Bater no próprio corpo até sangrar
14/11/13 19:22Por Samy Adghirni
Quando criança, me impressionava ver pela televisão imagens dos rituais xiitas de autoflagelo. Hoje, pela primeira vez, presenciei uma dessas cerimônias, ao vivo e a cores, acompanhado do repórter fotográfico da Folha Apu Gomes, que conseguiu captar, em imagens excepcionais, a intensidade do momento. As cenas foram registradas num bairro popular ao sul de Teerã.
O autoflagelo, que consiste em jogar os braços sobre o próprio peito, bater com as mãos na cabeça ou chicotear as costas até cortar a carne, ocorre durante a Ashura, o feriado que comemora o martírio do imã Hussein, neto do profeta Maomé. Imã é o título dado pelos xiitas aos santos que descendem do profeta.
Hussein, sua família e seus companheiros foram dizimados por uma facção islâmica inimiga, no ano de 680, em meio a disputas para comandar os crentes após a morte de Maomé. O extermínio foi lento e atroz. Primeiro, a turma de Hussein ficou encurralada, sem água, agonizando no deserto. Depois, foram decapitados e queimados. Mulheres e crianças juntos.
Tudo isso ocorreu após a batalha de Karbala, cidade situada no atual Iraque. Foi um dos eventos que contribuíram para rachar o islã entre suas duas principais correntes. De um lado, sunitas, partidários da sucessão a Maomé em função do mérito espiritual e adeptos de uma teologia mais ortodoxa. Do outro, xiitas, defensores de uma transmissão por laços de sangue e seguidores de uma doutrina mais mística e cheia de símbolos. O festival de Ashura é ao mesmo tempo uma homenagem ao imã Hussein e uma maneira de os xiitas compartilharem parte de sua dor.
Já faz algum tempo que o governo iraniano baniu o autoflagelo com facão, que passava ao mundo imagem insana. Xiitas no vizinho Paquistão ainda recorrem à prática extrema. No Irã, o mais comum é ver, ao som de cânticos de lamurio, aglomerações de pessoas batendo suavemente no peito, num ritual simbólico, sem machucar. Mas também ocorrem cerimônias, como a que vimos, nas quais homens sem camisa jogando braços para o alto antes de projetá-los com força contra o peito em ritmo sincronizado, gerando um enorme bumbo linear que espalha pelo ambiente uma sensação de transe. Também ocorre ocasionalmente o autoflagelo nas costas com chicote ou correntes de metal, que pode levar ao sangramento.
A cerimônia que Apu e eu presenciamos durou mais de uma hora. Uma loucura para padrões ocidentais. Mas é difícil não se comover com a entrega absoluta à fé e o sentido de sacrifício.
Passados alguns minutos dentro do calor da mesquita abarrotada de gente, a sensação é de quase hipnose diante do barulho das compassadas batidas corporais. Ao final, centenas de homens com o peito vermelho de tanta pancada, alguns aos prantos, formaram fila para receber um prato de comida oferecido pela mesquita. Ricos empresários ou jovens desempregados, todas as classes sociais estavam representadas. Mulheres também fazem ritual de autoflagelo numa área reservada à qual não tivemos acesso.
Momentos antes, assistimos a uma encenação na qual atores vestidos de umíadas (dinastia islâmica vista como carrasca pelos xiitas) batiam em crianças que representavam filhos de Hussein e de seus aliados. Algumas pancadas eram de mentirinha, outras assustaram a molecada.
A experiência foi um banho de exotismo, mesmo para quem, como eu, mora há dois anos no Irã. Sim, o país é uma teocracia xiita e escancara por toda parte a predominância da religião na gestão da coisa pública.
Mas Teerã é uma metrópole moderna que tem várias facetas bem mais próximas do nosso estilo de vida do que se possa imaginar. O bairro onde vivo se parece com muitos lugares no Ocidente, não fosse pelas mulheres com cabelo coberto e pelas placas de sinalização em farsi –e inglês. A celebração de Ashura foi um mergulho na psique espiritual iraniana.