O aviso veio por SMS na manhã do último domingo, dia útil aqui no Irã. O governo recorria mais uma vez às mensagens de celular para avisar que o presidente Mahmoud Ahmadinejad falaria com a imprensa na tarde do dia seguinte. Nenhuma dúvida de que o tema central da entrevista coletiva seria a queda vertiginosa do rial, a moeda nacional, que perdeu 40% em uma semana, causando pânico generalizado num país já submetido a inflação e desemprego.
Mesmo na reta final de seu segundo mandato e impedido por lei de se candidatar novamente na eleição de junho, Ahmadinejad precisava reagir à artilharia pesada das facções inimigas dentro das próprias fileiras do regime. Quem acompanha a política interna iraniana sabe que o presidente está isolado e enfraquecido por adversários poderosos que o acusam de ser incompetente na gestão econômica e de defender ideias liberais incompatíveis com a moral estatal (sim, caro leitor, Ahmadinejad é hoje o mais moderado dirigente iraniano, ao menos em matéria de liberdades individuais).
Atendendo a recomendação do SMS, cheguei às 13h da última segunda-feira no complexo ao centro de Teerã que abriga o governo e as residências oficiais de seus mais altos dirigentes. Os prédios, com poucos andares e enfileirados ao longo de ruas fechadas para o trânsito, são sisudos e sem luxo. A coletiva começaria uma hora depois, uma vez feitos todos os procedimentos de segurança, muito menos rigorosos do que se espera no coração do regime iraniano.
O presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, concede entrevista a jornalistas em Teerã (Atta Kenare/AFP)
Cerca de 150 jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas, repórteres iranianos e estrangeiros como eu, rapidamente abarrotaram uma grande sala de paredes brancas e teto altíssimo, espécie de sala de conferências enfeitada para a ocasião. Em cima do palco, a mesa onde o presidente falaria tinha um arranjo de enormes flores coloridas. Na parede de trás, um cartaz anunciava o evento em inglês e farsi: “Conferência de Imprensa do Senhor Presidente da República Islâmica do Irã, outubro 2012”. Como a entrevista atrasou, repórteres ali presentes matavam o tempo batendo papo sobre tudo e nada. Por volta das 15h30, uma agitação se espalhou entre os homens do presidente na sala, seguranças e assessores reconhecíveis pelos ternos escuros sem gravata e barba rala, prenunciando a chegada do chefe.
Ahmadinejad entrou na sala a largas passadas e logo acomodou-se no palco. Parecia mais magro e abatido do que nas outras vezes em que estive perto dele. Seu maxilar estava tenso quando todos se levantaram para o hino nacional. Enquanto altos falantes executavam a melancólica e bela melodia, um telão descido do teto projetava rostos dos soldados mortos na guerra Irã-Iraque (1980-1988) e imagens das conquistas tecnológicas do país, mas sem menção explícita ao programa nuclear.
Como esperado, a primeira pergunta, formulada por uma jovem repórter iraniana, foi sobre a crise cambial. Era o início de uma apaixonada, aguerrida e às vezes raivosa autodefesa de Ahmadinejad, propalada pela linguagem direta dos que não têm mais nada a perder. Ao longo de mais de duas horas e meia, o presidente disparou críticas e atropelou a posição oficial do Estado sobre vários temas.
Ele admitiu que as sanções estão, sim, fazendo muito mal ao país ao impedirem a entrada de moeda estrangeira. Mas ele culpou tantos as potências ocidentais quanto os inimigos internos que, segundo ele, manipulam o câmbio para minar seu governo: “Há um grupo de pessoas que consegue alterar a cotação mediante simples telefonema”.
Ahmadinejad atacou seu arqui-inimigo Ali Larijani, presidente do Parlamento, que o acusou dias atrás na imprensa de ser responsável por 80% dos problemas econômicos nacionais ao supostamente abusar de programas sociais e obras faraônicas: “Ele deveria pôr a mão na massa e ajudar em vez de dar entrevistas”.
Ahmadinejad riu algumas vezes, fez piada com jornalistas que tentavam furar a fila das perguntas e mostrou-se disposto a responder tranquilamente todas os questionamentos sem tabu. O clima era o de uma conversa informal, zero cerimônia. Mas o homem parecia mesmo nervoso, gesticulando muito e falando freneticamente, na contramão do jeitão sereno ostentado em entrevistas na TV. O presidente queria mesmo era acertar as contas.
Outros disparos contra rivais:
“Fazemos reuniões importantes para tentar resolver os problemas do país. Concordamos e planejamos várias coisas, mas logo na saída dos encontros algumas pessoas aproveitam o primeiro microfone para detonar o que foi acertado.”
“[Alguns setores] parecem estar jogando contra e não entendem que é preciso acompanhar as decisões do governo.”
“Quando tudo vai bem, todo mundo quer crédito. Quando há problemas, só eu tenho culpa.”
“Quando fui prefeito de Teerã, um juiz mandou cortar algumas árvores para construir um prédio, e eu fui muito criticado por isso. Hoje vejo muitas árvores cortadas sem que ninguém reclame do atual prefeito.”
“Só eu recebo tantas críticas. Imaginem como reagiriam outras pessoas se sofressem os mesmos ataques. Eu não ligo, deixo falar o que quiserem a meu respeito, desde que na prática trabalhemos juntos na mesma direção.”
“Se não me quiserem mais, então escreverei apenas uma linha para dizer: ‘Adeus'”
Houve também arriscados posicionamentos políticos.
Sobre a prisão do seu assessor de imprensa e o fechamento de um jornal por supostas ofensas ao Estado: “O que foi ordenado pelo Ministério da Cultura e Orientação Islâmica foi um erro. A tolerância e a liberdade devem ser absolutas.”
Sobre as constantes críticas ao seu governo formuladas pela agência de notícias Fars, supervisionada pela elite militar: “Uma certa agência de notícias relacionada aos órgãos de segurança deveria parar de atacar o governo que a financia”. Um repórter da Fars rebateu as críticas, iniciando um bate boca cheio de sarcasmo com o presidente.
Sobre pedidos de setores ultraconservadores por regras mais rígidas no uso do véu: “As mulheres iranianas são as mais puras do mundo, é preciso confiar nelas para que usem o véu como bem entendem”.
Sobre a liberdade em geral: “Somos uma grande nação milenar, e podemos conviver muito bem com diferenças de opiniões e ideias. Ninguém deve impor sua visão.”
Claro, houve também os esperados ataques aos EUA e Israel, mas foi quase tudo mais do mesmo, com a exceção de uma frase sobre o Estado judaico que chamou minha atenção. “Se [Israel] se comportar como um bom menino, talvez consiga um lugar [na região]”. Soou como um possível recuo na sua posição tradicional que consiste em descartar de forma irrestrita e absoluta a existência do Estado judaico.
Na manhã seguinte à entrevista, protestos irromperam pelo centro de Teerã contra a crise econômica. A ira esteve claramente voltada contra o presidente. Houve tropa de choque nas ruas, pancadaria e algumas prisões. O presidente do Parlamento teve que cancelar planos de chamar a imprensa para responder a Ahmadinejad. Há quem diga que os protestos foram orquestrados pelos rivais do presidente para fomentar a desordem.
O Irã vive dias agitados.