Folha de S.Paulo

Um jornal a serviço do Brasil

  • Assine a Folha
  • Atendimento
  • Versão Impressa
Seções
  • Opinião
  • Política
  • Mundo
  • Economia
  • Cotidiano
  • Esporte
  • Cultura
  • F5
  • Classificados
Últimas notícias
Busca
Publicidade

Samy Adghirni

Um brasileiro no Irã

Perfil Samy Adghirni correspondente em Teerã.

Perfil completo

Situações surreais geradas pelas sanções

Por Samy Adghirni
02/08/13 11:29

As sanções econômicas e financeiras impostas pelo Ocidente ao Irã são capazes de gerar situações inacreditáveis.

Já vinha ouvindo histórias surreais há algum tempo, mas decidi escrever a respeito depois que um livro artístico italiano foi banido do site de vendas online PayPal (para ser mais exato, um intermediário de pagamento, como acaba de me explicar o leitor André Pessoa) simplesmente por ter a palavra “Iranian” no título.

O recém lançado “Iranian Living Room” (sala de estar iraniana, em tradução livre) reúne dezenas de imagens tiradas por fotógrafos iranianos mostrando cenas do dia a dia em lugares privados na república islâmica. Aparecem nas fotos uma moça dançando sozinha na cozinha, um jovem solitário vendo TV de madrugada e mulheres de uma família tradicional reunidas num quarto durante uma celebração religiosa. Uma das mais tocantes é a de um casal, com jeito apaixonado, ensaiando uma valsa na sala de casa (ver galeria). O Irã tem pessoas alegres e melancólicas, sozinhas ou em grupo, conservadoras e liberais. Como qualquer outro país.

Enrico Bossan, curador do livro, disse em entrevista ao “New York Times” que a ideia era mostrar o Irã que não aparece na grande mídia ocidental, anglo-saxã principalmente. Mas ele percebeu que a obra não estava disponível no site americano PayPal, apesar de ter sido catalogada. Foi preciso muita insistência junto ao serviço de atendimento e estardalhaço nas redes sociais para que Bossan finalmente conseguisse uma resposta da empresa. O PayPal admitiu ter excluído o livro por causa da palavra “Iranian” e alegou que se tratava de uma medida de precaução diante das sanções impostas pelo Tesouro dos EUA ao governo iraniano. A empresa reconheceu o “erro” e restabeleceu as vendas.

Há outros casos de bizarrice semelhante.

Conheço um jovem iraniano brilhante, que estudou em Harvard e trabalha num dos maiores escritórios de advocacia de Londres. Mas ele tem dificuldade em receber seu salário porque nenhum banco do Reino Unido permite que ele abra conta. Ele não me disse como faz para contornar o problema e ser remunerado. Ainda mais absurda é a história de uma iraniana, também altamente qualificada, impedida de abrir uma conta no grande banco europeu onde ela trabalha como executiva!

No ano passado, ficou famoso o caso da loja Apple nos arredores de Atlanta, EUA, que se recusou a vender um iPad para uma adolescente porque ela falava farsi com seu tio iraniano. Detalhe: a jovem tinha cidadania americana.

Aqui em Teerã, um recém chegado embaixador não consegue trazer sua mudança porque nenhuma empresa ocidental se dispõe a levar carregamentos até o Irã. A mudança talvez vá parar em Dubai ou outro porto nos arredores do Irã, de onde começará outra burocracia extenuante para levá-la até o outro lado do golfo Pérsico. Ainda no mundo diplomático, há gringos que tiveram o cartão de crédito bloqueado em seus países de origem pelo simples fato de viverem no Irã.

Sem falar na dificuldade de os iranianos importarem remédios e equipamentos médicos, material escolar e peças de automóveis. Mas aí já são problemas corriqueiros, nada surpreendentes.

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

Jejum islâmico sob calor de 42º C

Por Samy Adghirni
26/07/13 11:30

Muçulmanos do mundo inteiro estão em pleno Ramadã, mês sagrado no qual fiéis devem abster-se de comer, beber, fumar e manter contato sexual do amanhecer até o pôr do sol.

No Irã, o Ramadã deste ano está sendo especialmente difícil por causa do calor insuportável. São quase 18h aqui no momento em que escrevo, e o termômetro (confiável) indica 41º C na sombra. Ontem e anteontem, fez mais de 42º C. Iranianos dizem que há tempos não viam verão tão pesado. Imagine passar o dia inteiro nessas condições sem poder tomar sequer um copo d’água. Além disso, Teerã tem ar muito seco.

Outro desafio é a duração do jejum, especialmente longo neste ano. Como o calendário islâmico é lunar e tem 354 ou 355 dias no ano, significa que o Ramadã nunca cai na mesma época no calendário gregoriano. Na prática, o mês sagrado acontece mais cedo a cada ano. Há dez anos, o Ramadã caía no meio do inverno no hemsifério norte. Além do clima mais fácil de aguentar, amanhecia tarde e anoitecia cedo. Em 2012, a maior parte do Ramadã se estendeu ao longo de agosto. Neste ano, coincide com julho, período de dias mais longos. O jejum começa por volta das 4h20 e termina às 20h35. Mais de 15 horas de resistência. Coisa de louco? Nem tanto.

O jejum está presente em muitas religiões, inclusive no cristianismo. Mas o islã foi além do veto à comida e incluiu a ingestão de líquidos entre os atos banidos durante o Ramadã. A ideia é que o fiel mostre disciplina e elevação espiritual neste mês santificado no qual o Alcorão foi revelado pelo anjo Gabriel ao profeta Maomé, no ano 610. O jejum purifica a alma e estimula tanto a meditação como o desapego das coisas materiais. Além disso, faz com que todos sintam na pele o sofrimento diário dos mais pobres, que jejuam não por opção, mas por não ter o que comer.

Fiéis participam de oração do Ramadã (feriado sagrado islâmico) em mesquita da Universidade de Teerã (Vahid Salemi/AP)

O jejum é mais difícil nos primeiros dias. Depois disso, o corpo se acostuma, e a vida segue com mais facilidade. Em alguns casos, a fome desaparece até quando chega a hora de comer. Quem mais sofre são os fumantes.

Escritórios governamentais fecham na parte da tarde, e empresas tendem a adotar horários mais flexíveis. Aliás, este tem sido um período difícil no meu trabalho de correspondente, pois o país caminha em câmera lenta. A produtividade jornalística diminui consideravelmente com a dificuldade de falar com fontes e levantar informação nestes tempos em que praticamente não há agenda oficial.

O Ramadã implica dedicação à vida religiosa para além do jejum. Neste período o bom muçulmano precisa multiplicar as ações de caridade, doando dinheiro ou comida aos necessitados. Também deve haver maior esforço para ser bom um bom pai, filho, marido ou amigo _ou boa mãe, filha, esposa ou amiga. O Ramadã é um dos cinco pilares do islã, numa lista que inclui ainda a profissão de fé num Deus único, cinco orações diárias, generosidade com os pobres e peregrinação à Meca para quem tiver saúde e recursos.

Estão dispensados de Ramadã crianças, mulheres grávidas, menstruadas ou amamentando, assim como pessoas doentes ou em viagem.

Longe de ser um período apático, o Ramadã é sinônimo de festa e alegria. Na hora do Iftar, que rompe o jejum, famílias se reúnem em volta de fartas refeições e, em seguida, saem às ruas, onde lojas, cinemas e parques de diversão ficam abertos até mais tarde. Visita-se parentes e amigos. A comilança noturna é tamanha que alguns fiéis até engordam no mês santo.

O curioso é que o Ramadã no Irã me parece mais light que nos outros países de maioria muçulmana onde estive. Boa parte do país é profundamente devota. Mas já vi em Teerã gente fumando e comendo na rua, coisa que pode levar à multa ou cadeia nos Emirados Árabes Unidos ou na Arábia Saudita. Academias de musculação estão abertas o dia inteiro, num claro sinal de que uma parte significativa da população não jejua. Restaurantes, em tese, só podem abrir as portas após o Iftar, mas uma lanchonete do meu bairro começa a receber clientes no fim da tarde. De certo modo, os iranianos são bem mais tolerantes do que se imagina.

Além disso, iranianos não compartilham os ímpetos proselitistas dos árabes, geralmente mais propensos a pregar ou tentar converter gringos em muçulmanos. No Irã não vejo muita gente pegando no pé de quem dispensa o Ramadã.

Por outro lado, pude comprovar, ao longo de várias viagens, que árabes tendem a abrir mais facilmente a porta de casa para estrangeiros. Estou louco para ver como é a típica ruptura de jejum numa família iraniana, mas até agora nenhum dos meus amigos locais me convidou.

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

O ranking dos títulos sociais no Irã

Por Samy Adghirni
19/07/13 15:53

No Irã, país cheio de formalidades e regras hierárquicas, todo mundo tem um título social acoplado ao nome.

Mesmo o título mais simples, o de senhor (aghá, em farsi) ou senhora (khanúm), é levado muito a sério. Fora amigos e parentes próximos, todo mundo deve ser chamado de senhor(a). “Você” ou “tu” (toh), nem pensar. O certo é usar “vós” (shomá). Mesmo nas festas clandestinas onde rola pegação e álcool, deve se cumprimentar uma pessoa recém-apresentada dizendo: “olá, como vós estais?”. Já vi brigas de trânsito em que as pessoas trocavam insultos mas continuavam se chamando de senhor(a). Minha diarista é a senhora Manijeh. O manobrista do restaurante ao lado de casa também é senhor Hossein, mesmo sendo mais moço que eu.

Uma classificação acima encontra-se o título de ostâd, que significa professor. Como o ensino é amplamente respeitado por aqui, convém ressaltar o título de quem exerce tão nobre profissão. Ostâd também pode ser usado para se dirigir de forma mais respeitosa a encanadores, técnicos de informática ou mestres de obra. “Bom dia, professor, quanto tempo falta para terminar a pintura da parede do quarto?”.

Ainda mais valorizadas são as pessoas chamadas de mohandês, literalmente, engenheiro, outra gloriosa profissão aos olhos iranianos. Mas não são somente os formados em engenharia (mecânica, eletrônica, nuclear, petroleira, agrícola etc) que aspiram a esse título. Em virtude do taarof, a exagerada etiqueta iraniana descrita num post do ano passado, recomenda-se chamar de mohandês qualquer pessoa que se queira agradar ou de quem se espera algum favor.

Mas o título dos títulos é o de doctôr, reservado à nata. Em tese, somente pode ser considerado doutor quem possui um doutorado ou Phd, independentemente da área. Mas convém chamar generais e demais altos funcionários do regime de doutor, mesmo quando estes não possuem o diploma equivalente. Para ressaltar a importância do título, a pessoa deve ser chamada de senhor doutor (aghaye doctôr). O título também vale para mulheres.

A preocupação com essas coisas é tamanha que isso afeta a vida política. Os adversários do presidente Ahmadinejad achavam um absurdo ele ser chamado de doutor enquanto proferia barbaridades sobre o Holocausto, os gays etc. Mas o homem tem, sim, doutorado em engenharia urbana pela respeitada Universidade de Teerã (diz-se que obteve nota mediana). Durante a campanha para sucedê-lo, o único dos oito candidatos que não era chamado de doutor nos debates na TV era o nanico Mohamad Gharazi, a quem os apresentadores se dirigiam como mohandês (engenheiro).

Num determinado comício, alguém interrompeu o então candidato Ali Akbar Velayati para elogiá-lo, dizendo que ele, por ser médico de formação e Phd, era o único “verdadeiro doutor” na campanha. Velayati quase derreteu de tanta alegria.

O vencedor das eleições foi o clérigo Hasan Rowhani, a quem céticos acusavam de ter mentido sobre o doutorado obtido numa universidade escocesa. Para alívio da nação, alguém recuperou o vídeo da entrega do diploma.

Já ouvi relatos de que os responsáveis pelo cerimonial do regime iraniano ficavam um tanto desnorteados com o então presidente Lula nos anos dourados da relação com o Brasil. Para os membros do regime, era uma situação inédita lidar com um chefe de Estado sem formação universitária. Mas a boa vontade em ambos os lados fez com que isso se tornasse algo sem relevância.

Existem ainda títulos de cunho religioso. Seyed é o prenome usado por todas as pessoas que possuem laços de parentesco, supostamente documentados, com o profeta Maomé. Já os clérigos se dividem entre hojatoleslam (como o presidente Rowhani ou o ex-presidente Mohamad Khatami) e aiatolá (cargo máximo na hierarquia xiita). O líder supremo do Irã, máxima autoridade do país, é chamado oficialmente de aiatolá Seyed Ali Khamenei.

Já eu sou simplesmente senhor Adghirni, prova de que ninguém por aqui dá muita importância para jornalista.

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

Bomba ecológica no Irã

Por Samy Adghirni
12/07/13 15:16

O grito de alerta veio na semana passada.

“O maior problema que nos ameaça, mais perigoso que Israel, EUA ou que a disputa política no governo, é a questão da vida no Irã. O planalto iraniano está se tornando inabitável [e] as águas subterrâneas estão desaparecendo sem que ninguém esteja pensando nisso. (…) Se nada for feito, daqui a 30 anos o país inteiro se parecerá com uma cidade fantasma”.

O autor da fala é Issa Kalantari, 61, ministro da Agricultura do Irã de 1989 a 1998 e Phd em estudos agrícolas pela Universidade Iowa (EUA). Hoje membro de um grupo de pensadores estratégicos ligado ao regime, Kalantari foi convidado a integrar a equipe de transição do presidente eleito Hasan Rowhani, que assume no dia 4 de agosto. As declarações sobre a situação potencialmente catastrófica do abastecimento em água no Irã foram dadas em entrevista ao jornal “Ghanoon”. A fala do ex-ministro soa como uma tentativa de acordar um país em grande parte alheio a questões ambientais.

“Todos os conjuntos de água natural no Irã estão secando, como os lagos Urumieh, Bakhtegan, Tashak, Parishan e outros. (…). Os desertos estão se espalhando e alerto que [as áreas] de Alburz Sul e Zagros Leste serão inabitáveis e isso forçará as pessoas a migrarem. Mas para onde? Posso afirmar com certeza que dos 75 milhões de pessoas no Irã, 45 milhões sofrerão as consequências disso (…). Estou falando de uma crise séria. A vida das pessoas está ameaçada”, diz Kalantari, lembrando que os recursos hídricos estão pressionados por 7.000 anos de presença humana permanente no Irã. Além de absorver 90% dos recursos hídricos, a agricultura responde por 13% do PIB e 23% dos empregos no país, cujo território é formado essencialmente por montanhas e desertos.

Kalantari atribui a culpa em grande parte à falta de planejamento e à má gestão pelos políticos da questão agrícola, que inclui desperdício maciço de água e de alimentos produzidos. O ex-ministro afirma que a situação se deteriorou sob a Presidência de Mahmoud Ahmadinejad. O quadro tende a se agravar devido ao ciclo que leva camponeses a migrar para a cidade por falta de água, causando ainda mais demanda por recursos hídricos para abastecer as aglomerações e deixando ainda menos água para as áreas rurais. Agricultores de duas das principais cidades iranianas, Isfahan e Yazd, já brigam por um duto que leva água pela região central do país. A lista de problemas ambientais inclui ainda a inexistência de coleta de lixo seletivo, na pobreza das iniciativas de reciclagem e nos níveis de poluição apavorantes nas grandes cidades.

O site The Diplomat, voltado para análises e comentários sobre questões asiáticas, lembra que o tema preocupa até mesmo os americanos. A empresa de inteligência privada Stratfor escreveu o seguinte num relatório: “A população iraniana está concentrada nas montanhas, não nas planícies, como acontece nos outros países. Isso se deve ao fato de as planícies serem inabitáveis, com exceção do sudoeste e do sudeste [onde se concentram minorias étnicas, como árabes e baluches, geralmente mais pobres que os persas dominantes]. O Irã é uma nação de moradores de montanha.” O The Diplomat relata que a escassez de água no Irã foi até mencionada no relatório Global Trends 2030, redigido pelo Conselho Nacional de Inteligência dos EUA.

Kalantari está certo quando diz que “a tarefa de Rowhani não será nada fácil”.

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

Protestos brasileiros vistos do Irã

Por Samy Adghirni
01/07/13 12:35

Assim que entrei no carro, o taxista do ponto perto de casa, velho conhecido, lançou: “o que está acontecendo no Brasil? Por que as pessoas estão tão irritadas?”. Por mais que eu me esforce, lendo jornais brasileiros e selecionando postagens de amigos no Facebook para acompanhar diariamente os protestos e consequente crise política, a distância dificulta o entendimento. “É a economia? Vocês também estão em crise, como a gente?”, questionou o taxista. “Não é bem isso, a questão é mais complicada”, respondi, em meio a outras platitudes. Cheguei ao meu destino um tanto envergonhado por não ter conseguido explicar direito.

Na academia de musculação da minha vizinhança, todo mundo parava quando a TV de tela plana cravada sobre a parede de espelhos mostrava imagens do quebra pau nas grandes cidades brasileiras em meio à Copa das Confederações. Foi um tanto surreal ver as torres do Congresso Nacional e o uniforme azul claro da Polícia Militar de Brasília, cidade de onde venho, enquanto eu fazia esteira do outro lado do mundo, literalmente.

Politizados por natureza e ávidos consumidores de notícia, os iranianos se interessam pelos protestos brasileiros, ainda mais depois que a seleção iraniana se classificou para a Copa do Mundo. O tema acaba surgindo em quase todos os contatos entre pessoas dos dois países, dos meios diplomáticos aos comerciais.

No único pronunciamento oficial de Teerã até agora, o porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Abbas Araghchi, disse o seguinte: “Esperamos que surja o mais rápido possível uma solução aos conflitos e lutas dentro do Brasil para que possamos observar uma gloriosa Copa do Mundo com a participação da seleção iraniana”.

A imprensa local vem dando grande destaque aos acontecimentos. O jornal reformista “Bahar” publicou na semana passada longa matéria analítica com o título “Um carnaval de protestos no Brasil”, no qual explica que o país que sempre foi conhecido pela alegria agora ficou famoso pela violência policial. O texto também rejeita a tese do premiê turco, Recep Tayyip Erdogan, que relacionou protestos na Turquia e no Brasil, dizendo que ambos têm a mesma essência e são parte de um complô internacional.

“A acusação de Erdogan de que os manifestantes são ligados a estrangeiros é absurda e sem sentido. Já Dilma Rousseff demonstra ter bom entendimento da natureza dos protestos, se esforça para corrigir e melhorar os efeitos negativos do governo. Ao contrário da Turquia, líderes do movimento, partidos oposicionistas, jornalistas, ativistas online e manifestantes no Brasil não foram acusados de traição nacional, e o governo não conduziu uma repressão generalizada dos protestos”, diz a matéria. O texto afirma ainda que o premiê turco chama manifestantes de “terroristas” enquanto a presidente brasileira se dirige a eles com respeito e considera legítimas suas exigências.

Um dos mais conhecidos jornalistas internacionais iranianos, o conservador Mohammad Hoseyn Jafarian, também dissertou sobre o suposto paralelo entre Brasil e Turquia. “Um mesmo problema, duas abordagens distintas. Rousseff ouve os manifestantes e promete reformas, enquanto Erdogan segue uma [estratégia] combativa que lhe fará perder muito apoio”, diagnostica.

Já o site Iran Diplomacy, plataforma online de reflexão sobre questões globais, atribui a onda de revolta aos persistentes contrastes sociais no Brasil. “Apesar de todas as conquistas por parte do governo esquerdista na última década, que contribuiu para a ascensão de milhões de pessoas da pobreza à classe média e transformou o Brasil numa potência econômica global, o país ainda enfrenta muitos problemas, sendo a desigualdade o maior de todos”, escreveu o analista Davoud Rezaei Eskandary. Ele aponta a má qualidade do ensino, especialmente no primário e as carências de saneamento básico e infraestrutura como “falhas do sistema” brasileiro. O texto lembra que uma avaliação feita em 2009 pela OCDE para medir o nível de estudantes de vários países em ciência e matemática deixou o Brasil entre as últimas posições.

Bem informado por já ter servido como diplomata em Brasília, Eskandary também aborda o absurdo custo da vida no Brasil. “O país se tornou um dos mais caros do mundo. Alguns produtos custam mais caro no Brasil do que na Europa ou nos EUA. Muita gente não tem acesso a esses produtos, outros só conseguem obtê-los por meio de crédito com altas taxas de juros”.

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

Analista iraniano prega "otimismo cauteloso"

Por Samy Adghirni
26/06/13 13:02

Passada a agitação por conta da vitória do pragmático clérigo Hasan Rowhani na eleição presidencial iraniana, é hora de refletir, com a cabeça mais fria, sobre o que levou tanta gente a votar no candidato que prometia políticas mais zen dentro e fora do país. Compartilho com vocês o que me contou o analista Reza Marashi, diretor de pesquisas acadêmicas do Conselho Nacional Iraniano Americano, com sede em Washington. Marashi vive nos EUA, mas mantém fortes vínculos com o Irã, o que lhe dá credibilidade como observador _ao contrário dos que se acham grandes especialistas mesmo sem ter pisado em solo iraniano há décadas.

RECADO DAS URNAS
“Os iranianos sabem que o atual governo não lhes dá muita possibilidade de cobrar e pressionar seus dirigentes. Por isso, num esforço em busca de mudanças pacíficas e sem derramamento de sangue, a população foi às urnas e escolheu o único candidato centrista na disputa. Depois que os ex-presidentes Mohamad Khatami [1997-2005) e Ali Akbar Hashemi Rafsanjani (1989-1997) selaram uma aliança entre reformistas e centristas, as chances de Rowhani aumentaram de forma significativa.”
“As antigas divergências no campo conservador, talvez conjugadas a uma briga de egos, levaram os candidatos a não escutarem o conselho do jornal “Keyhan” [tido como próximo do líder supremo, aiatolá Ali Khamenei], que havia pedido a união das forças conservadoras. Sua incapacidade de seguir este conselho fragmentou o voto e ajudou a pavimentar a vitória de Rowhani.”

PRESIDENTE X LÍDER SUPREMO
“Rowhani pode não ter sido o candidato preferido de Khamenei, mas nem por isso significa que sua vitória representa uma derrota para o líder supremo. Rowhani assessora Khamenei há muito tempo e, embora tenham tido divergências, os dois homens sempre conseguiram trabalhar juntos. Sendo o centrista que ele é, Rowhani provavelmente caminhará devagar na sua busca por mudança dentro e fora do país, pois ele sabe que o líder supremo deverá manifestar ao menos apoio tácito para qualquer esforço bem sucedido.”

RAZÕES PARA OTIMISMO
“O Ocidente deveria estar cautelosamente otimista. Rowhani não mudará as políticas iranianas, mas seu estilo é muito diferente do de Mahmoud Ahmadinejad [atual presidente], e sua equipe de política externa e segurança nacional deverá seguir os passos do novo presidente neste novo estilo, que é muito mais aceitável para o Ocidente. Até o ex-ministro das Relações Exteriores do Reino Unido Jack Straw chamou Rowhani de durão, mas justo, dizendo que é alguém com quem o Ocidente pode trabalhar [os dois homens conviveram com frequência entre 2002 e 2005, quando Rowhani chefiava negociações nucleares pelo lado iraniano].”
“A eleição de Rowhani nos prova que, ao contrário do que muita gente fora do Irã acredita, o país tem vida política. E, mais importante, a eleição nos mostra que reformistas e centristas estão aí para ficar e continuarão fazendo parte do sistema. Isso é importante, porque eles representam as ideais de milhões de iranianos que querem mais interação com o mundo mas também continuam apaixonadamente nacionalistas.”

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

O que significa ser "moderado"?

Por Samy Adghirni
18/06/13 11:15

A eleição do centrista Hasan Rowhani à Presidência do Irã vem gerando uma discussão sobre o que significa ser “moderado”. Uns dizem que Rowhani é um homem movido por um misto de bom senso e pragmatismo, e por isso merece título tão nobre aos olhos do Ocidente. Outros argumentam que não faz sentido chamar de “moderado” um mulá xiita que dedicou a carreira ao Estado teocrático da república islâmica iraniana.

Dicionários não ajudam muito. Um deles define “moderado” da seguinte maneira:

1. Que observa o meio-termo
2. Que não é exagerado
3. Regular, comedido, circunspecto
4. Membro de um partido moderado
5. Aquele que procede com moderação

Tudo meio vago e subjetivo. Meio-termo em relação a que opostos? Exagerado comparado com que padrão? O que significa moderação para uns não pode, em tese, representar excesso para outros?

O grande problema, ao meu ver, é que esse debate acaba sempre poluído por um velho cacoete do pensamento ocidental quando colocado diante de temas ligados à religião islâmica.

Se algum político ou regime de país predominantemente muçulmano mostra alinhamento a valores ou interesses ocidentais, merece o digno apelido de “moderado”. Mas se o infeliz líder tiver uma agenda oposta àquilo que é aceitável para europeus e americanos, leva a pecha de “radical”. Isso gera incoerências curiosas. A Arábia Saudita, por exemplo, tem a legislação islâmica mais conservadora do mundo. Pense em qualquer assunto caro à opinião pública dominante no Ocidente, e observe a situação saudita. Para não entrar nas práticas sanguinárias da Justiça do país, observemos apenas a situação das mulheres. As sauditas, cujo status legal equivale ao de uma criança, não podem nem sequer dirigir. Mostrar o rosto em público é mal visto. Falar com homens estranhos, quase um atentado pornográfico. Mesmo assim, a Arábia Saudita, aliada estratégica de Washington, vive sendo citada na mídia americana como “moderate country”.

O mesmo vale para cidadãos comuns. Se um muçulmano reza cinco vezes ao dia, vai à mesquita, jejua no ramadã, usa aquela barba e tem uma mulher que usa véu, o sujeito só pode ser radical, não é mesmo? Mas se ele tiver a cara limpinha, não fizer questão das orações e, de preferência, tomar uma cervejinha, então o amigo é, sem dúvida, um “moderado”.

No fundo, “moderado”, às vezes, acaba sendo aquele que se parece com a gente. Ou que está do nosso lado.

Um caso recente chamou minha atenção. Um grupo de feministas europeias resolveu ir à Tunísia para manifestar apoio a uma jovem tunisiana presa por ter postado fotos em que aparece nua em protesto contra forças religiosas que passaram a dominar o país após a queda do ditador secular Zine El Abidin Ben Ali. As gringas tiraram a roupa e ficaram com os seios de fora em plena luz do dia na frente de um tribunal de Túnis. O tiro, obviamente, saiu pela culatra. As moças acabaram presas por atentado ao pudor e perderam o apoio das feministas tunisianas, que entenderam o ato como contraproducente por agredir frontalmente os costumes locais.

Pois bem, voltemos ao caso do presidente iraniano eleito.

O Irã não é a Suécia. Mesmo nos anos 70, antes da revolução islâmica, quando o regime de Teerã era uma monarquia secular alinhada aos EUA, a sociedade preservava suas características fundamentais de tradição e religiosidade. Iranianos são, em sua maioria, muçulmanos xiitas, e mesmo os mais moderninhos e até mesmo os ateus são influenciados por valores familiares e pelo ambiente. No Brasil, é comum a pessoa dizer que tem formação católica, mas não se considera como tal. Vale o mesmo no Irã, onde muita gente se declara muçulmana por princípio. Por isso não é realista esperar que o país funcione nos moldes das sociedades ocidentais. Além disso, qualquer projeto político no país precisa caber dentro do estreito espectro determinado pelo Estado teocrático desde a revolução de 1979.

No contexto da atual realidade iraniana, as ideias de Rohwani não são apenas moderadas, elas são quase subversivas de tão ousadas. Na campanha, ele fez duras críticas à polícia moral por perseguir mulheres cujo único crime é usar deixar cabelo demais à mostra por debaixo do véu. Rowhani chamou as iranianas de “irmãs puras” que não precisam ser pressionadas por tantas restrições indumentárias. Isso significa que ele vai acabar com a obrigatoriedade do véu? De forma alguma. Defender abertamente esta ideia selaria sua morte política. Não somente porque o regime não iria aceitar, mas também pela rejeição que a ideia encontraria nas camadas tradicionais. Dito isso, é provável que haja muito menos moças e senhoras sendo colocadas em camburões com destino à delegacia. No Irã, esta é uma enorme diferença.

Rowhani também prometeu deixar jornalistas e artistas se expressarem em paz sem temer retaliação. Ele disse ainda que é preciso acabar com tantos filtros para navegar na internet. Até o site da Folha é bloqueado. O novo presidente teve a prudência de não incluir em sua plataforma a questão dos prisioneiros políticos, mas seus simpatizantes se encarregaram de aproveitar cada comício para gritar bem alto os nomes dos líderes oposicionistas em prisão domiciliar. Rowhani sorria diante dos apelos, visivelmente contente. No plano diplomático, admitiu que o Irã pode fazer mais para restaurar laços com as potências ocidentais e deixou a porta aberta inclusive para contatos com os EUA. Isto é praticamente o máximo de “moderação” possível nos círculos de poder em Teerã.

Mas vale lembrar que Rowhani abomina Israel, a exemplo de todo o establishment político e de boa parte dos iranianos. Rowhani também deve manter apoio irrestrito ao regime de Bashar Al-Assad e ao grupo armado xiita Hizbullah contra rebeldes na Síria. O novo presidente ainda deixou claro que jamais concordará com a suspensão do enriquecimento de urânio para fins pretensamente pacíficos. É, portanto, compreensível acharem que Rowhani não tem nada de “moderado”, embora muita gente no Irã o deteste por ser próximo demais das ideias ocidentais.

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

Como é a votação presidencial no Irã

Por gmanzini
14/06/13 12:38

O Irã vai às urnas amanhã, sexta-feira 14 de junho, para escolher o sucessor do presidente Mahmoud Ahmadinejad, que não pode concorrer de novo por já ter cumprido dois mandatos seguidos.

QUEM VOTA?

O país tem cerca de 50 milhões de eleitores aptos a votar, o equivalente a toda a população acima de 18 anos, homens e mulheres de qualquer grupo étnico (persas, azeris, curdos, etc) ou religioso (muçulmanos, judeus, cristãos, zoroastras e bahá’ís). O voto não é obrigatório, mas os iranianos adoram política e acabam sempre comparecendo às urnas em grande número. A campanha para a última eleição, há quatro anos, eletrizou a população, e a participação foi de 80%. Em 2005, antes o clima era mais morno, mas ainda assim 60% dos eleitores votaram. Para o regime, quanto mais alto o comparecimento, maior a legitimidade popular do Estado teocrático fundado com a revolução de 1979.

Nos meios conservadores alinhados ao regime, o voto é visto como uma obrigação religiosa. Neste ano, o regime fez coincidirem as eleições para presidente e vereador, voto mais importante em algumas cidades do interior. Unir as duas votações denota um esforço das autoridades para obter a participação mais alta possível.

COMO É A VOTAÇÃO?

A votação é secreta e acontece em centenas de escolas e mesquitas em todo o país, dos bairros mais chiques de Teerã até as ilhas no golfo Pérsico, passando pelos povoados perdidos nas montanhas do Curdistão. Não há zonas eleitorais, ou seja que todo mundo pode votar onde quiser. O eleitor se apresenta, mostra um documento de identidade e mergulha o dedo indicador na tinta para evitar repetição de votos.

Resultados são anunciados pelo Ministério do Interior algumas horas após o fechamento das urnas. Se ninguém levar 50% + 1 dos votos, haverá segundo turno, uma semana após o primeiro. A posse será no início de agosto.

Mulheres iranianas esperam em fila para votar, em um templo da cidade sagrada de Qom; país vai às urnas decidir o sucessor do presidente Mahmoud Ahmadinejad (Seda Ravandi/AFP)

QUEM SÃO OS CANDIDATOS DA VEZ?

Após duas desistências na reta final da campanha, seis candidatos estão na briga. Os principais são três conservadores (Mohamad Qalibaf, prefeito de Teerã; Ali Akbar Velayati, assessor diplomático do líder supremo; e Said Jalili, chefe negociador nuclear) e um clérigo centrista (Hasan Rowhani, ex-negociador nuclear) que se tornou a opção da oposição reformista. Num reflexo das sutilezas da política iraniana, o candidato mais radical é um diplomata (Jalili) e o mais moderado, um mulá (Rowhani).

Correm por fora um ex-comandante militar (Mohsen Rezaee) e um ex-ministro dos Correios (Mohamad Gharazi).

TODO MUNDO PODE CONCORRER À PRESIDÊNCIA?

Em tese, qualquer iraniano nato, muçulmano xiita, maior de idade, com pós graduação e sem ficha policial pode concorrer. Basta juntar RG, fotos 3 x 4 e currículo e levar a papelada ao Ministério do Interior no mês que antecede a eleição. Neste ano, quase 700 pessoas se registraram, de estudantes a malucos beleza. Mas há uma filtragem rigorosa por parte do regime. Quem avalia as candidaturas é o Conselho de Guardiães da Revolução, formado por seis juristas e seis teólogos encarregados de avaliar a conformidade dos presidenciáveis aos ideais islâmicos da revolução de 1979. Mulheres podem se candidatar, mas nenhuma até hoje conseguiu ser aprovada pelo conselho.

No fundo, o conselho acaba refletindo a vontade do líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, o homem que mais manda no Irã. Como Ahmadinejad deu muito trabalho a Khamenei nos últimos anos, contestando sua autoridade e pregando até mesmo, pasme, uma relação direta com Deus, o regime desta vez só liberou candidatos vistos como irrestritatamente leais ao sistema teocrático.

COMO SÃO AS CAMPANHAS?

A maior particularidade das campanhas no Irã é sua curta duração. O prazo entre o anúncio dos nomes aprovados pelo Conselho de Guardiães da Revolução e o dia do voto não passa de algumas semanas. Nesta campanha, Teerã só passou a ter clima de eleição uma semana antes do voto. Há cartazes por toda a cidade, distribuição de panfletos, carros de som, musiquinhas de candidatos, passeatas e comícios. A disputa monopoliza conversas nos mais variados meios sociais. Como os iranianos adoram ter opinião sobre tudo, até quem não vai votar gosta de dar pitaco.

Não há financiamento público de campanhas. Candidatos dependem de doações, que são ilimitadas. Cada presidenciável teve nas últimas semanas 360 minutos gratuitos na TV estatal, incluindo espaço para documentários e entrevistas. Além disso, tiveram quatro horas na rádio estatal.

ELEIÇÕES REALMENTE IMPORTAM NO IRÃ? RESULTADOS SÃO CONFIÁVEIS?

O regime funciona com base num sistema que mescla entidades com poder divino e órgãos republicanos nos quais os cargos são eletivos (presidente, deputados, conselheiros municipais).

Predomina no Ocidente a ideia de que as eleições no Irã são manipuladas. A última votação presidencial, há quatro anos, ficou marcada por acusações de fraude para favorecer Ahmadinejad. Há vários indícios de irregularidade, mas faltam provas definitivas. Um ex-diplomata americano especialista em Irã, William R.Polk, lembra em seu livro “Understanding Iran” que todas as pesquisas eleitorais de 2009, inclusive as feitas a pedido da oposição, previam uma vitória de Ahmadinejad, que tinha grande base de apoio popular devido a programas sociais. Os pleitos anteriores ao de 2009 não geraram as mesmas acusações de fraude.

Várias vezes o líder supremo aceitou derrotas de candidatos que tinham sua preferência. O caso mais famoso é o do reformista Khatami, que foi eleito e reeleito à Presidência (1997 e 2001), apesar de Khamenei preferir outros líderes. Dito isso, os tempos mudaram, e especula-se que o regime talvez não esteja mais disposto a aceitar um presidente reformista.

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

Islamitas, mas críticos do regime

Por Samy Adghirni
07/06/13 17:54

Mehdi, 25, tem tudo para ser o perfeito jovem militante entusiasta do regime iraniano. Xiita devoto, reza cinco vezes ao dia, não bebe nem namora. Com sua barba, cabelo penteado para o lado e anel de oração na mão direita, ele poderia ser facilmente confundido com um membro do basij, a milícia prórregime cujas tarefas incluem desde trabalho comunitário até bater em manifestantes. Mehdi foi criado em Qom, um dos principais santuários do islã xiita e epicentro teológico do Irã.

Só que Mehdi, nome fictício para proteger o rapaz, é o oposto do que a cúpula do regime gostaria que ele fosse.

Mehdi é na verdade um fervoroso oposicionista. Um reformista da gema. Em 2009, ele esteve no Movimento Verde, que tomou as ruas de Teerã para denunciar supostas fraudes orquestradas pelo regime com o objetivo de garantir a reeleição do conservador Mahmoud Ahmadinejad. Verde era a cor de campanha do candidato que pretendia ter ganhado o voto, Mir Hossein Mousavi. Mehdi sentiu na pele o caos e a brutalidade daquelas tardes sob o implacável sol de junho, nas quais dezenas de pessoas morreram e centenas foram presas. Mousavi acabou em prisão domiciliar, em meio a manobras para enfraquecer de vez os reformistas. Hoje, no momento em que o Irã entra na reta final da campanha para a primeira votação presidencial desde então, Mehdi voltou ao ativismo político.

Mehdi é voluntário na campanha do centrista Hasan Rowhani, um clérigo cosmopolita que aparece, até agora, como opção viável para o eleitorado de classe média, urbano e instruído que formou a base do Movimento Verde há quatro anos. Na realidade até existe um reformista de carteirinha na disputa. Chama-se Mohamadreza Aref, foi vice-presidente da república islâmica nos anos 90 e hoje é professor universitário. Mas, na próxima sexta-feira, dia 14 de junho, Mehdi prefere votar em Rowhani, ou seja, num religioso.

“O Irã está cada vez mais isolado. A economia afunda. Sou formado numa das melhores faculdades de engenharia petroleira, mas não acho emprego porque o setor está parado devido às sanções. As pessoas estão deprimidas. Por causa da pressão das autoridades, os valores morais estão se desintegrando. As pessoas mentem e se tornam desonestas para poder sobreviver”, diagnostica Mehdi.

Essa situação ilustra uma nuance que é difícil de entender no Ocidente.

Em São Paulo, Paris ou Nova York, as pessoas tendem a enxergar a realidade política iraniana como uma disputa entre teocratas opressores e libertários moderninhos que querem derrubar a república islâmica. A coisa é bem mais complicada, mesmo na estreita vida política iraniana, onde a oposição atua dentro dos limites impostos pelo sistema teocrático em vigor desde a revolução de 1979. Mehdi é um bom exemplo disso. Algumas considerações:

– Nem todos os teocratas são opressores. Há muitos religiosos profundamente conservadores que rejeitam o atual estado das coisas. Melhor exemplo é o clérigo Ali Husein Montazeri, morto em 2009. Seu título era de grão-aiatolá, máximo do máximo na hierarquia xiita. Montazeri pertenceu ao círculo mais próximo do aiatolá Khomeini, fundador da república islâmica, com quem costurou a constituição iraniana. Montazeri chegou a ser cotado para ser o líder supremo que substituiria Khomeini. Mas caiu em desgraça por discordar do que, segundo ele, era um desvio autoritário do regime, algo contrário aos verdadeiros ideais de justiça e humanismo do islã. Montazeri dizia que o Irã havia se transformado em algo que não era nem república nem islâmico. Acabou em prisão domiciliar em Qom, onde morreu em meio a gigantesca comoção.

– Mehdi, o engenheiro desempregado, é orgulhoso oposicionista, mas deixa claro que não quer derrubar o regime. Como o próprio nome diz, reformistas querem reformas, não uma nova revolução. Mehdi acredita no Estado teocrático e argumenta que os iranianos formam uma sociedade conservadora que aceita a autoridade religiosa. O problema, segundo Mehdi, é que esse Estado não respeita seus cidadãos ao coibir liberdades individuais e de imprensa, e ao não enxergar a urgência de melhorar a relação com as potências ocidentais para levantar a economia. Outro que pensa assim é um conhecido meu que ostenta o título de Seyed, privilégio social e religioso de quem descende diretamente da família do profeta Maomé. Seyed Vahid, seu nome, é um homem religioso, mas diz que o regime precisa mudar com urgência.

– Dia desses conheci um importante colaborador da cúpula política reformista. O sujeito tem pinta de galã, bebe e usa gravata, acessório ocidental execrado pelos ultraconservadores. “Nunca quisemos derrubar o regime”, me garantiu.

– Também há milhões de iranianos que gostariam de viver num Estado secular. Mas a maioria dos que pensam assim vivem no exterior. Quem vive no Irã geralmente não quer uma nova revolução, por saber que isso traria um enorme impacto na vida das pessoas, e por muito tempo. Os acontecimentos de 1979, levante em massa contra a ditadura do xá, custou caro aos iranianos. Há gente que participou da revolução, mas hoje acha que não valeu a pena. De qualquer maneira, é complicado ter revoluções a cada 30 e poucos anos.

– Apesar das dificuldades econômicas e de muita coisa que não faz sentido aos olhos dos ocidentais, o regime iraniano continua se beneficiando de uma imensa base de apoio popular. Nos campos, nas periferias humildes, no mundo do comércio popular e, para além disso, há muita gente que apoia de forma irrestrita o sistema em sua forma atual e o líder supremo, aiatolá Ali Khamenei. A base de apoio ao status quo inclui gente de todas as idades e meios, inclusive ricos com formação no exterior. Quem vê o Irã de fora tende a fazer análises equivocadas por focar apenas na parcela social que se identifica mais com o Ocidente. Alguns jornalistas estrangeiros que conseguem visto para fazer coberturas no Irã se interessam sempre pelas mesmas coisas.

– No Irã, governo é diferente de Estado. Ahmadinejad é governo, mas o chefe de Estado é o líder supremo. Quando se fala em regime iraniano, o sujeito é o Estado, o sistema teocrático implementado com a revolução islâmica de 1979. Ou seja que é possível ser contra o governo, mas a favor do regime. Khamenei ainda tem aura de santidade, e suas falas têm imenso alcance e impacto.

– Nesta eleição a grande briga se dá entre conservadores. Mesmo com irretocáveis credenciais de devoção à revolução islâmica, candidatos defendem agendas muitas vezes antagônicas. Os debates ao vivo na TV estatal escancararam as divergências entre os dois mais próximos colaboradores do líder supremo. O ex-chanceler Ali Akbar Velayati atacou o atual negociador chefe, Said Jalili, por não ter conseguido nenhum avanço nas conversas com as potências. Jalili respondeu que a culpa é do Ocidente, não dos negociadores iranianos. Velayati diz que é preciso restabelecer relações de confiança com a Europa, enquanto Jalili insistiu em que é preciso resistir às pressões e aceitar sacrifícios em nome dos ideais revolucionários.

Por essas e outras, desconfie sempre que alguém disser que entende de Irã. Eu mesmo continuo engatinhando.

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

A ONU se derrama em elogios ao Irã

Por Samy Adghirni
23/05/13 17:42

O Irã acumula vasto histórico de denúncias por repressão moral, tortura, perseguição política e outras graves violações de direitos humanos. Mas em termos de desenvolvimento social e humano, a república islâmica é um modelo. Quem diz isso é a ONU.

O último relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP), divulgado no mês passado, mostra que as condições de vida da maioria dos iranianos deu um salto qualitativo gigantesco após a revolução popular que varreu do poder a ditadura pró-Ocidente do xá Mohamed Reza Pahlevi, em 1979.

O ponto de partida desta avaliação é o IDH, Índice de Desenvolvimento Humano, estabelecido pela ONU a partir dos anos 90 com o objetivo de incluir outros fatores além da simples economia para medir o padrão de vida médio de um país. O índice é obtido a partir de um cálculo que leva em conta expectativa de vida, educação (alfabetização + escolarização) e renda. A escala vai de 0 a 1. Quanto mais alto, melhor. Há muitas críticas contra a metodologia, mas o IDH foi amplamente abraçado como um indicador pertinente e respeitado. Uma olhada no ranking basta para perceber que a coisa faz sentido. A Noruega tem o melhor IDH e o Níger, o pior.

Irã (76ª posição) e Brasil (85ª) ficam no mesmo grupo de países com IDH “alto”. Abaixo dos “muito alto” e acima dos “médio” e “baixo”.

Não só a república islâmica está na frente da gente, como também teve um aumento duas vezes mais rápido que a média mundial. O IDH iraniano cresceu 67% entre 1980 e 2012, o equivalente a 1,60% ao ano. O resto do mundo evoluiu a uma média de 0,69% ao ano. A progressão do Irã supera até mesmo a média dos países no topo do ranking, que tiveram alta de 0,73% ao ano.

“Do ponto de vista do desenvolvimento humano [no período de 1980 a 2012], as políticas de intervenção do Irã foram tanto significativas quanto apropriadas para produzirem a melhora no IDH”, disse o chefe representante da ONU no Irã, Gary Lewis, ao apresentar o relatório a uma plateia de diplomatas estrangeiros. Também presente, o ministro das Relações Exteriores do Irã, Ali Akbar Salehi, era pura felicidade. “Não é o governo iraniano que está dizendo isso, é um órgão externo”, deleitou-se.

Lewis compartilhou uma penca de dados favoráveis ao regime iraniano. Ele disse que a taxa de morte de mulheres em decorrência de parto no Irã é de 21 para cada 100 mil nascimentos. Nos outros países do grupo “IDH alto”, esse número aumenta para 47. No Brasil, o número de óbitos alcança a vergonhosa marca de 56.

O percentual de mulheres com educação secundária ou superior no Irã é amplamente maior que o número no Brasil _62,1% contra 50,5%. Mas as brasileiras levam a melhor em matéria de representação no Parlamento (9,6% contra 3,1%) e na categoria “igualdade de gênero”, onde o Brasil está em 85º no ranking mundial, enquanto o Irã está na posição 107.

Um amigo correspondente ocidental a serviço de um jornalão internacional, que está há mais tempo que eu no Irã, resumiu a situação da seguinte forma: “esses caras do regime podem ser criticados por um milhão de razões legítimas, mas se tem uma coisa que eles conseguiram, é dar condições de vida decentes para o povo”.

Programas sociais e subsídios movidos a petrodólares garantem um freio contra o tipo de miséria em larga escala que se vê em países como Índia e Egito. Iranianos não só têm acesso a universidades com razoável nível de ensino como também cultivam a ideia de que é feio não ter curso superior. Hospitais públicos repletos de médicos com especialização no exterior fornecem um serviço digno. A infraestrutura do país, de estradas a redes de telecomunicação, opera em condições aceitáveis. A violência urbana é mínima. Os iranianos compõem, em grande parte, uma sociedade de classe média.

Obviamente, o Irã está longe de ser um mar de rosas. Quando fui cobrir um terremoto que deixou centenas de mortos na remota Província do Azerbaijão Ocidental, no ano passado, vi camponeses miseráveis que viviam feito animais em casas de terra. O poder de compra da já mencionada classe média está ruindo por causa de um misto de sanções econômicas internacionais contra o programa nuclear e populismo desenfreado da era Ahmadinejad. As ruas de Teerã começam a ter alguns pedintes. O que muda em relação a vários países é a escala do problema.

Dito isso tudo, muitos iranianos com quem converso não se enxergam como integrantes de uma sociedade relativamente privilegiada, inclusive gente com boa situação financeira. Se dizem infelizes com o ambiente e sonham em se mudar para outro país. IDH não é tudo na vida.

PS: link para o relatório da ONU sobre o desenvolvimento humano no Irã

http://www.undp.org.ir/doccenter/hdr2013/IR%20of%20Iran%20Extract%20in%20HDR%202013%20ENG.pdf

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor
Posts anteriores
Posts seguintes
Publicidade
Publicidade
  • RSSAssinar o Feed do blog
  • Emailsamy.adghirni@grupofolha.com.br

Buscar

Busca
  • Recent posts Samy Adghirni
  1. 1

    Um adeus e um livro

  2. 2

    Googoosh, a diva do pop persa

  3. 3

    "Essa gente" no poder

  4. 4

    O caos eficiente do transporte urbano em Teerã

  5. 5

    Algo de podre no ambiente pré-copa

SEE PREVIOUS POSTS
Blog dos Correspondentes

Tags

adghirni Airbus A300 Ano Novo persa Arash Hejazi Bandar Abbas Christian Science Monitor Estreito de Ormuz F14 Tomcat Feira do Livro de Teerã George Bush Império persa Iran Air 655 irã Irã; EUA; Samy Adghirni; Scott Peterson Irã; Mulher: Apedrejamento; Revolução Islâmica; Samy Adghirni; Ruhollah Khomeini: Savak; Xá Mohamed Reza Pahlevi Irã; Teerã; Samy Adghirni isfahan israel khomeini mossad Neda Agha Soltan Nowruz nuclear Pasárgada Paulo Coelho Persépolis Piquenique; parque Mellat Polícia moral Press TV rituais samsung Samy Adghirni Sexualidade no islã; Corão; Bíblia Shiraz sincretismo Teerã Torá; Turismo no Irã USS Vincennes Valiasr Vanak William C. Rogers zoroastrismo
Publicidade
Publicidade
Publicidade
  • Folha de S.Paulo
    • Folha de S.Paulo
    • Opinião
    • Assine a Folha
    • Atendimento
    • Versão Impressa
    • Política
    • Mundo
    • Economia
    • Painel do Leitor
    • Cotidiano
    • Esporte
    • Ciência
    • Saúde
    • Cultura
    • Tec
    • F5
    • + Seções
    • Especiais
    • TV Folha
    • Classificados
    • Redes Sociais
Acesso o aplicativo para tablets e smartphones

Copyright Folha de S.Paulo. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress (pesquisa@folhapress.com.br).