regime. É evidente que a relação do Irã com os vizinhos árabes, a Turquia e o Ocidente não vai bem, mas tudo indica que a coisa seria muito pior sem Salehi.

Quando estudantes prórregime invadiram a Embaixada do Reino Unido em Teerã, em dezembro, foi Salehi quem criticou e lamentou a ação e prometeu que incidentes deste tipo não se reproduzirão _não houve, no entanto, pedido de desculpas. Num caso mais recente, Salehi acalmou os mercados de petróleo ao dizer que o Irã não estava prestes a fechar o estreito de Hormuz, por onda passa um quinto da produção mundial de óleo bruto. Jornalistas ocidentais em Teerã enxergam Salehi, um pai de família de fala mansa e gestos suaves, como a melhor fonte do governo para entrevistas.

A classe refinada de Salehi representa também uma fraqueza. Sem o fervor ideológico e a lealdade irrestrita ao regime ostentados por outros dirigentes, o chanceler dificilmente poderá aspirar a voos mais altos.

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A poética fala cotidiana dos persas

Por Samy Adghirni
11/07/12 08:23

Um dos aspectos mais curiosos do idioma farsi é a onipresença de expressões poéticas na fala do dia a dia. Na rua, entre amigos ou no trabalho, conversas são repletas de metáforas e exageros líricos, mostrando o quanto os iranianos são formais e ao mesmo tempo avessos à linguagem direta.

Toda pessoa que receber algum tipo de serviço, atendimento de garçom, faxina em casa ou informação de recepcionista, deverá agradecer dizendo “espero que seu cansaço termine logo” (khásta nábochid, na pronúncia em farsi.). É uma espécie de pedido de desculpas pelo trabalho solicitado e ao mesmo tempo um incentivo moral. A frase também pode ser usada na hora de abordar o funcionário.

Para agradecer alguém de forma mais enfática, é costume dizer “eu sacrificarei minha vida por você” (ghorbanet beram). O tradicional “de nada” também é pra lá de dramático: “eu atendo os seus desejos” (khahêsh mikonám). Como se a gentileza persa fosse medida pelo grau de entrega ao outro.

Quando um iraniano quer afirmar que alguém fez falta num evento, a frase usada é “seu lugar estava muito vazio” (jayet kheyli khali bud).

A saudação na hora de dar os parabéns pelo nascimento de um bebê ou pela volta de uma pessoa querida é “fez-se luz nos teus olhos” (cheshmét roshán). Referência óbvia ao brilho no olhar de quem está feliz.

Os olhos também constam na expressão usada pelo anfitrião que abre a porta da sua casa para receber convidados: “você pode caminhar sobre os meus olhos” (qadamét ro cheschm). Significa algo como: “você é tão importante para mim que eu sou apenas poeira nos teus pés e você pode pisar sobre aquilo que eu tenho de mais valioso”.

Minha expressão preferida é usada em ônibus, trens e aviões. Antes de me instalar num assento, devo, segundo manda o protocolo, me dirigir ao passageiro que estiver na fileira atrás da minha e pedir desculpas por lhe dar as costas. O passageiro responderá então: “uma flor [como você] não tem frente nem verso” (Gol posht o ru nadaré).

Há quem diga que tudo isso não passa de lero lero disfarçado de gentileza para enrolar terceiros ou tirar proveito deles. Para os céticos, muitos iranianos são uns espertinhos adeptos de um cinismo socialmente aceito. A ideia é que as pessoas abusam da hipocrisia retórica por saber que, no fundo, não podem confiar umas nas outras. O Irã, segundo esta visão, é um país onde ninguém respeita fila, todo mundo só pensa em se dar bem e vendedores e taxistas não perdem uma oportunidade de passar a perna nos desavisados.

Outra visão, menos ranzinza, diz que os iranianos são um povo com cultura e modos sofisticados e complexos. A interação por meio da fala poética e do taaruf, a etiqueta social já mencionada num texto postado neste blog em fevereiro, é uma bem sucedida forma de minimizar os inevitáveis atritos e tensões nas relações interpessoais. No Irã, belas palavras e bons modos são vistos como uma maneira de deixar a vida um pouco menos dura.

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O dia em que os EUA mataram 290 civis inocentes

Por Samy Adghirni
02/07/12 11:54

Um dos mais polêmicos ataques americanos contra civis inocentes ocorreu há exatos 24 anos, no calor da guerra entre o Irã do então aiatolá Khomeini e o Iraque do ditador Saddam Hussein, aliado de Washington.

Crianças jogam flores no local da tragédia em cerimônia organizada pelo governo do Irã (Atta Kenare - 2.jul.2012/France Presse)

Na manhã de 3 de julho de 1988, um navio de guerra dos EUA disparou dois mísseis contra um Airbus A300 da Iran Air, matando na hora as 290 pessoas a bordo, incluindo 66 crianças. Entre as vítimas havia cidadãos de Irã, Índia e Itália, entre outros países.

A tragédia ocorreu nas águas verdosas do golfo Pérsico, alguns quilômetros ao sul da cidade de Bandar Abbas, de onde o voo Iran Air 655 acabava de decolar. O destino era Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, logo ali do outro lado do golfo, num voo que leva menos de meia hora. O avião foi atingido quando ainda estava em baixa altitude, despedaçando-se sobre o estreito de Ormuz.

Os mísseis foram disparados pelo USS Vincennes, um navio de guerra que invadira águas territoriais iranianas para perseguir lanchas de combate da República Islâmica. Eram tempos em que Washington apoiava a ditadura laica de Bagdá como forma de minar o regime islâmico de Teerã. Na frente marítima desta guerra, os EUA andavam escaldados por uma série de escaramuças no estreito de Ormuz, onde se cruzam águas de Irã, Emirados Árabes Unidos e Omã, países com perfis e interesses pra lá de divergentes.

O capitão do USS Vincennes, William C. Rogers, diz ter ordenado os disparos contra o Airbus por ter se confundido ao achar que se tratava de um caça iraniano do tipo F-14 Tomcat prestes a atacar o navio. Rogers alega que nenhum indício permitia identificar o voo da Iran Air como civil, já que o avião estaria voando sob um perfil de identificação usado tanto por pilotos comerciais como militares. Além disso, o Airbus decolara de uma pista usada com frequência pelos F-14 Tomcat da República Islâmica.

Militares a bordo do USS Vincennes dizem ter feito dez tentativas de contato emergencial com o comandante iraniano. Mas sete delas ocorreram na frequencia de comunicação militar, inexistente no Airbus, e três no modo emergencial civil, no qual mensagens não têm destinatário certo, podendo estar dirigidas a qualquer outro avião nas redondezas. Nenhum diálogo foi tentado pelo sistema padrão do tráfego aéreo global, pelo qual o comandante conversava normalmente _em inglês_ com torres de controle da região.

Investigações também provaram que o avião estava em trajetória ascendente, contrariando relatos de oficiais americanos de que o aparelho estava voando para baixo, na posição clássica dos ataques aéreos.

A diplomacia iraniana chamou o acidente de “ato bárbaro” e “atrocidade”. Teerã disse que é impossível se tratar de um erro e denunciou o padrão de dois pesos duas medidas dos EUA, que mantinham o hábito de condenar ataques cometidos por Estados contra aviões civis mas até hoje não pediram perdão ao Irã. Em 1996, a Corte Internacional de Justiça obrigou o governo americano a indenizar famílias em cerca de USD 300 mil por vítima.

Os EUA sempre mantiveram a versão de que o incidente foi fruto de um erro causado pelo inerente estresse de uma tripulação confrontada a um cenário de guerra. O governo americano disse ter lamentado “a perda de vidas inocentes” mas nunca assumiu a responsabilidade pela tragédia, cuja repercussão acelerou o fim da guerra Irã-Iraque, meses depois. Os EUA homenagearam com pompa todos os tripulantes do USS Vincennes. O capitão Rogers ganhou até a medalha da Legião do Mérito, uma das mais importantes honrarias militares no país.

A visão americana do ocorrido foi resumida nas palavras do então vice-presidente George Bush, em entrevista à revista Newsweek concedida em agosto de 1988: “Eu nunca pedirei desculpas pelos EUA. Nunca. Não ligo para os fatos”.

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E Dilma não recebeu Ahmadinejad...

Por Samy Adghirni
25/06/12 08:27

O suspense durou até a última hora. Mahmoud Ahmadinejad só soube que não seria recebido por Dilma quando já havia desembarcado no Brasil para participar da Rio + 20. O Palácio do Planalto alegou problemas de agenda e disse que a presidente encontraria pouquíssimo tempo para conversas bilaterais às margens da cúpula. Mas o fato é que Dilma acabou tendo várias reuniões a dois, mais até do que o previsto. Presidentes/premiês de França, Turquia, China e Nigéria, entre outros, tiveram seu tête-à-tête com a brasileira. Por mais que o Itamaraty diga que não, Ahmadinejad foi preterido, sim.

O presidente do Irã durante a cúpula do Rio+20

Há quem explique que a decisão demorou a sair porque o governo brasileiro estava na dúvida. Alguns setores do Itamaraty defendiam que era importante atender o pedido iraniano para um encontro reservado com Dilma. Afinal, o Brasil carrega no DNA de sua política externa o diálogo com todos. O Irã, queira ou não, é um país poderoso com papel central na geopolítica atual. Além disso, importa do Brasil o equivalente a mais de US$ 2 bilhões por ano. Em tempos de economia vacilante, um bom comprador desses não deveria ser desprezado.

O Brasil também preferiu esperar o resultado das cruciais conversas nucleares entre o Irã e as grandes potências ocorridas em Moscou na véspera da Rio + 20. Um desfecho apaziguador teria criado um clima mais favorável para uma foto de Dilma com Ahmadinejad. Mas a reunião na Rússia deu em nada. E Dilma bateu o martelo: não ao iraniano.

Um encontro teria contrariado parte da opinião pública brasileira, que vê Ahmadinejad como um ditador insano e sanguinário (algumas das acusações contra ele são fundadas e outras, não, mas isso é outro tema). Judeus, baha’ís e homossexuais fizeram uma barulhenta mobilização para estigmatizar o iraniano, e é de se imaginar que esse coro teria sido muito maior caso a reunião bilateral tivesse acontecido.

Dilma, mulher com trajetória de resistência militante, marcada pelo horror da tortura e da perseguição política, é muito sensível à questão dos direitos humanos. Dias antes da posse, ela deixou claro em entrevista ao “Washington Post” que o tema entraria de vez na pauta da relação com o Irã. Lula achava que a estratégia de apontar o dedo e colocar contra a parede nunca dá resultado. Mas, sob Dilma, o Brasil votou a favor de uma investigação do Conselho de Direitos Humanos da ONU sobre abusos por parte do regime iraniano.

Ainda assim, me parece que o que mais pesou na decisão da presidente brasileira é o trauma, tão recente, do custo político internacional gerado pela aproximação com o Irã nos anos Lula.

Lula recebeu Ahmadinejad em Brasília em 2009 e, no ano seguinte, foi a Teerã para costurar, com ajuda hesitante da Turquia, a promessa de uma maior cooperação iraniana no dossiê nuclear. O acordo previa, basicamente, que o Irã enviaria seu urânio para ser enriquecido no exterior. Concessão imensa, que o Ocidente não havia conseguido arrancar. Na verdade, o pacto atendia exatamente o que o próprio Barack Obama havia sugerido em carta confidencial a Lula às vésperas da viagem do brasileiro a Teerã, conforme revelou Clóvis Rossi nas páginas da Folha. Os EUA, aliás, ficaram furiosos com o vazamento da carta. E o governo Lula ficou mais furioso ainda pela reação das potências ao acordo de Teerã. Semanas após o pacto, a ONU impôs mais um pacote de sanções econômicas e financeiras ao Irã. A relação com Obama virou um gelo.

Em vez do reconhecimento esperado, o Brasil sofreu críticas e chacotas por sua suposta ingenuidade. As potências deixaram no ar a ideia de que o governo brasileiro não tinha cacife nem maturidade para atuar na mais alta esfera da diplomacia mundial. Na prática, o episódio acabou sendo um revés pesado às aspirações brasileiras de ocupar uma cadeira permanente num Conselho de Segurança da ONU pós-reforma.

Dilma mantém a ambição de mudar o órgão máximo da ONU, mas mudou de estratégia. Ela trocou o esforço constante de Lula para envolver o Brasil em grandes questões globais por uma abordagem mais prudente e pragmática. É a tese do “quanto menos atrito, melhor”. Além de menos ideológica, Dilma evita comprar brigas distantes e procura agir em função de metas claramente traçadas. O Irã não combina com nada disso.

A mídia estatal de Teerã bem que tentou explicar que a viagem de Ahmadinejad ao Rio foi um sucesso e que vários outros líderes também não foram recebidos por Dilma (o que é verdade). Mas os iranianos ficaram decepcionadíssimos. Muito mais do que discutir questões ambientais, o que o presidente da República Islâmica queria mesmo era sentir que o Brasil ainda figurava na lista dos amigos mais próximos.

Na verdade, Teerã já vinha sinalizando frustração com o Brasil. No início deste ano, um dos principais assessores de Ahmadinejad me disse que Dilma havia destruído “anos de boas relações” bilaterais. Diante da repercussão da declaração publicada na Folha, ele recuou e negou ter criticado a presidente. Na mesma época, navios levando carne brasileira foram impedidos, sob vagos pretextos burocráticos, de desembarcar a mercadoria no porto iraniano de Bandar Abbas.

A viagem ao Rio também tinha uma importante dimensão de política interna iraniana. Ahmadinejad, que manda muito pouco no Irã, está em conflito aberto com o Parlamento e setores mais radicais alinhados ao líder supremo. Por isso o presidente encara idas ao exterior como oportunidade de mostrar força e prestígio, mais ainda neste fim de mandato _falta um ano antes da eleição na qual ele não poderá concorrer.

Alguns diplomatas brasileiros sustentam, inclusive em aulas para aspirantes à carreira exterior, que a relação com o Irã não mudou desde Lula. Algo me diz que os iranianos discordam deste diagnóstico.

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Irã, o país dos feriados

Por Samy Adghirni
18/06/12 08:36

No fim da manhã de hoje saí de casa para trocar dinheiro e passar no supermercado. Virando a esquina me deparei com todas as lojas fechadas. Trânsito fluído e pouca gente na rua. As suspeitas se confirmaram depois que eu liguei para a minha assistente: sim, hoje é feriado. Mais um feriado, duas semanas após o mais recente. É feriado que não acaba.

Nesta segunda-feira 18 de junho (29 de khordad no calendário persa) se comemora o aniversário da primeira revelação do Corão ao profeta Maomé. No dia 5 de junho a nação celebrou a morte do imã Khomeini. Daqui a duas semanas, outro feriado, pelo aniversário do imã Mahdi, personagem central do xiismo. Em agosto haverá três dias parados.

Existem 26 feriados no calendário oficial iraniano, o que dá uma incrível média superior a dois por mês.

No Brasil contei 11 feriados nacionais, alguns dos quais, como Carnaval, com vários dias de recesso. Nos EUA, em torno de seis, dependendo do Estado.

Só o imã Hussein, mártir original do xiismo, tem três comemorações nacionais no Irã: Asua, véspera de sua morte; Ashura, data de seu cruel fim; e Arbaeen, pelos 40 dias de seu falecimento. Mártires, aliás, são festejados aos montes _Ali, Zadegh, Mahdi, Hazart Fatemesh e Reza têm cada um ao menos um feriado em sua homenagem.

A Revolução Islâmica é festejada três vezes. Tem o aniversário dos levantes de 5 de junho de 1963, tidos como o início do despertar popular que derrubou a monarquia, o da vitória sobre o xá (11 de fevereiro) e o do referendo que fez surgir a República Islâmica (31 março).

O feriado mais curioso é o Dia da Natureza, em 1º de abril.

Quase todos esses recessos foram criados pelo regime islâmico, embora também haja celebrações pagãs ou que remontam a tempos pré-islã, como o Ano Novo Persa, o Nowruz.

No início eu ficava enlouquecido com tantos dias sem poder fazer entrevistas ou tomar um café fora de casa, mas já me acostumei. Tem até o lado bom de poder curtir Teerã sem trânsito e com ar menos poluído.

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Khomeini, Carrefour e Sarkozy

Por Samy Adghirni
12/06/12 16:12

Uma das únicas ruas de Teerã com nome ocidental é a Neauphle-Le-Château, no centrão caótico e poluído. A via, que abriga a centenária embaixada francesa, ganhou essa denominação após a Revolução Islâmica de 1979, como homenagem à França por ter abrigado o aiatolá Ruhollah Khomeini, então perseguido pelo xá Reza Pahlevi. Neauphle-Le-Château é o nome do vilarejo a leste de Paris onde Khomeini e seus assessores passaram parte do exílio antes da volta triunfal ao Irã para comandar a revolução.

França e Irã têm longa tradição de afinidade e interesses comuns, apesar de alguns momentos tensos, especialmente nos últimos anos.

Em poucos lugares o recente fracasso do direitista Nicolas Sarkozy para se reeleger à Presidência francesa foi tão festejado quanto em Teerã. Sarkozy não só aboliu a histórica distância regulamentar da França em relação a EUA e Israel, virando íntimo dos arquiinimigos do Irã, como também foi um dos maiores defensores da pressão linha dura contra o programa nuclear iraniano. Sarkozy é tido como um dos principais responsáveis por torpedear um salutar acordo sobre o dossiê nuclear iraniano costurado por Brasil e Turquia em 2010, que selava as bases de negociações mais amenas de ali em diante. As últimas sanções da União Europeia contra o Irã estão entre as mais duras já impostas a um país.

Na era Sarkozy, o comércio bilateral e o investimento francês no Irã despencaram, minando os gordos lucros de empresas como Total, Carrefour, Peugeot e Renault na República Islâmica. Representantes destas companhias apresentaram reiteradas queixas às autoridades francesas, atreladas ao que o jargão diplomático chama de “agenda negativa”.

Segundo relatos de bastidores, a França irritou até a aliada Alemanha, partidária de uma abordagem menos agressiva em relação ao regime iraniano.

Os iranianos obviamente ficaram furiosos. Em 2009, acusaram a Embaixada da França em Teerã de fomentar a onda de megaprotestos contra a reeleição supostamente fraudulenta do presidente Mahmoud Ahmadinejad. Depois disso um jornal pró-regime chamou a então primeira dama Carla Bruni Sarkozy de “prostituta” por ter defendido Sakineh Ashtiani, a mulher condenada à morte ao apedrejamento por adultério e por ter matado o marido _a pena não foi aplicada.

O Irã estava amargurado com a guinada de Paris. Afinal, o antecessor imediato de Sarkozy, Jacques Chirac, estendera duas vezes (em 1999 e 2005) o tapete vermelho para o então colega iraniano, Mohammad Khatami. Tudo bem que Khatami carregava a áurea de reformista e expoente do diálogo das civilizações criado para diluir as tensões identitárias alimentadas pelo 11 de Setembro. Mas o presidente era também um puro produto da teocracia iraniana, famoso pela retórica anti-Israel e por esmagar protestos estudantis.

O início dos anos 2000 foi uma época excepcional na relação bilateral, impulsionada por uma parceria econômica abençoada para empresas francesas. Em 2003, Chirac fez um baita agrado aos iranianos ao ordenar uma batida policial contra os terroristas do MKO, grupo dissidente iraniano que operava a partir de uma base nos arredores de Paris. Em 2004, a Air France retomou em grande pompa os voos diretos para Teerã, suspensos havia sete anos.

Eram tempos em que a elite iraniana podia beber sem culpa na fonte cultural e intelectual francesa. Iranófilos e iranalógos franceses desembarcavam aos montes nas cidades do grande país persa.

Mas Chirac cedeu o lugar ao desafeto Sarkozy, o linha dura revisionista Ahmadinejad assumiu a Presidência iraniana e o impasse nas conversas nucleares deixou todo mundo com os nervos à flor da pele. A Air France voltou a interromper os voos para Teerã.

E cá estamos, num momento pra lá de tenso, com negociações árduas entre o Irã e as grandes potências, França inclusive, para tentar evitar mais uma guerra no Oriente Médio.

Ninguém espera que a saída de “Sarkô, o americano”, como era chamado por diplomatas de Washington, irá resgatar de uma hora para outra a idade de ouro nos laços entre a República Islâmica e a República Francesa. Até porque o governo de Hollande já disse que se opõe à ideia da Rússia, defendida pela ONU, de convidar o Irã para uma conferência sobre o conflito na Síria, já que Teerã é um dos sustentáculos do regime de Assad. O Irã por sua vez tem trauma dos socialistas franceses já que o então presidente François Mitterrand bancou e armou o Iraque de Saddam Hussein no ataque ao Irã nos anos 80.

Mesmo assim, há quem enxergue uma possível distensão. Um dos sinais encorajadores é a recente viagem a Teerã do ex-premiê Michel Rocard, um peso pesado do Partido Socialista francês, velho conhecido de François Hollande. Rocard foi recebido por dois figurões do regime: o chanceler Ali Akbar Salehi e o negociador chefe do programa nuclear Saeed Jalili. A imprensa iraniana, eufórica com a visita, garante que Rocard foi a Teerã como emissário de Hollande, o que foi negado pela Presidência francesa. Difícil saber a verdade, mas é improvável que alguém do cacife de Rocard tenha viajado sem ao menos o aval do presidente.

Também se sabe que o novo chanceler francês, Laurent Fabius, é assessorado por diplomatas experientes sem agenda ideológica, muito menos anti-Irã. A Embaixada da França em Teerã, que nunca deixou de funcionar apesar dos sobressaltos, torce para a melhora geral dos laços.

A curto prazo, o mais provável é uma mudança de tom das duas partes _menos ataques verbais, mais frases de conciliação, mais propensão ao diálogo e, talvez, um resgate do diálogo político bilateral. Na verdade muito vai depender das negociações nucleares, que terão um capítulo decisivo em Moscou na próxima semana. Segundo pessoas envolvidas no dossiê, um acordo entre o Irã e as potências levaria rapidamente a uma normalização, com retomada do comércio e das visitas bilaterais. Há muita gente em Paris e Teerã torcendo para que a velha amizade seja retomada.

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"What do you think about Iran?"

Por Samy Adghirni
04/06/12 13:28

Xenofobia é o medo daquele ou daquela que vem de fora, a rejeição de quem não é “como a gente”. O sentimento oposto, de amor ao estrangeiro, chama-se xenofilia. E os iranianos estão entre os povos mais xenófilos que já vi em anos de viagem pelo mundo.

Os mais receptivos e entusiasmados costumam ser os jovens. Quando percebem a presença de algum gringo na rua, é comum pedirem para tirar foto ou perguntarem qual o seu email ou contato no Facebook (barrado, mas usado em larga escala por meio de antifiltros). Alguns estrangeiros acabam até convidados para almoçar na casa de desconhecidos. A gentileza pode chegar ao ponto de ser embaraçosa para os padrões ocidentais. Mas o que os iranianos mais gostam é bater papo com quem é de fora. Tanto para praticar o inglês quanto para saber o que mundo pensa deles _ e quem sabe ajudar a melhorar a péssima imagem externa do país.

A conversa geralmente começa com o tradicional “welcome to Iran”, seguido da pergunta “what do you think about Iran?”, que pode ser declinada de outras maneiras, como “what is your opinion about Iran?”, “do you like Iran?” ou, em casos de inglês mais precário, “Iran good?”.

A interrogação reflete um sentimento contraditório amplamente difundido por aqui.

Por um lado, os iranianos são conscientes de que boa parte do mundo não gosta ou tem medo deles. Ressentem-se muito dos estereótipos negativos, que incluem um governo visto como fanático, supostos planos malignos para fabricar uma bomba atômica e relatos de apoio a grupos armados radicais no Oriente Médio.

Por outro lado, a população iraniana tende a ser ufanista e nacionalista ao extremo. Difícil achar alguém que não veja o Irã, de esplendor milenar, como uma das nações mais importantes e refinadas, mas cujo papel histórico e presente não é devidamente reconhecido. Iranianos se enxergam como parte do mundo rico e ficam ofendidos quando comparados a populações de outros países em desenvolvimento, árabes principalmente.

Ou seja, a pergunta sobre o que o estrangeiro, visitante ou residente, acha do Irã reflete uma profunda insegurança dos iranianos em relação à sua autopercepção como nação.

Vale a pena levar adiante a conversa. Quanto maior a troca, mais se aprende sobre o país e sua gente. O papo certamente desvendará a polarização extrema da sociedade.

Simpatizantes do governo, ou ao menos do sistema de governo em vigor, se esforçarão para explicar que o povo local é gentil e acolhedor. Dirão que a mídia ocidental mente, e que o Irã é um país moderno, desenvolvido e, à sua maneira, democrático. Citarão exemplos de campos onde a República Islâmica é bem sucedida (luta contra a miséria, educação, tecnologia, ciência etc) e apontarão, com razão, para a hipocrisia e política de dois pesos e duas medidas do Ocidente, que incomoda o país por seu programa nuclear enquanto fecha os olhos para Israel e Paquistão, detentores da bomba atômica e alheios a qualquer esforço de não proliferação nuclear. Em nome da pluralidade de perspectivas, acho válido ouvir até opiniões extremas, como a do tiozinho taxista que vibrou ao saber que eu era brasileiro (“país amigo”) para em seguida destilar o tradicional veneno do “morte aos EUA” e “morte a Israel”. Pura retórica. Praticamente não há registro de violência física por parte de cidadãos comuns contra estrangeiros no Irã. Além disso, as pessoas mais conservadoras e tradicionais muitas vezes são as mais generosas e acolhedoras, principalmente no interior do país.

Na outra ponta da sociedade, os iranianos mais liberais farão de tudo para convencer o gringo de que boa parte da população odeia o governo/regime e gostaria de viver ao modo ocidental. Estrangeiros, principalmente em Teerã, costumam ser convidados para festas privadas onde rolam bebida, drogas e pegação. Essa parcela da população, geralmente com renda mais alta e mais acesso a cultura, tem padrão de consumo parecido com o de americanos e europeus e vive querendo tirar férias ou estudar no exterior. Mas mesmo nesse meio, predomina a vontade de compartilhar o amor à pátria com os estrangeiros.

No fundo, os iranianos gostariam mesmo é que esse carinho com os estrangeiros fosse correspondido.

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Paulo Coelho - amor e ódio no Irã

Por Samy Adghirni
29/05/12 09:34

Paulo Coelho, o escritor brasileiro que mais vende no mundo, tem uma relação de amor e ódio com o Irã.

Paulo Coelho em frente a uma mesquita em sua visita ao Irã, em 2000 (Luiz Antônio Ryff/Folhapress)

Coelho é sucesso de público na terra dos aiatolás desde os anos 90. Seus livros eram impressos e reimpressos aos milhões, mas sem a menor regulamentação sobre cópias e traduções _e portanto, sem os lucros devidos e merecidos. A ausência de direitos autorais para obras estrangeiras foi decretada pelo próprio imã Khomeini, fundador da República Islâmica, em 1979. Aos poucos foi ficando claro para Coelho que era imprescindível botar ordem no mercado iraniano para transformá-lo em mina de ouro de fato.

A anarquia começou a ser combatida quando o brasileiro se aproximou do editor Arash Hejazi, um médico de formação e amante de literatura que acabou apontado como o único tradutor reconhecido. A parceria ganhou carimbo oficial em 2000, quando o regime convidou e estendeu o tapete vermelho para Coelho, que se tornou o primeiro escritor não muçulmano a ser recebido pelo governo teocrático. O todo poderoso Ministério da Cultura e Orientação Islâmica decretou então que Hejazi e sua editora, Caravan Publishing, eram os únicos formalmente autorizados a traduzir, distribuir e vender os livros de Coelho no país. O autor carioca originou, portanto, a primeira lei de direitos autorais da República Islâmica. O escritor conhecido como mago, visto por alguns como bruxo, conseguira o impossível: a benção de um regime que, anos antes, emitira um decreto condenando a morte o escritor indiano-britânico Salman Rushdie, por seu polêmico “Versos Satânicos”.

A relação ficou estremecida quando, na véspera da eleição presidencial de 2005, agentes do regime confiscaram todas as cópias do então recém-lançado “O Zahir” disponíveis na Feira do Livro de Teerã, um dos maiores eventos literários do Oriente Médio. Não houve justificativa formal. O editor Herash Hejazi, próximo dos reformistas, enxergou sinais de perseguição política por parte da ala conservadora que, semanas depois, levaria à Presidência um certo Mahmoud Ahmadinejad.

Nos anos seguintes, Coelho e Hejazi continuaram faturando no Irã, mas adotaram perfil baixo. O governo por sua vez também não voltou a incomodá-los, talvez porque Ahmadinejad tenha buscado desde o início do mandato aproximar-se do Brasil de Lula.

Mas a coisa desandou a partir de 2009, quando o regime esmagou megaprotestos contra a reeleição supostamente fraudulenta de Ahmadinejad. Num incrível acaso, Hejazi acabou sendo associado a um dos momentos mais marcantes da repressão: a morte da bela Neda Agha Soltan, 26, registrada em imagens chocantes disponíveis para quem quiser ver na internet.

Hejazi participava de um protesto numa rua a oeste de Teerã no momento em que Neda foi atingida por um tiro no peito, que acredita-se ter sido disparado por um basiji, miliciano voluntário pró-regime. Os vídeos no Youtube mostram claramente Hejazi (afinal, médico de carreira) tentando acudir Neda, que revira os olhos em sua agonia.

O “flagra” custou caro a Hejazi. Ele foi obrigado a se refugiar no Reino Unido e teve a sua licença de editor e tradutor cassada. Sobrou para Paulo Coelho, que não somente perdeu o amparo oficial como também acabou associado a Hejazi e, portanto, à oposição reformista. O brasileiro só soube do veto a seus livros no ano passado, quando publicou em seu blog um email do editor avisando da proibição. O caso preocupou até o governo Dilma, que criticou o Irã pela suposta medida. O regime de Teerã, preocupado em manter boas relações com o Brasil, negou qualquer medida contra Coelho.

Três semanas atrás fui à Feira do Livro de Teerã, promovida de cabo a rabo pelo regime, para checar se os livros de Paulo Coelho estavam disponíveis um ano e meio após a polêmica. E como em quase tudo no misterioso Irã, não encontrei resposta clara. A moça num dos balcões de informações da feira achou rapidinho no sistema as referências pedidas. Saí de lá com indicações de três estandes que vendiam livros do brasileiro.

O gerente do primeiro estande mostrou exemplares de “O Alquimista” e “O Zahir” e disse, orgulhoso, que sua editora era a única autorizada a traduzir Paulo Coelho após o fim da licença à Caravan _o que era mentira pois vi várias outras editoras reproduzindo as obras. Uma mulher no segundo estande apavorou-se com meu pedido e contou que agentes do governo vetaram categoricamente a venda dos livros do brasileiro, a quem que teriam chamado de “satanista”. Mesmo assim, ela sussurrou: “se você quiser, eu posso descolar qualquer livro do Coelho, mas a gente precisa fazer isso na surdina”. O dono da editora no terceiro estande me explicou que, sim, Paulo Coelho está proibido, mas o governo faz vista grossa. De qualquer maneira, me disse o empresário-editor, “a moda passou”, e as vendas do autor brasileiro hoje são irrisórias perto do que já foram.

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Belezas e encantos do Irã

Por Samy Adghirni
23/05/12 07:37

Aviso a todos os leitores e leitoras deste blog que há meses vêm pedindo um texto sobre os encantos que o Irã oferece ao visitante estrangeiro: leiam o caderno Turismo a ser publicado amanhã, quinta-feira 24 de maio, na edição impressa da Folha de S.Paulo.

Vista da praça Real em Isfahan (Marina Mesquita-26.abr.2012/Folhapress)

 

O suplemento, com fotos exclusivas, trará reportagens especiais redigidas após um tour que me levou a Isfahan, Yazd, Shiraz, Persépolis e Pasárgada.

O giro pelo interior do Irã durou uma semana e confirmou a ideia de que o Irã é um país belíssimo que surpreende pela diversidade geográfica, arquitetônica, social e cultural. Cada cidade tem seu mundo, seu astral, seu jeito.

Isfahan, com construções ao mesmo tempo majestosas e delicadas, tem uma beleza no estilo “tapa na cara”, como o Rio de Janeiro ou Veneza. O encanto é imediato. Já Yazd, cidadezinha multimilenar no meio do deserto, vai se desvendando aos poucos. As ruas apertadas e sem janela da cidade antiga parecem cenário de filme. Mais ao sul, Shiraz é famosa pelos jardins refinados e por abrigar os túmulos de dois dos maiores ídolos nacionais: os poetas medievais Hafez e Saadi. Nos arredores de Shiraz ficam as ruínas de Persépolis e Pasárgada, vestígios do grandioso império persa-aquemênida. Teerã, muitas vezes esnobada pelos turistas, prima pelos museus e magníficas montanhas na sua volta.

As impressões das quatro pessoas (três mulheres e um homem) que já vieram me visitar são um bom indicador da ideia geral deixada pelo Irã na cabeça de turistas brasileiros acostumados a viajar pelo mundo.

A primeira, que já esteve aqui duas vezes, se incomodou com a desorganização generalizada, mas achou o país lindo e adorou passear num ambiente onde a segurança é total. A chance de ser assaltado ou agredido é de fato próxima do zero. A segunda visita ficou apavorada com o trânsito, mas se encantou com a comida e com a gentileza dos iranianos. A terceira não conseguiu se adaptar ao uso do véu mas ficou em êxtase diante da materialização ao vivo e a cores de tudo que ela havia estudado na escola sobre o esplendor da Pérsia antiga. A quarta pessoa estranhou as muitas restrições ambientes, mas achou o nível intelectual geral dos iranianos de classe média mais alto que no Brasil _apesar de alguém ter tocado “Ai se eu te pego” numa festinha privada.

O fato é que se você topar visitar um país verdadeiramente original e exótico, sem McDonald’s nem balada, o Irã vale muito a pena. Um amigo costuma dizer que a República Islâmica é o último destino aventura acessível (convenhamos que turismo na Somália, Afeganistão, Iraque ou Coreia de Norte é loucura).

Mais relatos do Irã e orientações de viagens na Folha de amanhã.

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A polícia moral iraniana em ação

Por Samy Adghirni
16/05/12 11:47

Hoje vi pela primeira vez a polícia moral iraniana em ação contra uma mulher com aparência imprópria para os padrões legais da República Islâmica. Já havia me acostumado a ver os agentes de uniforme militar verde escuro atentos nas principais esquinas de Teerã, mas nunca tinha presenciado uma abordagem.

Iranianas são detidas pela polícia em Teerã, no Irã, acusadas de não se cobrirem o bastante em público

A cena ocorreu quando eu voltava a pé para casa no fim da tarde, sob um sol intenso de véspera de verão, após uma entrevista num café. Subia a rua Valiasr, tema de um texto postado em março neste mesmo blog, até enxergar uma pequena e aparentemente tensa aglomeração poucos metros à minha frente na calçada.

Compreendi rapidamente o que estava acontecendo ao ver um policial moral e uma mulher usando chador preto, o véu integral, cercando outra mulher, com visual pra lá de ocidental, numa barraquinha de suco de frutas. Não restou dúvida: a senhora coberta era uma policial feminina prestes a efetuar uma prisão sob supervisão do agente masculino. Afinal, o regime proíbe qualquer contato físico entre sexos opostos em locais públicos.

Para observar a cena sem chamar a atenção, parei do lado da barraquinha, peguei meu celular e fingi estar mandando um SMS. Passo facilmente por iraniano, nessas horas isso ajuda um monte.

A mulher abordada tinha todos os “vícios” da típica infratora: maquiagem berrante, roupa colorida, casaco que bate na coxa em vez do joelho e, principalmente, um véu cobrindo apenas a parte de trás da cabeça, deixando à mostra cabelos tingidos de loira. A moça, entre seus 25 e 30 anos, pediu aos policiais que ao menos a deixassem pagar o suco consumido.

Em seguida, a mulher de chador a acompanhou até a van da polícia moral, estacionada na frente da barraquinha. O veículo, facilmente reconhecível pelas laterais verdes, estava atrapalhando o trânsito.

Na frente da van estava um dos reluzentes sedã Mercedes usados pelos policiais masculinos _armados_ para dar apoio aos agentes de abordagem, quase todos mulheres. Alguém um dia me explicou que o carro de reforço foi implementado pelo regime porque a turma da van às vezes não dava conta de enfrentar sozinha eventuais ataques por parte de cidadãos indignados que queriam livrar as mulheres de ser embarcadas.

A moça levada na van estava acompanhada de uma amiga, que não foi incomodada pela polícia. Assim que a van partiu, a amiga pegou o celular e ligou, presumo, para algum conhecido para relatar o ocorrido.

A cena ocorreu em meio à indiferença geral. Fiquei com a impressão de que as únicas pessoas que acompanharam a abordagem eram funcionários das lojas vizinhas.

Por mais chocante que possa parecer para um ocidental, a história não leva a nenhum desfecho trágico. Embora eu jamais tenha presenciado cena semelhante, conheço muitas meninas que passaram pela mesma situação. O roteiro é clássico. As infratoras batem boca com as policiais ou choram no caminho até a delegacia. Ao chegarem, ouvem um sermão do delegado e em seguida algum parente ou amigo é convidado a levar uma roupa mais apropriada para que a moça possa sair de lá sem problema. Peças inapropriadas são confiscadas ali mesmo. A maquiagem, obviamente, precisa ser retirada. Por fim, as moças assinam antes de ser liberadas um termo se comprometendo a ter mais cuidado com a própria aparência.

Reincidentes às vezes enfrentam a Promotoria, mas o caso geralmente é resolvido com uma multa.

Os relatos do que acontece nas delegacias enquanto as moças esperam que alguém venha buscá-las são surreais. Há policiais que paqueram as infratoras. Alguns agentes pedem desculpas, alegando estar apenas fazendo o que a lei manda. A namorada de um amigo que já passou horas na delegacia conta que uma policial lhe confidenciou existirem cotas de mulheres a serem abordadas por dia.

A polícia moral foi criada logo após a Revolução Islâmica de 1979, com o objetivo de caçar o “vício social” e a “corrupção moral”. Homens também são visados. Short e bermuda, nem pensar. É curioso ver marmanjos usando calça para jogar futebol na rua. Camisetas baby look ou com motivos impróprios também são caçadas. Já ouvi que um jovem com uma camiseta do Michael Jackson foi obrigado a entregá-la à polícia, que a rasgou na frente dele. Os agentes entregaram ao rapaz outra peça, surrada e suja, para que não ficasse com metade do corpo à mostra.

Casais de namorados são outro alvo preferencial. Ai de quem for pego num carro com sexo oposto que não seja parente. Os agentes também não hesitam em invadir as casas de quem estiver fazendo festança com música ocidental e bebida.

Isso dito, a chance de ter problema com a polícia moral existe, mas não há um clima de paranoia como se poderia esperar. Conheço moças que andam por aí enfeitadas como se estivessem na balada e com véu quase na nuca e nunca foram levadas à delegacia.

Engana-se quem pensa que o país inteiro é contra a polícia moral. No bairro onde moro, área de classe média alta ao norte de Teerã, é provável mesmo que quase todo mundo odeie esse rigor. Mas, pelo que pude ver e sentir em seis meses no país, minha impressão é de que a sociedade _religiosa, rural, agrícola_ é muito conservadora. Numa avaliação impressionista, eu diria que metade dos iranianos, ou quase isso, apoiam a rigidez moral do regime.

Estrangeiros geralmente não são incomodados. No máximo, uma advertência verbal para lembrar às gringas a maneira adequada de se vestir no Irã.

Todo mundo sabe que há períodos mais repressores e outros, mais liberais. No início dos anos 2000, sob governo do presidente reformista Mohammad Khatami, o ambiente era bem mais permissivo. Casais paqueravam em público e eram raros os casos de abordagem por roupa imprópria.

Eleito em 2005, o conservador Mahmoud Ahmadinejad apertou o cerco. Mas desde então ele se revoltou contra os excessos da polícia moral. Por incrível que pareça, Ahmadinejad é hoje o mais liberal na cúpula do regime. Ele inclusive chegou a defender que as mulheres pudessem frequentar estádios. Até hoje ele critica a obsessão da polícia moral com o vestuário feminino. Mas quem manda mesmo no país é o líder supremo, aiatolá Ali Khamenei.

Encerro este post com um trecho de uma entrevista que me foi dada em fevereiro, em meio à celebração do 33º aniversário da Revolução Islâmica, por Mohammad Bagher Khoramshad, diretor-geral do todo poderoso Ministério da Cultura e da Orientação Islâmica.

KHORAMSHAD: “Na época de Khatami [1997-2005], as mulheres podiam usar roupa colorida e vestuário mais livre. As famílias estavam tranquilas em relação a isso. Mas, no final do governo de Khatami, havia mulheres que chegavam a extremos, e essas mesmas famílias já não achavam isso tão legal. Muita gente queria que algo fosse feito, e essa necessidade de voltar aos princípios necessários da Revolução Islâmica é uma das razões que levaram à eleição de Ahmadinejad. Havia uma demanda das pessoas por mais espiritualidade e para deixar de lado essa liberdade exagerada. Isso dito, se houver excessos no governo atual em relação ao ambiente mais fechado, então poderemos voltar a regras mais moderadas.”

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