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Samy Adghirni

Um brasileiro no Irã

Perfil Samy Adghirni correspondente em Teerã.

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Fotos de um Irã surpreendente

Por Samy Adghirni
31/10/12 09:46

Dia desses estava num taxi indo para o centro de Teerã quando vi, ao passar em frente à sinagoga Abrishami, um grupo de jovens judeus conversando tranquilamente, quipá na cabeça, no meio da rua. Me lembrei que o Irã tem a segunda maior comunidade judaica no Oriente Médio depois de Israel. Apesar de algumas restrições, judeus iranianos praticam sua fé sem sofrer maiores incômodos. Já escrevi a respeito em reportagem publicada em junho na versão impressa da Folha, mas essa realidade, como tantas outras acerca do Irã, continua desconhecida da maior parte dos brasileiros. O fato é que a imagem externa do Irã é moldada em grande parte pelas tensões entre Teerã e as potências ocidentais. E essa imagem externa não poderia ser pior.

Para quebrar os estereótipos e humanizar uma nação estigmatizada por seus líderes, a lendária revista americana “The Atlantic” compilou em seu site no início deste ano uma série de 42 fotos de agências de notícias internacionais mostrando aspectos inusitados da vida no Irã. A galeria tem gente na praia, competição de robô em gincana científica, pilotos de motocross, cristãos iranianos e belas paisagens, entre outros retratos. Nem crítica ao Irã, nem ode ao país, apenas uma visão diferente. Confira aqui:

http://www.theatlantic.com/infocus/2012/01/a-view-inside-iran/100219/

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Beleza e lágrimas na capital religiosa do Irã

Por Samy Adghirni
15/10/12 08:01

Voltei há pouco de Mashad, no extremo nordeste do Irã, cidade desconhecida da maioria dos brasileiros mas que é uma metrópole de 3 milhões de habitantes e um dos maiores e mais visitados santuários no mundo.

O aeroporto de Mashad, ou Meshed, tem voos internacionais, os hotéis no centro são modernos e caros e as ruas fervilham de peregrinos estrangeiros falando árabe, inglês, pashtun, urdu etc. É de longe a cidade mais limpa, bem cuidada, florida e ordenada que visitei em quase um ano de andanças pelo Irã.

Mashad abriga o túmulo do imã Reza, descendente direto do profeta Maomé e, por isso, é membro do grupo que originou o xiismo. Aproveito a sua atenção, caro leitor, para corrigir uma inverdade amplamente difundida no Brasil, pela qual xiitas seriam mais “radicais” que sunitas. Pura bobagem. Xiitas não são e nunca foram mais extremistas que os sunitas. Aliás, hoje o grupo mais violento entre facções islamitas é a Al Qaeda, sunita. A rixa entre sunitas e xiitas, duas fés com liturgias e crenças opostas ao ponto de às vezes parecer religiões diferentes, partiu da discórdia acerca da sucessão do profeta Maomé, fundador do islã, após sua morte no século 7. Os sunitas (partidários da “suna” = tradição) acreditavam que os companheiros de Maomé eram os mais qualificados para tomar a frente dos fieis. Já os xiitas (partidários da “xia” = herança) formaram um grupo dissidente que achava que só quem era parente de sangue de Maomé poderia liderar a comunidade.

Pois bem, voltemos então ao imã Reza.

Por pertencer à linhagem familiar do profeta e por sua trajetória de devoção, justiça e martírio, o imã Reza, nascido em Meca (atual Arábia Saudita), é tido como um dos santos mais importantes do xiismo. A história o retrata como um homem simples, que tratava a todos com humildade e respeito, e tinha uma generosidade tamanha que a maioria das pessoas não entendia. Morreu na Pérsia (atual Irã), a milhares de quilômetros de casa, envenenado por um califa sunita invejoso da popularidade que permitia a Reza engrossar cada vez mais o número de muçulmanos xiitas. O corpo foi enterrado ali mesmo. O túmulo virou santuário, e o santuário, de ampliação em ampliação, tornou-se uma das maiores mesquitas do mundo em superfície (mais de 598 mil m²) e capacidade (700 mil fiéis). Seu domo de ouro domina Mashad.

Cravado no centro da cidade, o complexo da mesquita abriga enormes pátios, várias salas de oração, biblioteca, museu, centro de estudos e até um supermercado. A arquitetura é ao mesmo tempo grandiosa e refinada. Os mosaicos de espelhos e azulejos em tom predominante azul-turquesa são pura obra de ourives. Os corredores do prédio central cruzam diversos portões cobertos de ouro até chegar ao túmulo do imã Reza, que fica dentro de um cubo de ouro e prata. A demarcação entre as alas masculina e feminina passa pelo túmulo, fazendo com que multidões de homens e mulheres se espremam na volta do cubo sem se tocar.

Sempre cheio, o mausoléu do imã Reza reflete a essência do islã xiita: passional, intenso e místico. A qualquer hora ou da noite, multidões de homens e mulheres absorvidos pela dor do martírio do imã choram copiosamente ao se espremerem num empurra empurra asfixiante até conseguir tocar o túmulo. Fieis acreditam que isso trará sorte e benção – prática rejeitada por sunitas puritanos, que a enxergam como superstição.

Todos, absolutamente todos os tipos de pessoas passam por lá. Velhos, crianças, cadeirantes, imigrantes afegãos, peregrinos milionários, mendigos, bombadões… Na ala feminina, a mesma diversidade. Até mesmo piriguetes cujo chador deixa à mostra alguns fios de cabelo oxigenado rezam com devoção comovente. Convém não dar as costas ao túmulo, por isso todo mundo se desloca de lado ou andando para trás, gerando esbarrões constantes.

Esse movimento incessante e poderoso é monitorado por dezenas de voluntários reconhecíveis pelo uniforme preto e pelo espanador colorido com o qual tentam coordenar a maré humana. Os voluntários são médicos, advogados, comerciantes ou banqueiros, membros de influentes famílias locais que dedicam ao menos um dia da semana ao santuário. Há centenas de pessoas na fila esperando um dia ter a honra de integrar a grade de trabalhadores a serviço do imã Reza.

Também é uma honra -e uma benção- fazer doações ao mausoléu, que na prática é hoje uma verdadeira fábrica de dinheiro. Há vários pequenos escritórios espalhados pelo complexo onde fieis podem fazer depósitos _o que quiserem, e somente se quiserem. Uns deixam algumas envelhecidas notas de pouco valor, outros doam tijolos de dólares. O próprio túmulo serve de depósito onde as pessoas inserem a toda hora dinheiro e joias. Há relatos de ricos empresários que morreram deixando fortunas ao imã Reza, que também é proprietário, por meio da diaspora iraniana, de prédios e terrenos nos EUA e na Europa. A fundação que administra o santuário investe em agricultura e indústria e tem um patrimônio avaliado em bilhões de dólares.

Essa prosperidade, alimentada tanto pelas doações quanto pelos cerca de 12 milhões de peregrinos do mundo inteiro (inclusive dos EUA) que passam a cada ano pela cidade, irradia-se por toda Mashad, cheia de carrões, gente bem vestida e lojas de todo tipo (entre as quais grifes ocidentais como Benetton e Diesel). Alguns restaurantes locais estão entre os melhores que experimentei no Irã.

O curioso é que, apesar de ser chefiado por um alto clérigo ligado ao regime, o santuário mantém-se alheio às baixezas da política. Não é um lugar de manifestações partidárias nem de exaltação governista. Parece haver um pacto implícito pelo qual todo mundo em Mashad concorda em que o imã Reza transcende clivagens e ideologias. Diz-se que o presidente Ahmadinejad forçou a barra até conseguir visitar o santuário após sua controversa reeleição, em 2009, pois a turma do mausoléu não o queria por lá. Mais curioso ainda é saber que o aiatolá Ruhollah Khomeini, fundador da República Islâmica, jamais esteve no santuário enquanto dirigiu o Irã (1979-1989).

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Relato de uma coletiva com Ahmadinejad

Por Samy Adghirni
03/10/12 14:02

O aviso veio por SMS na manhã do último domingo, dia útil aqui no Irã. O governo recorria mais uma vez às mensagens de celular para avisar que o presidente Mahmoud Ahmadinejad falaria com a imprensa na tarde do dia seguinte. Nenhuma dúvida de que o tema central da entrevista coletiva seria a queda vertiginosa do rial, a moeda nacional, que perdeu 40% em uma semana, causando pânico generalizado num país já submetido a inflação e desemprego.

Mesmo na reta final de seu segundo mandato e impedido por lei de se candidatar novamente na eleição de junho, Ahmadinejad precisava reagir à artilharia pesada das facções inimigas dentro das próprias fileiras do regime. Quem acompanha a política interna iraniana sabe que o presidente está isolado e enfraquecido por adversários poderosos que o acusam de ser incompetente na gestão econômica e de defender ideias liberais incompatíveis com a moral estatal (sim, caro leitor, Ahmadinejad é hoje o mais moderado dirigente iraniano, ao menos em matéria de liberdades individuais).

Atendendo a recomendação do SMS, cheguei às 13h da última segunda-feira no complexo ao centro de Teerã que abriga o governo e as residências oficiais de seus mais altos dirigentes. Os prédios, com poucos andares e enfileirados ao longo de ruas fechadas para o trânsito, são sisudos e sem luxo. A coletiva começaria uma hora depois, uma vez feitos todos os procedimentos de segurança, muito menos rigorosos do que se espera no coração do regime iraniano.

O presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, concede entrevista a jornalistas em Teerã (Atta Kenare/AFP)

Cerca de 150 jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas, repórteres iranianos e estrangeiros como eu, rapidamente abarrotaram uma grande sala de paredes brancas e teto altíssimo, espécie de sala de conferências enfeitada para a ocasião. Em cima do palco, a mesa onde o presidente falaria tinha um arranjo de enormes flores coloridas. Na parede de trás, um cartaz anunciava o evento em inglês e farsi: “Conferência de Imprensa do Senhor Presidente da República Islâmica do Irã, outubro 2012”. Como a entrevista atrasou, repórteres ali presentes matavam o tempo batendo papo sobre tudo e nada. Por volta das 15h30, uma agitação se espalhou entre os homens do presidente na sala, seguranças e assessores reconhecíveis pelos ternos escuros sem gravata e barba rala, prenunciando a chegada do chefe.

Ahmadinejad entrou na sala a largas passadas e logo acomodou-se no palco. Parecia mais magro e abatido do que nas outras vezes em que estive perto dele. Seu maxilar estava tenso quando todos se levantaram para o hino nacional. Enquanto altos falantes executavam a melancólica e bela melodia, um telão descido do teto projetava rostos dos soldados mortos na guerra Irã-Iraque (1980-1988) e imagens das conquistas tecnológicas do país, mas sem menção explícita ao programa nuclear.

Como esperado, a primeira pergunta, formulada por uma jovem repórter iraniana, foi sobre a crise cambial. Era o início de uma apaixonada, aguerrida e às vezes raivosa autodefesa de Ahmadinejad, propalada pela linguagem direta dos que não têm mais nada a perder. Ao longo de mais de duas horas e meia, o presidente disparou críticas e atropelou a posição oficial do Estado sobre vários temas.

Ele admitiu que as sanções estão, sim, fazendo muito mal ao país ao impedirem a entrada de moeda estrangeira. Mas ele culpou tantos as potências ocidentais quanto os inimigos internos que, segundo ele, manipulam o câmbio para minar seu governo: “Há um grupo de pessoas que consegue alterar a cotação mediante simples telefonema”.

Ahmadinejad atacou seu arqui-inimigo Ali Larijani, presidente do Parlamento, que o acusou dias atrás na imprensa de ser responsável por 80% dos problemas econômicos nacionais ao supostamente abusar de programas sociais e obras faraônicas: “Ele deveria pôr a mão na massa e ajudar em vez de dar entrevistas”.

Ahmadinejad riu algumas vezes, fez piada com jornalistas que tentavam furar a fila das perguntas e mostrou-se disposto a responder tranquilamente todas os questionamentos sem tabu. O clima era o de uma conversa informal, zero cerimônia. Mas o homem parecia mesmo nervoso, gesticulando muito e falando freneticamente, na contramão do jeitão sereno ostentado em entrevistas na TV. O presidente queria mesmo era acertar as contas.

Outros disparos contra rivais:

“Fazemos reuniões importantes para tentar resolver os problemas do país. Concordamos e planejamos várias coisas, mas logo na saída dos encontros algumas pessoas aproveitam o primeiro microfone para detonar o que foi acertado.”

“[Alguns setores] parecem estar jogando contra e não entendem que é preciso acompanhar as decisões do governo.”

“Quando tudo vai bem, todo mundo quer crédito. Quando há problemas, só eu tenho culpa.”

“Quando fui prefeito de Teerã, um juiz mandou cortar algumas árvores para construir um prédio, e eu fui muito criticado por isso. Hoje vejo muitas árvores cortadas sem que ninguém reclame do atual prefeito.”

“Só eu recebo tantas críticas. Imaginem como reagiriam outras pessoas se sofressem os mesmos ataques. Eu não ligo, deixo falar o que quiserem a meu respeito, desde que na prática trabalhemos juntos na mesma direção.”

“Se não me quiserem mais, então escreverei apenas uma linha para dizer: ‘Adeus'”

Houve também arriscados posicionamentos políticos.

Sobre a prisão do seu assessor de imprensa e o fechamento de um jornal por supostas ofensas ao Estado: “O que foi ordenado pelo Ministério da Cultura e Orientação Islâmica foi um erro. A tolerância e a liberdade devem ser absolutas.”

Sobre as constantes críticas ao seu governo formuladas pela agência de notícias Fars, supervisionada pela elite militar: “Uma certa agência de notícias relacionada aos órgãos de segurança deveria parar de atacar o governo que a financia”. Um repórter da Fars rebateu as críticas, iniciando um bate boca cheio de sarcasmo com o presidente.

Sobre pedidos de setores ultraconservadores por regras mais rígidas no uso do véu: “As mulheres iranianas são as mais puras do mundo, é preciso confiar nelas para que usem o véu como bem entendem”.

Sobre a liberdade em geral: “Somos uma grande nação milenar, e podemos conviver muito bem com diferenças de opiniões e ideias. Ninguém deve impor sua visão.”

Claro, houve também os esperados ataques aos EUA e Israel, mas foi quase tudo mais do mesmo, com a exceção de uma frase sobre o Estado judaico que chamou minha atenção. “Se [Israel] se comportar como um bom menino, talvez consiga um lugar [na região]”. Soou como um possível recuo na sua posição tradicional que consiste em descartar de forma irrestrita e absoluta a existência do Estado judaico.

Na manhã seguinte à entrevista, protestos irromperam pelo centro de Teerã contra a crise econômica. A ira esteve claramente voltada contra o presidente. Houve tropa de choque nas ruas, pancadaria e algumas prisões. O presidente do Parlamento teve que cancelar planos de chamar a imprensa para responder a Ahmadinejad. Há quem diga que os protestos foram orquestrados pelos rivais do presidente para fomentar a desordem.

O Irã vive dias agitados.

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Pobre Afeganistão

Por Samy Adghirni
24/09/12 13:36

Após uma semana de imersão no caótico, perigoso e insalubre Afeganistão, onde fiz uma série de reportagens para a Folha, voltei a Teerã com a sensação de estar desembarcando em Zurique ou alguma outra metrópole de primeiro mundo. Aeroporto com painéis eletrônicos, autoestrada impecável e iluminada, ruas limpas e floridas, prédios reluzentes, comércio moderno, mulheres com rosto à mostra… o Irã, apesar dos numerosos e graves problemas, é uma ilha de estabilidade e razoável desenvolvimento numa região marcada por guerra e miséria.

O contraste saltou aos olhos logo que o Airbus da empresa iraniana Mahan Air pousou em Cabul, numa recente manhã de sábado. Sentado na janela, vi dezenas de aviões militares americanos, de todos os tipos e tamanhos, estacionados em frente a imponentes hangares. Surgidos do nada, dois helicópteros de combate Apache aterrissaram lado ao lado. Ao sair do aeroporto, enxerguei, parado no céu, um dos zepelins brancos usados pela CIA para monitorar Cabul. Esse cenário jogou na minha cara, ainda entorpecida de sono por ter saído de casa muito cedo, que eu estava a partir de agora numa zona de conflito.

A capital afegã tem esgoto a céu aberto e montanhas de lixo por toda parte. Um dos lugares mais imundos é o ressecado leito do rio que corta a cidade, hoje um lixão cujo cheiro embrulha o estômago. Me peguei pensando em como beiraria o ridículo a ideia de consciência ambiental num lugar onde nem a capital tem uma verdadeira rede de canalizações. Cuspir no chão e urinar onde der são práticas comuns _para os homens, obviamente.

Também refleti sobre o non-sense que seria cobrar dos afegãos que respeitem regras do trânsito ou até mesmo que tirem carteira de motorista, algo quase inexistente. As ruas, cobertas de buracos até nos bairros onde moram os ricos, não têm sinalização nem faróis nem postes de iluminação. Como se não bastasse, há valas abertas no meio e nas laterais das avenidas, imagino que para canalizar a lama em dias de neve e chuva. A capenga e antiquíssima perua Mazda do meu guia local caiu feio numa dessas valas, da qual só saiu graças a um grupo de jovens que nos ajudou a literalmente carregar o carro de volta para o asfalto. Três décadas de guerra (invasão soviética; guerra contra os soviéticos; guerra civil; invasão americana) deixaram o país sem a mínima estrutura ou produtividade econômica perene.

 Claro, nem tudo é tão precário. Há prédios novíssimos e muitos comerciantes dizem estar fazendo bons negócios graças à injeção na economia afegã de bilhões de dólares em ajuda internacional. Condomínios de luxo estão em construção, telefones celulares e internet funcionam bem. De noite, enormes prédios brilham com neons coloridos anunciando “wedding halls”, pavilhões alugados para os casamentos das famílias mais abastadas, o chique do chique na aristocracia local.

 

Moradores de Herat, a terceira maior aglomeração urbana do Afeganistão, fazem compras no comércio do centro da cidade

 

Já que o Afeganistão, na sua condição de país ocupado, abriga muito mais expatriados ocidentais que o Irã, é natural que o nível dos hotéis e restaurantes voltados para gringos em Cabul seja bastante superior ao de Teerã. Numas dessas bolhas onde os estrangeiros se escondem da realidade afegã, comi um extraordinário cheese-burguer com batata frita, sonho que até hoje não consegui realizar em terras iranianas.

Mas fora desse circuito trilhado por afegãos bem de vida e trabalhadores estrangeiros, a realidade é terrível. Três quartos da população não sabe ler. Serviços públicos são pavorosos. A expectativa de vida da mulher afegã não chega a 42 anos de idade, ou seja vinte anos a menos que a média mundial. Milhares de pessoas que fugiram da violência no interior vivem amontoadas em condições desumanas em acampamentos nos arredores da capital. Pior de tudo é o fato de serem cidadãos comuns as maiores vítimas da guerra. Morrem a cada ano às centenas em atentados dos rebeldes Taleban e ataques por parte das forças americanas e aliadas.

Os EUA prometem retirar suas tropas até o fim de 2014, entregando ao governo afegão o controle pela segurança do próprio país. França, Reino Unido, Alemanha e demais países também levarão seus soldados de volta para casa. Mas ninguém pode sustentar em boa fé que a vida dos afegãos irá melhorar no curto ou médio prazo.

Do outro lado da fronteira oeste do Afeganistão reina o grande e poderoso vizinho persa. Movida a petrodólares, a República Islâmica do Irã permanece na lista das 20 maiores potências econômicas mundiais, apesar de estar há três décadas sob sanções comerciais e financeiras. Sim, há muitos iranianos na pobreza, mas o país tem vários bons indicadores a seu favor. Não é à toa que o Irã é o destino preferido dos refugiados afegãos que fogem da guerra.

A taxa de analfabetismo entre iranianos é muito baixa. A estrutura social assemelha-se em alguns aspectos à realidade de países europeus _alto nível de instrução, elevada expectativa de vida, baixa natalidade, muitos divórcios. O nível do ensino, universitário principalmente, enche de orgulho até os mais ferozes opositores. Mulheres trabalham, dirigem, estudam, batem boca com a polícia e podem pedir divórcio. As iranianas por lei cobrem o cabelo, mas aqui não existe a burca, aquele indizível pano que cobre o corpo todo, deixando apenas uma grade de tecido na altura dos olhos. A burca no Afeganistão deixou de ser obrigatória, mas é difícil uma mulher que não a use, principalmente fora de Cabul. São raras as afegãs inseridas na vida acadêmica ou profissional.

Os problemas do Irã são outros.

Hoje, por exemplo, a internet amanheceu ainda mais restrita. O governo admitiu ter censurado o Gmail e até o Google, em meio a planos de criar uma internet nacional, cortada do mundo em nome da preservação da segurança nacional. O Irã pode até não ter criminalidade nem sequestros, mas continua com vans da polícia moral em quase cada esquina. Os reformistas, principal força opositora, foram reduzidos ao silêncio. Dias atrás, o governo jogou na prisão a filha do bilionário aiatolá e ex-presidente Ali Akbar Hashemi Rafsanjani (1989-1997) por ter criticado a situação de direitos humanos no país. Na noite de hoje quem foi para a cadeia é um filho de Rafsanjani, sob acusação de ter fomentado protestos antirregime após a controversa reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad, em 2009.

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Pérolas de música iraniana

Por Samy Adghirni
10/09/12 15:31

Canto tradicional, flauta, rock, blues… o Irã tem uma produção musical farta, variada e original, que transcende o tempo e a política.

O governo teocrático implementado após a Revolução Islâmica de 1979 impõe algumas proibições, como o canto feminino. O regime também exige que todo álbum seja submetido à aprovação do Ministério da Cultura e Orientação Islâmica antes de ser lançado no país. Mas na verdade a música, ao contrário do cinema, está longe de ser uma preocupação séria das autoridades. Ou seja que na prática o Irã tem uma oferta de música nacional impressionante.

Compartilho com vocês alguns achados, do tradicional ao moderno. Dispensei o tuntistun pop horrendo que toca na maioria dos taxis de Teerã.

Reza Shajarian, um dos maiores nomes da música tradicional persa ainda em ação.

Voz poderosa e melancólica (longa introdução antes do canto)


Sharam Nazeri, música tradicional persa, canta em farsi e curdo

Dramaticidade na interpretação, bela complexidade musical (começa pra valer depois de 2 minutos e 25 segundos)


Ghamar Ol-Molook Vaziri, primeira cantora iraniana a apresentar-se em público e sem véu, morreu em 1959

Voz técnica e poderosa (a reprodução da gravação antiga é de má qualidade)


Hasan Kazaei, o grande mestre do ney, espécie de flauta típica da Pérsia

A variedade que Kazaei tira de uma simples flauta é impressionante


Bomrani, sexteto de blues e country que faz sucesso no circuito underground de Teerã Ensaio de blues


Clipe caseiro divertido, numa pegada mais country


Pooya Mahmoodi, músico que mistura rock, blues e canto tradicional persa

Moderno e bem produzido


Recente reportagem da BBC sobre a cena musical iraniana


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O grande show do Irã

Por Samy Adghirni
28/08/12 16:03

Veículos danificados em que cientistas morreram após explosões (AP)

Teerã está de cara nova.

Ruas e postes foram pintados, canteiros e parques brilham com flores novas e grama impecável. Não se vê uma sujeirinha nas calçadas das vias principais.

A razão de tanto capricho é um colossal e caríssimo esforço para impressionar os participantes de uma cúpula de chefes de Estado que o governo iraniano apresenta como o maior encontro diplomático na história do país. Os debates, iniciados no domingo (26.ago) e que culminam com a declaração final na próxima sexta-feira (31.ago), acontecem no moderno e verdejante complexo da rádio e TV estatal _IRIB, na sigla em inglês.

Delegações de mais de 120 países abarrotam desde a última sexta-feira os principais hotéis da cidade, que também ganharam um upgrade no visual e nas instalações.

A cúpula reúne os membros do Movimento dos Países Não Alinhados (MNA), criado no auge da Guerra Fria por líderes do mundo em desenvolvimento que diziam não ser aliados do bloco capitalista pró-americano nem do bloco comunista pró-soviético. Com o colapso do Muro de Berlim, em 1989, o MNA perdeu boa parte de sua razão de ser. Mas alguns membros, como Irã, Venezuela e Angola, ainda se entusiasmam com o movimento, mantido como plataforma terceiro-mundista e antiimperialista.

Para Teerã, receber o equivalente a dois terços dos países do mundo _e o secretário-geral da ONU, Ban Ki Moon_ é uma humilhante resposta às potências ocidentais que querem isolar o Irã. A favor do regime também está a presença, ainda que na condição de simples observadores ou convidados, de governos politicamente corretos e amigos das potências ocidentais, entre os quais Suíça, Austrália e Brasil.

No entanto, a declaração final que será adotada na sexta-feira _por consenso, como de praxe_ certamente não defenderá com ênfase o programa nuclear iraniano nem o regime sírio de Bashar Assad contra os rebeldes, como anunciava Teerã. Rivais do Irã dentro do MNA, como Arábia Saudita e Paquistão, não assinarão um texto que pareça uma colher de chá para os mulás persas.

Mas no fundo, pouco importa. O que vale mesmo é a imensa operação de relações públicas para mostrar o Irã como um país maduro, sério, equilibrado e freqüentável. Isso passa por uma maquiagem completa de Teerã, que está virtualmente parada.

O governo decretou feriado por cinco dias e aumentou a cota de gasolina subsidiada como forma de incentivar as pessoas a esvaziarem a capital, que ficaria impraticável para a circulação de dezenas de comboios oficiais. Na quinta-feira, dia em que o líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, discursará diante dos chefes de delegações, metade da cidade ficará lacrada por cordões de isolamento. Policiais em roupa de combate e/ou agentes à paisana já ocupam quase cada esquina. Olham tensos para qualquer um que estiver caminhando por perto.

O aeroporto Mehrabad, equivalente de Congonhas em São Paulo, foi fechado para receber os jatos dos chefes de Estado. O zelo com a segurança dos convidados causou até constrangimentos, como os numerosos casos de diplomatas barrados por não terem recebido credenciais a tempo de participar do primeiro dia de debates.

Além de oferecer aos convidados banquetes noturnos e passeios turísticos, o governo aproveita para compensar o que enxerga como um injusto boicote da mídia ocidental aos seus pontos de vista estratégicos.

Exemplo: os visitantes descobrem por meio de cartazes espalhados pelos corredores do evento que o Irã é uma das maiores vítimas do terrorismo. Lá estão fotos chocantes de gente despedaçada por bombas do MKO, um ultraviolento grupo marxista dissidente exilado no Iraque; listas detalhadas das centenas de vítimas do Jundallah, um obscuro grupo sunita ligado ao Paquistão; relatos dos massacres de iranianos pelo Taleban afegão e, acima de tudo, retratos dos cientistas nucleares assassinados nos últimos dois anos pelo Mossad, o mundialmente temido serviço secreto israelense.

O mais chocante é a exibição, ao lado do portão principal da cúpula, dos três Peugeot 405 em que os cientistas foram vítimas de bombas magnéticas grudadas na lataria do carro por ágeis motoqueiros nunca encontrados. Os automóveis, cada um içado sobre um pequeno palco, têm as portas destroçadas e o parabrisa aberto. Ao lado de cada um dos palcos, há fotos sorridentes dos cientistas mortos e de seus filhos pequenos. Diante deste e de outros tapas na cara infringidos pelos inimigos, o Irã empenha-se para mostrar dignidade, força e sintonia com o mundo _ao menos parte dele.

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Fazendo academia em Teerã

Por Samy Adghirni
22/08/12 09:15

De manhã, só mulheres. À tarde, acesso exclusivo aos homens.

Foi a primeira grande diferença que notei em relação ao Brasil quando me inscrevi numa academia de fitness perto de casa, movido pela necessidade de voltar a cuidar do corpo e aliviar a mente ocupada pelo trabalho e outras preocupações nestas terras tão distantes.

O ambiente é semelhante ao de qualquer academia brasileira: máquinas de musculação (razoavelmente modernas), esteiras enfileiradas, TVs de tela plana transmitindo imagens de futebol e esportes radicais, música ocidental barata em volume ensurdecedor e lanchonete com sucos naturais.

Mas prevalecem as diferenças, principalmente no âmbito… digamos comportamental.

Logo no meu primeiro dia vi um bombadão tirar a camiseta e baixar o calção para se exibir aos colegas. De cueca, em pé no meio da sala, ele fazia caras e bocas ao contrair os músculos diante da plateia que o cercava. Alguns amigos marombeiros estendiam a mão para tocar seus braços e coxas. Em seguida, o pequeno grupo alinhou-se na frente de um espelho para uma observação coletiva dos abdominais.

Os bombadões, aliás, formam um grupo unido e cúmplice. Cumprimentam-se com três beijinhos no rosto e passam o tempo todo juntos, ajudando uns aos outros na hora de levantar barras mais pesadas. Falam e riem alto. Muitas vezes ocupam todas as cadeiras da lanchonete, espalhando seus iPhones e outros celulares caros sobre as mesas. Depois descobri que vários daqueles sujeitos são competidores de bodybuilding.

O curioso é que os instrutores quase só dão atenção aos mais fortes. Gordinhos, magrelos ou adultos com mais de 30 anos em busca de um upgrade são quase sempre ignorados. Montar minha série de exercícios foi um parto, pois nenhum professor queria gastar tempo comigo. Quando a série ficou pronta, respondiam minhas dúvidas sem muita paciência, apontando vagamente para algum canto da sala se eu havia me esquecido do nome de algum aparelho.

Enquanto uns malham ou correm na esteira sem camisa, outros fazem exercícios de calça jeans e/ou chinelo, o que seria vetado em qualquer academia séria no Brasil.

Outro risco à segurança é a ausência de avaliação física.Não há nem sequer uma sala específica para isso. Para se inscrever, basta levantar a camisa por alguns segundos diante do professor _e no meio de todo mundo. Tudo bem que deve haver academias mais profissionais na cidade, mas a minha está longe de ser chinfrim. Pago caríssimo para os padrões locais (R$ 130 por mês), e alguns clientes chegam de Porsche ou Mercedes.

Outra diferença é que, nas academias brasileiras, o revezamento em alguma máquina costuma ser fruto de um comum acordo entre as partes. -“Pode revezar?” -“Pode, claro” ou -“Peraí que só falta uma série”. Aqui no Irã, ou pelo menos na minha academia, não se pede permissão para tomar conta de algum aparelho quando o usuário estiver recuperando o fôlego num intervalo entre séries. Foi estranho ver pela primeira vez alguém se atravessando na minha frente e se instalar tranquilamente no banco que eu estava usando. Um bela dia até resmunguei com um cara, que deu de ombros e respondeu algo pouco amigável que eu não entendi.

Também estranhei o fato de ninguém guardar os pesos no lugar depois de usá-los. Terminam a série e vão-se embora, deixando um monte de pesos montados nas barras ou espalhados pelo chão. Quem coloca o material de volta no seu devido lugar é um jovem funcionário afegão, imigrante que fugiu do regime Taleban dez anos atrás e nunca mais pôs os pés no país natal.

Apesar das estranhezas, está valendo a pena. O ambiente após algumas semanas ficou mais familiar, e hoje já engatei vários daqueles clássicos papos de marombeiro, rasos e tranquilos. A academia, onde sou o único estrangeiro, virou uma extensão do meu trabalho de observador da vida iraniana. Ali eu tenho uma representação in natura privilegiada da burguesia ocidentalizada do norte de Teerã.

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Um iraniano na Nasa

Por Samy Adghirni
15/08/12 12:03

 

Bobak Ferdowsi, 32, engenheiro da Nasa (Reuters)

Internautas iranianos tomaram as redes sociais para declarar seu amor e admiração por Bobak Ferdowsi, 32, um brilhante e irreverente engenheiro da Nasa que teve papel crucial na chegada do jipe-robô Curiosity a Marte na semana passada.

Ferdowsi é um dos controladores de voo que comandaram a distância a aterrissagem mais complexa já realizada em outro planeta, após oito meses de uma viagem iniciada na base de lançamento de Cabo Canaveral, na Flórida. A sonda começará a rodar pela superfície do Planeta Vermelho nas próximas semanas em busca de sinais de vida presente e passada.

Ferdowsi ficou famoso quando seu cabelo moicano e cara de moleque atraíram as câmeras de TV que transmitiam ao vivo o nervosismo na sala de comando da Nasa no momento do pouso. A imagem destoou radicalmente do ambiente nerd e careta da lendária agência especial americana _pelo menos assim retratado pela indústria de Hollywood. Prato cheio para a mídia, que ergueu o jovem engenheiro ao título de superastro e o transformou no símbolo de uma suposta nova geração de cientistas mais cool. Barack Obama telefonou para Ferdowsi e seus colegas e, claro, fez piadinha sobre o moicano.

A imprensa iraniana também ficou interessadíssima. Embora a serviço do inimigo ianque, o rapaz, que tem o mesmo sobrenome que um grande poeta persa do século 10, foi parar em jornais ligados ao regime e virou febre na internet. Boa parte dos mais de 45 mil seguidores de Ferdowsi no Twitter são iranianos extasiados com o sucesso do patrício. Mesma euforia no Facebook e no Balatarin, rede social local. Glória ao Irã! Glória ao povo persa!

O problema é que Ferdowsi é iraniano fajuto, ou quase. Tudo bem que a lei da República Islâmica supõe que todo filho de pai iraniano é automaticamente iraniano, ou seja que Ferdowsi é cidadão do país, sim, e tem direito a passaporte. Mas ele nasceu na Califórnia em 1979, ano da Revolução Islâmica, e sua família ficou nos EUA após a chegada ao poder do aiatolá Khomeini. Não há nenhum indício de que ele fale farsi nem que seja muçulmano nem que tenha algum dia colocado os pés no Irã.

Por que, então, tanto oba oba envolvendo um cidadão sem vínculo cultural ou emocional com o Irã?

A verdade é que o país anda carente de ídolos com projeção internacional. Iranianos até brilharam nos Jogos Olímpicos de Londres, liderando com folga o ranking de medalhas no Oriente Médio. Mas especialidades nacionais como luta greco-romana e levantamento de peso têm pouco destaque no exterior. O orgulho trazido pelo futebol, quando Ali Daei e Ali Karimi faziam bonito no campeonato alemão e em torneios europeus, terminou em meados dos anos 2000. A advogada e ativista antirregime Shirin Ebadi, vencedora do Nobel da Paz em 2003, mais divide do que federa opiniões, tornando impossível qualquer reconhecimento como ícone nacional. Resta o cinema, que já rendeu um Oscar e uma coleção de prêmios prestigiosos ao filme-fenômeno “A Separação” na última virada do ano. Mas a poeira baixou, e o sucesso esgotou-se.

Terra de gente ufanista e obcecada pela grandeza do Império Persa de outrora, o Irã sofre sem um Pelé, uma Evita Perón ou até mesmo um João Paulo 2º. Não bastasse, o país é estigmatizado mundo afora por causa do seu governo, ferindo a alma de uma nação que se enxerga como grande entre as grandes. Nesse contexto, o eventual sucesso de compatriotas _reais ou projetados_ é visto como um instrumento para revigorar a união nacional e a autoestima. Por aqui não se discute: Ferdowsi é iraniano, nem que seja só um pouquinho.

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O quiosque da orientação islâmica

Por Samy Adghirni
08/08/12 08:22

Madrugada no sempre tumultuado aeroporto internacional Imã Khomeini, ao sul de Teerã. No vão central do saguão, um cartaz encostado numa pilastra avisa, em farsi e inglês: “Tire suas dúvidas sobre a religião islâmica”. A alguns passos dali, dois mulás (clérigos) de túnica e turbante estão instalados numa mesa virada de frente para o vaivém das pessoas.

Um jovem aparentando 20 e poucos anos, sentado numa cadeira e cotovelos na mesa, ouve com atenção um dos mulás. O religioso, barbudo e de óculos, sorri e gesticula suavemente enquanto olha com atenção nos olhos do rapaz, dando a impressão de explicar algo muito importante. Enquanto isso, o outro clérigo, mais jovem e sem óculos, parece ler algo na tela de seu notebook.

Após observar a cena de longe, me aproximo da mesa e pergunto ao mulá mais moço se ele fala inglês. “Yes, of course”, responde com ar sério.

Começo a conversa me apresentando como correspondente de um jornal brasileiro e mostro minha credencial de imprensa do governo. No Irã convém jogar impo e deixar claro, sempre que possível, que não há nada a esconder.

O religioso diz ser membro de uma ONG que ajuda as pessoas a entender melhor os ensinamentos e práticas do islã (embora ele não tenha feito a distinção, devo dizer que ele se referia exclusivamente ao islã xiita, majoritário no Irã). O quiosque da orientação religiosa atende gratuitamente qualquer pessoa e responde qualquer pergunta sem tabu, garante o clérigo, que diz chamar-se Dr. Hoseini.

“Não temos nenhuma relação com o governo”, garante o clérigo, iPhone colocado na mesa. É verdade que ser religioso no Irã não significa necessariamente estar ligado ao regime. Há inclusive muitos clérigos e até mesmo alguns aiatolás rompidos com o establishment teocrático. Mas é difícil conceber que uma organização deveras independente, por mais devota que seja, consiga montar um quiosque em lugar público sem aval das autoridades. Ainda mais num área sensível como um aeroporto internacional supervisionado pela Guarda Revolucionária, a força de elite do governo iraniano.

Não consegui descobrir que conselhos o jovem rapaz estava pedindo aos mulás. Meu farsi não deu conta, ainda mais porque os dois falavam baixinho demais. Mas aproveitei para para me arriscar a também tirar dúvidas sobre o islã com o Dr. Hoseini, um sujeito pouco efusivo, mas disposto a falar com um gringo.

Primeiro perguntei sobre a forte influência de rituais pagãos e/ou pré-islâmicos nos hábitos culturais iranianos.

– “Pular fogueira e colocar maçãs sobre a mesa para dar sorte na virada do ano não seria superstição incompatível com o islã?”

– “O que você cita são rituais ligados à cultura iraniana, não à religião em si. O islã aceita perfeitamente expressões culturais populares ancestrais. Pular fogueira é um hábito que remonta aos tempos do zoroastrismo, uma fé que o islã respeita, como todas as outras. O limite é quando esses rituais ferem a liberdade e o conforto de outras pessoas. Quem aproveita a cerimônia da fogueira para fazer barulho e incomodar a vizinhança está cometendo um pecado”.

Minha segunda pergunta foi sobre o véu islâmico obrigatório para as mulheres.

– “Em alguns países islâmicos, a mulher não precisa usar o véu mas em outros ela deve cobrir o rosto inteiro. Na Arábia Saudita, elas podem deixar os olhos à mostra e no Irã só os cabelos devem estar cobertos. Afinal, o que diz o Corão?”

– “Há várias linhas de estudos islâmicos, muito diferentes umas das outras. Aqui no Irã seguimos a linha xiita, que recomenda que a mulher cubra os cabelos e se abstenha de maquiagem pesada. A intenção é evitar que a mulher seja transformada, desculpe a expressão, em objeto sexual. É importante para preservá-la. Mas a mulher pode se maquiar à vontade e deixar os cabelos à mostra se estiver num ambiente privado e em meio a parentes próximos.”

As respostas não trouxeram nada de fundamentalmente novo, mas o questionamento livre direto na fonte clerical, em pleno mês sagrado de Ramadã, representa por si só uma oportunidade extraordinária num país tão cheio de restrições.

Olhei para o relógio e percebi que já estava atrasado para o meu embarque. O jovem ao meu lado continuava ouvindo os conselhos do mulá. Dr. Hoseini não quis me dar um cartão nem o número do seu iPhone, mas aceitou fornecer seu endereço email. Quero muito continuar essa conversa.

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Miscelânea e regionalismos iranianos

Por Samy Adghirni
30/07/12 11:45

O Irã está entre os 20 países do mundo com maior território (1,6 milhão km², soma de Egito + França) e população (75,2 milhões, segundo resultado do censo de 2011 divulgado ontem). E como quase todo Estado nestas dimensões, abriga etnias, religiões e culturas muito diferentes, formando identidades regionais pronunciadas – além, é claro, de gerar estereótipos generalizados sobre cidadãos de cada parte do país.

Os persas compõem mais da metade da população nacional e, com isso, representam o grupo mais influente na identidade iraniana, da música ao idioma dominante. Os principais postos no governo tendem a ser ocupados por persas, majoritariamente muçulmanos xiitas e etnicamente pertencentes à linhagem de povos indoeuropeus. Longe de formar um grupo homogêneo, dividem-se em perfis culturais que variam de acordo com cada cidade, alimentando todo tipo de clichês. Os persas de Isfahan são vistos como astutos e pão duros e os de Teerã, como pretensiosos e metidos, refletindo um estereótipo negativo padrão contra moradores de grandes capitais.

Os persas de Yazd e Meshed carregam a imagem de devotos e conservadores. Já os habitantes de Shiraz são tidos como hedonistas e preguiçosos. A cidade de Rasht abriga, segundo mencionado no guia de turismo “Lonely Planet”, homens sexualmente ultraliberais que toleram inclusive a infidelidade das esposas. Ainda mais politicamente incorreta é a reputação de outras cidades, como Qazvin, mas melhor deixar pra lá.

Quase todos os demais grupos étnicos não descendem da linha indoeuropeia. Cerca de 20% dos iranianos são da etnia azeri, nome originalmente atribuído aos cidadãos da província limítrofe ao Azerbaijão (noroeste). Os azeris, também xiitas em sua maioria, são chamados de “turcos” porque falam um dialeto derivado da língua dominante na Turquia. Controlam boa parte do comércio nacional e, embora pouco presentes no governo, têm como maior expoente ninguém menos que o próprio líder supremo, aiatolá Ali Khamenei.

Azeris da cidade de Tabriz são enxergados como financeiramente ricos e intelectualmente retrógrados e os de Orumiyeh, como tolerantes e boa praça. A região abriga, segundo muitos iranianos, a melhor gastronomia do país.

O terceiro maior grupo étnico do Irã é formado pelos curdos, estimados em seis milhões de pessoas, a maioria muçulmanos sunitas. Boa parte deles vivem na Província do Curdistão, na fronteira com o Iraque (oeste). Falam o idioma curdo e sentem-se parte de uma imensa nação sem pátria que se estende ainda por Síria, Turquia e Iraque. Vistos como guerreiros de sangue quente, costumam ser temidos pelos demais iranianos.

Os árabes (maioria de sunitas) formam, ao lado dos cristãos assírios, a pequena parcela semita da população iraniana, estimada em 2%.

O Irã tem ainda várias microcomunidades étnicas, como baluques (sunitas), luros (xiitas), armênios (cristãos), turcomenos (sunitas) e pashtuns (sunitas). Os judeus e zoroastras iranianos são quase todos persas.

O censo de 2011 também mostrou que 99,4% dos iranianos são muçulmanos e que 55% da população tem menos de 30 anos. A taxa de analfabetismo é de apenas 7%. Com 11,2 milhões de pessoas conectadas, o Irã tem a maior comunidade de usuários da internet no Oriente Médio.

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