Mehdi, 25, tem tudo para ser o perfeito jovem militante entusiasta do regime iraniano. Xiita devoto, reza cinco vezes ao dia, não bebe nem namora. Com sua barba, cabelo penteado para o lado e anel de oração na mão direita, ele poderia ser facilmente confundido com um membro do basij, a milícia prórregime cujas tarefas incluem desde trabalho comunitário até bater em manifestantes. Mehdi foi criado em Qom, um dos principais santuários do islã xiita e epicentro teológico do Irã.
Só que Mehdi, nome fictício para proteger o rapaz, é o oposto do que a cúpula do regime gostaria que ele fosse.
Mehdi é na verdade um fervoroso oposicionista. Um reformista da gema. Em 2009, ele esteve no Movimento Verde, que tomou as ruas de Teerã para denunciar supostas fraudes orquestradas pelo regime com o objetivo de garantir a reeleição do conservador Mahmoud Ahmadinejad. Verde era a cor de campanha do candidato que pretendia ter ganhado o voto, Mir Hossein Mousavi. Mehdi sentiu na pele o caos e a brutalidade daquelas tardes sob o implacável sol de junho, nas quais dezenas de pessoas morreram e centenas foram presas. Mousavi acabou em prisão domiciliar, em meio a manobras para enfraquecer de vez os reformistas. Hoje, no momento em que o Irã entra na reta final da campanha para a primeira votação presidencial desde então, Mehdi voltou ao ativismo político.
Mehdi é voluntário na campanha do centrista Hasan Rowhani, um clérigo cosmopolita que aparece, até agora, como opção viável para o eleitorado de classe média, urbano e instruído que formou a base do Movimento Verde há quatro anos. Na realidade até existe um reformista de carteirinha na disputa. Chama-se Mohamadreza Aref, foi vice-presidente da república islâmica nos anos 90 e hoje é professor universitário. Mas, na próxima sexta-feira, dia 14 de junho, Mehdi prefere votar em Rowhani, ou seja, num religioso.
“O Irã está cada vez mais isolado. A economia afunda. Sou formado numa das melhores faculdades de engenharia petroleira, mas não acho emprego porque o setor está parado devido às sanções. As pessoas estão deprimidas. Por causa da pressão das autoridades, os valores morais estão se desintegrando. As pessoas mentem e se tornam desonestas para poder sobreviver”, diagnostica Mehdi.
Essa situação ilustra uma nuance que é difícil de entender no Ocidente.
Em São Paulo, Paris ou Nova York, as pessoas tendem a enxergar a realidade política iraniana como uma disputa entre teocratas opressores e libertários moderninhos que querem derrubar a república islâmica. A coisa é bem mais complicada, mesmo na estreita vida política iraniana, onde a oposição atua dentro dos limites impostos pelo sistema teocrático em vigor desde a revolução de 1979. Mehdi é um bom exemplo disso. Algumas considerações:
– Nem todos os teocratas são opressores. Há muitos religiosos profundamente conservadores que rejeitam o atual estado das coisas. Melhor exemplo é o clérigo Ali Husein Montazeri, morto em 2009. Seu título era de grão-aiatolá, máximo do máximo na hierarquia xiita. Montazeri pertenceu ao círculo mais próximo do aiatolá Khomeini, fundador da república islâmica, com quem costurou a constituição iraniana. Montazeri chegou a ser cotado para ser o líder supremo que substituiria Khomeini. Mas caiu em desgraça por discordar do que, segundo ele, era um desvio autoritário do regime, algo contrário aos verdadeiros ideais de justiça e humanismo do islã. Montazeri dizia que o Irã havia se transformado em algo que não era nem república nem islâmico. Acabou em prisão domiciliar em Qom, onde morreu em meio a gigantesca comoção.
– Mehdi, o engenheiro desempregado, é orgulhoso oposicionista, mas deixa claro que não quer derrubar o regime. Como o próprio nome diz, reformistas querem reformas, não uma nova revolução. Mehdi acredita no Estado teocrático e argumenta que os iranianos formam uma sociedade conservadora que aceita a autoridade religiosa. O problema, segundo Mehdi, é que esse Estado não respeita seus cidadãos ao coibir liberdades individuais e de imprensa, e ao não enxergar a urgência de melhorar a relação com as potências ocidentais para levantar a economia. Outro que pensa assim é um conhecido meu que ostenta o título de Seyed, privilégio social e religioso de quem descende diretamente da família do profeta Maomé. Seyed Vahid, seu nome, é um homem religioso, mas diz que o regime precisa mudar com urgência.
– Dia desses conheci um importante colaborador da cúpula política reformista. O sujeito tem pinta de galã, bebe e usa gravata, acessório ocidental execrado pelos ultraconservadores. “Nunca quisemos derrubar o regime”, me garantiu.
– Também há milhões de iranianos que gostariam de viver num Estado secular. Mas a maioria dos que pensam assim vivem no exterior. Quem vive no Irã geralmente não quer uma nova revolução, por saber que isso traria um enorme impacto na vida das pessoas, e por muito tempo. Os acontecimentos de 1979, levante em massa contra a ditadura do xá, custou caro aos iranianos. Há gente que participou da revolução, mas hoje acha que não valeu a pena. De qualquer maneira, é complicado ter revoluções a cada 30 e poucos anos.
– Apesar das dificuldades econômicas e de muita coisa que não faz sentido aos olhos dos ocidentais, o regime iraniano continua se beneficiando de uma imensa base de apoio popular. Nos campos, nas periferias humildes, no mundo do comércio popular e, para além disso, há muita gente que apoia de forma irrestrita o sistema em sua forma atual e o líder supremo, aiatolá Ali Khamenei. A base de apoio ao status quo inclui gente de todas as idades e meios, inclusive ricos com formação no exterior. Quem vê o Irã de fora tende a fazer análises equivocadas por focar apenas na parcela social que se identifica mais com o Ocidente. Alguns jornalistas estrangeiros que conseguem visto para fazer coberturas no Irã se interessam sempre pelas mesmas coisas.
– No Irã, governo é diferente de Estado. Ahmadinejad é governo, mas o chefe de Estado é o líder supremo. Quando se fala em regime iraniano, o sujeito é o Estado, o sistema teocrático implementado com a revolução islâmica de 1979. Ou seja que é possível ser contra o governo, mas a favor do regime. Khamenei ainda tem aura de santidade, e suas falas têm imenso alcance e impacto.
– Nesta eleição a grande briga se dá entre conservadores. Mesmo com irretocáveis credenciais de devoção à revolução islâmica, candidatos defendem agendas muitas vezes antagônicas. Os debates ao vivo na TV estatal escancararam as divergências entre os dois mais próximos colaboradores do líder supremo. O ex-chanceler Ali Akbar Velayati atacou o atual negociador chefe, Said Jalili, por não ter conseguido nenhum avanço nas conversas com as potências. Jalili respondeu que a culpa é do Ocidente, não dos negociadores iranianos. Velayati diz que é preciso restabelecer relações de confiança com a Europa, enquanto Jalili insistiu em que é preciso resistir às pressões e aceitar sacrifícios em nome dos ideais revolucionários.
Por essas e outras, desconfie sempre que alguém disser que entende de Irã. Eu mesmo continuo engatinhando.