Folha de S.Paulo

Um jornal a serviço do Brasil

  • Assine a Folha
  • Atendimento
  • Versão Impressa
Seções
  • Opinião
  • Política
  • Mundo
  • Economia
  • Cotidiano
  • Esporte
  • Cultura
  • F5
  • Classificados
Últimas notícias
Busca
Publicidade

Samy Adghirni

Um brasileiro no Irã

Perfil Samy Adghirni correspondente em Teerã.

Perfil completo

Bater no próprio corpo até sangrar

Por diego
14/11/13 19:22

Por Samy Adghirni

Quando criança, me impressionava ver pela televisão imagens dos rituais xiitas de autoflagelo. Hoje, pela primeira vez, presenciei uma dessas cerimônias, ao vivo e a cores, acompanhado do repórter fotográfico da Folha Apu Gomes, que conseguiu captar, em imagens excepcionais, a intensidade do momento. As cenas foram registradas num bairro popular ao sul de Teerã.

O autoflagelo, que consiste em jogar os braços sobre o próprio peito, bater com as mãos na cabeça ou chicotear as costas até cortar a carne, ocorre durante a Ashura, o feriado que comemora o martírio do imã Hussein, neto do profeta Maomé. Imã é o título dado pelos xiitas aos santos que descendem do profeta.

Ashura

Hussein, sua família e seus companheiros foram dizimados por uma facção islâmica inimiga, no ano de 680, em meio a disputas para comandar os crentes após a morte de Maomé. O extermínio foi lento e atroz. Primeiro, a turma de Hussein ficou encurralada, sem água, agonizando no deserto. Depois, foram decapitados e queimados. Mulheres e crianças juntos.

Tudo isso ocorreu após a batalha de Karbala, cidade situada no atual Iraque. Foi um dos eventos que contribuíram para rachar o islã entre suas duas principais correntes. De um lado, sunitas, partidários da sucessão a Maomé em função do mérito espiritual e adeptos de uma teologia mais ortodoxa. Do outro, xiitas, defensores de uma transmissão por laços de sangue e seguidores de uma doutrina mais mística e cheia de símbolos. O festival de Ashura é ao mesmo tempo uma homenagem ao imã Hussein e uma maneira de os xiitas compartilharem parte de sua dor.

Já faz algum tempo que o governo iraniano baniu o autoflagelo com facão, que passava ao mundo imagem insana. Xiitas no vizinho Paquistão ainda recorrem à prática extrema. No Irã, o mais comum é ver, ao som de cânticos de lamurio, aglomerações de pessoas batendo suavemente no peito, num ritual simbólico, sem machucar. Mas também ocorrem cerimônias, como a que vimos, nas quais homens sem camisa jogando braços para o alto antes de projetá-los com força contra o peito em ritmo sincronizado, gerando um enorme bumbo linear que espalha pelo ambiente uma sensação de transe. Também ocorre ocasionalmente o autoflagelo nas costas com chicote ou correntes de metal, que pode levar ao sangramento.

A cerimônia que Apu e eu presenciamos durou mais de uma hora. Uma loucura para padrões ocidentais. Mas é difícil não se comover com a entrega absoluta à fé e o sentido de sacrifício.

Passados alguns minutos dentro do calor da mesquita abarrotada de gente, a sensação é de quase hipnose diante do barulho das compassadas batidas corporais. Ao final, centenas de homens com o peito vermelho de tanta pancada, alguns aos prantos, formaram fila para receber um prato de comida oferecido pela mesquita. Ricos empresários ou jovens desempregados, todas as classes sociais estavam representadas. Mulheres também fazem ritual de autoflagelo numa área reservada à qual não tivemos acesso.

Momentos antes, assistimos a uma encenação na qual atores vestidos de umíadas (dinastia islâmica vista como carrasca pelos xiitas) batiam em crianças que representavam filhos de Hussein e de seus aliados. Algumas pancadas eram de mentirinha, outras assustaram a molecada.

A experiência foi um banho de exotismo, mesmo para quem, como eu, mora há dois anos no Irã. Sim, o país é uma teocracia xiita e escancara por toda parte a predominância da religião na gestão da coisa pública.

Mas Teerã é uma metrópole moderna que tem várias facetas bem mais próximas do nosso estilo de vida do que se possa imaginar. O bairro onde vivo se parece com muitos lugares no Ocidente, não fosse pelas mulheres com cabelo coberto e pelas placas de sinalização em farsi –e inglês. A celebração de Ashura foi um mergulho na psique espiritual iraniana.

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

Visitei a antiga embaixada dos EUA no Irã

Por Samy Adghirni
01/11/13 09:54

Sempre achei a antiga Embaixada dos EUA, palco da histórica tomada de reféns romantizada no filme “Argo” (2012), um dos pontos altos de qualquer visita a Teerã.

Fiz questão de levar todos os parentes e amigos que vieram me visitar nesses quase dois anos como correspondente da Folha de S.Paulo no Irã para fotografar o blasão com a águia americana ainda cravado no portão do complexo. Até quem não é fissurado em história e geopolítica se sensibiliza ao ver, intacto, o palco de um dos fatos mais marcantes da história contemporânea.

Para quem não se lembra, a invasão foi lançada em 4 de novembro de 1979 por manifestantes furiosos com o asilo dado pelos EUA ao xá Mohamad Reza Pahlavi, varrido do poder, meses antes, pela revolução que levou ao poder o aiatolá Khomeini e seus aliados.

Seis diplomatas conseguiram fugir por uma portinha lateral e se refugiaram na casa de diplomatas canadenses antes de ser exfiltrados do Irã com ajuda da CIA, narrativa central de “Argo”. Outros reféns, negros e mulheres, foram libertados por ordem de Khomeini por serem “oprimidos” nos EUA. Mas 52 reféns ficaram em cativeiro por 444 dias. Embora tenham sofrido pouca violência física contra eles, foram submetidos a terríveis torturas psicológicas, como simulação de execuções. A invasão terminou após mediação da Argélia, mas Teerã e Washington se tornaram desde então arqui-inimigos. A disputa entre interesses iranianos e americanos molda boa parte da geopolítica do Oriente Médio e, portanto, do mundo. A tomada da embaixada foi um divisor de águas.

Ontem, pela primeira vez pude entrar no complexo.

Ao lado de dois outros jornalistas estrangeiros baseados em Teerã, tive o privilégio de circular pelo local, hoje controlado pela milícia pró-regime basij. Os basijis abriram as portas da antiga embaixada, às vésperas do 35º aniversário do ataque, para exibir ao público a parafernália de artefatos e equipamentos usados pelos agentes secretos americanos no prédio hoje conhecido como “ninho de espiões.”

A mensagem da milícia é clara: os EUA são maléficos e não merecem confiança. Os basijis são parte da ala ultraconservadora do regime que rejeita os acenos do novo presidente, Hasan Rowhani, em direção ao Ocidente. Os milicianos jogaram ovos e sapatos no presidente quando ele voltou ao Irã após participar do encontro anual da ONU, em Nova York, durante o qual conversou ao telefone com Barack Obama, no primeiro contato entre dirigentes dos dois países desde a revolução iraniana de 1979.

A visita de duas horas pelo jardim e corredores da embaixada foi incrível. Só não curti mais porque estava com a cabeça no modo trabalho.

Está aí a reportagem, com galeria de fotos, sobre a visita à antiga embaixada.

 

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

Empresas ocidentais querem voltar ao Irã

Por Samy Adghirni
22/10/13 17:10

O pedido partiu de dois dos maiores capitães da indústria petroleira mundial: sanções ao Irã precisam ser levantadas rapidamente.

Peter Voser, diretor executivo da Royal Dutch Shell, e Christophe de Margerie, da Total, deixaram claro que não veem a hora de voltar a assinar contratos com o país que detém 11% das reservas mundiais de petróleo e 15% das de gás.

O assunto ressurgiu com força desde que negociações sobre o programa nuclear iraniano entraram numa era de otimismo com a chegada do pragmático Hasan Rowhani à Presidência da república islâmica, em agosto.

Em recente conversa com jornalistas, numa conferência internacional sobre petróleo, em Londres, Voser usou o argumento do interesse coletivo: “No longo prazo, os recursos em petróleo e gás do Irã terão de ser desenvolvidos para atender a demanda [mundial]”

Falando no mesmo evento, De Margerie disse esperar que negócios petroleiros com Teerã voltem a ser permitidos “o mais rápido possível, não só para a Total, mas para o mundo e para o Irã.”

Shell e Total são parte do grupo de gigantes petroleiras que foram obrigadas a deixar o Irã nos últimos anos por causa do acirramento das sanções.

O “Financial Times” garante que o retorno do investimento ocidental no setor de hidrocarbonetos iraniano poderia jogar o preço mundial do barril de petróleo para abaixo de US$ 100.

Tudo isso expõe o abismo que separa atores políticos e econômicos no Ocidente quando o assunto é Irã.

Dirigentes e diplomatas de EUA e Europa passaram boa parte da última década pressionando Teerã a suspender seu programa nuclear, suspeito de ter fins militares, o que o Irã nega. Quantos mais sanções eram impostas, maior a dificuldade econômica para a república islâmica.

O problema é que as punições também representaram um golpe duríssimo para empresas ocidentais (não só petroleiras) acostumadas a fazer negócios num país que tem 77 de milhões de habitantes, colossais reservas financeiras e uma sociedade jovem com um dos níveis de vida mais elevados da região.

Exemplo mais eloquente é o da Peugeot. O mercado iraniano era um dos únicos no mundo em que a empresa francesa ganhava dinheiro. Sim, sanções empobreceram a população, e as vendas vinham caindo. Mas a retirada total e definitiva do país, em 2011, custou caríssimo e empurrou a empresa para mais perto da falência.

Para piorar, a retirada ocidental abriu caminho para concorrentes chinesas e coreanas, que agora nadam de braçada no Irã.

Empresas ocidentais vivem implorando que seus governos evitem medidas que afetem o interesse público. Principalmente em tempos econômicos tão incertos nos EUA e na Europa.

Existem até diplomatas que, em conversa reservada, admitem discordar de seus governos. Um funcionário de país europeu me confidenciou o seguinte: “Nossa embaixada em Teerã calcula que, se pudéssemos normalizar negócios com o Irã, notaríamos uma incidência positiva no nosso PIB. Mas dependemos das normas da União Europeia, e essas normas seguem a linha dura contra o Irã”.

Algumas empresas ocidentais resolveram remar contra a maré e ficaram no Irã. Abordei esse tema numa reportagem publicada na versão impressa da Folha, no mês passado. Mas, há anos, a tendência dominante é a inversa.

Tudo pode mudar em função das conversas entre o governo Rowhani, que prometeu acabar com as sanções, e as potências. E o clima entre os negociadores nunca foi tão bom.

Com aval do líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, chefe máximo da teocracia iraniana, a equipe de Rowhani deixou claro, nas mais recentes negociações, que está disposta a atender várias exigências ocidentais para aumentar a transparência de seu programa nuclear. Rowhani até falou ao telefone com Barack Obama há algumas semanas, no primeiro contato entre dirigentes dos dois países em 34 anos de inimizade.

Governos ocidentais até agora não disseram se estão dispostos a responder à altura à oferta iraniana, cujos detalhes são mantidos em sigilo para preservar as negociações. Além disso, tanto em Teerã como nas capitais ocidentais existe uma mobilização significativa de forças radicais contrárias ao apaziguamento.

Mas a movimentação já é frenética entre as multinacionais. O jornal francês “Le Figaro” revelou que a General Motors discretamente enviou várias equipes a Teerã para preparar uma volta ao mercado do qual estava fora desde a queda da ditadura pró-Ocidente, em 1979. Ainda segundo o jornal, a Boeing está pronta para arrematar futuros contratos para renovar a envelhecida frota das empresas aéreas iranianos, impedidas de comprar aviões novos por causa das sanções. “A matéria do ‘Figaro’? Tudo verdade”, me garantiu um alto funcionário de multinacional francesa.

Na área petroleira, o novo governo já avisou que fará preço promocional para quem se mostrar mais disposto a retomar investimentos.

O economista Mehrdad Emadi, da consultoria Betamatrix, em Londres, me contou que o potencial econômico do Irã é um dos fatores que levam o Ocidente a se interessar por um acordo nuclear. Mas o economista ressalta que cabe também ao governo iraniano fazer mudanças necessárias para trazer de volta investimentos e expertise ocidentais.

“À luz dos muitos encontros que tive com empresários, acredito que o Irã agora é visto como um país com promessas de oportunidade sem igual, caso o país melhor seu marco regulatório para torná-lo compatível com as regras da Organização Mundial do Comércio (OMC). […] É concebível que o Irã se torne nos próximos cinco a oito anos o mercado mais disputado […] do Oeste asiático e do Oriente Médio.”

E o Brasil nisso tudo?

Brasileiros já investiram no Irã. A Petrobras tinha um contrato de prospecção. A Volkswagen possuía linha de montagem do modelo Gol. As duas empresas saíram do Irã há anos.

O Brasil hoje tende a enxergar o Irã como mero importador. A verdade é que empresários brasileiros não têm muita paciência para lidar com os perrengues inerentes a qualquer negócio com o Irã (complicações e atrasos de pagamentos, burocracias, distância etc), mesmo que os iranianos tenham o salutar hábito de pagar em cash e 100% adiantado. A corrente comercial bilateral, quase toda composta por exportações brasileiras, se mantem em cerca de US$ 2 bilhões, cifra honrosa, mas muito distante do potencial.

Um diplomata iraniano mandou o seguinte recado: “Estamos dispostos a comprar todo tipo de produto do Brasil. Temos demanda e temos dinheiro. Mas falta vontade do lado brasileiro. […] No dia em que as sanções forem levantadas, iranianos se voltarão todos para Europa e EUA.”

No mês passado, iranianos indicaram disposição do presidente Rowhani para um encontro com Dilma às margens da última Assembleia Geral da ONU. O governo brasileiro não levou a conversa adiante.

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

Iranianos na cara de Netanyahu

Por Samy Adghirni
07/10/13 16:55

Preocupado com o ensaio de reaproximação entre Irã e EUA, o premiê de Israel, Binyamin Netanyahu, escolheu a BBC Persian para mandar um recado à população iraniana.

Numa entrevista à emissora de TV britânica em farsi, banida na república islâmica, mas amplamente acessada mediante parabólicas, Netanyahu pediu aos iranianos que se mobilizem contra o regime de Teerã. “Vocês, persas, nunca se livrarão desta tirania se ela [conseguir] armas nucleares. […] Pelo amor de Deus, não a deixem ter armas nucleares”, disse o premiê na entrevista, dublada em farsi.

Para tentar se mostrar solidário aos iranianos, Netanyahu disse o seguinte:

“Se a população do Irã fosse livre, poderia usar calças jeans, ouvir música ocidental e ter eleições livres.”

Mas a frase teve o efeito exatamente oposto do desejado.

Em vez de se sentir amparados, os iranianos ficaram furiosos com a inverdade (jeans e música ocidental são tão comuns no Irã como em quase todos os países) e com a intromissão de um líder detestado no país por defender sem parar um bombardeio à república islâmica.

Horas após a entrevista de Netanyahu, iranianos tomaram as redes sociais para postar fotos de suas calças jeans e CDs de música ocidental. As imagens eram acompanhadas de comentários revoltados contra o premiê israelense.

Imagem de jeans publicada pelo usuário @xenith_of_truth, no Instagram

Imagem de jeans publicada pelo usuário @nilfar2, no Instagram

Imagem de jeans publicada pelo usuário @at13sa, no Instagram

O mais embaraçoso para Netanyahu foi ter mencionado na entrevista, para mostrar o que o governo iraniano é capaz de fazer, o caso da jovem Neda Agha Soltan, cuja morte foi registrada em video durante protestos de 2009 contra a reeleição supostamente fraudulenta do então presidente Mahmoud Ahmadinejad. O premiê israelense não reparou que a moça usava jeans ao morrer.

Pardis, 24, estudante de engenharia, me disse o seguinte sobre a entrevista do chefe de governo israelense à BBC: “Sugiro a Netanyahu que se informe melhor antes de comentar qualquer assunto e que não se coloque em situação tão risível.”

Sua amiga Masha, 23, estudante de arte, destacou que não se deve subestimar a opressão no Irã e lembrou que ainda há unidades de polícia moral nas ruas caçando véus mal colocados, maquiagem visível demais ou, para os homens, regatas ou bermudas. “Mas nos impedir de usar jeans seria extremo”, diz a moça.

“A referência à música é uma idiotice. Há álbuns e DVDs de Pink Floyd e Queen até nas lojas oficialmente reconhecidas [pelo governo].”

O episódio me fez refletir sobre várias coisas.

Como é possível que Netanyahu, na sua condição de comandante do Mossad, o serviço secreto mais poderoso e bem informado do mundo, não saiba que jeans e música ocidental estão longe das preocupações do regime iraniano?

Cinco minutos em qualquer esquina do Irã bastam para ver dezenas de pessoas, homens e mulheres, jovens e menos jovens, usando jeans. Também em qualquer café ou restaurante descolado é possível ouvir música ocidental. Dia desses ouvi Carla Bruni (que já foi chamada de prostituta pelo jornal oficial “Keyhan”) e Adele ao almoçar com amigos num local que serve um dos melhores hamburgers de Teerã.

Cheguei a cogitar que a frase de Netanyahu tenha sido uma astuta provocação aos iranianos propositalmente destinada a levá-los a mostrar que adoram calças jeans e cantores americanos, o que seria um revés moral para a ideologia islamita do regime. No Oriente Médio é difícil não se contagiar por tanta propensão a abraçar teorias da conspiração.

O caso também ajuda a derrubar a tese, que andou na moda desde o ano passado, de que iranianos, ao contrário de outros povos do Oriente Médio, adoram Israel. É verdade que por aqui há bem menos ódio ao Estado judaico do que em países árabes. Também é verdade que alguns iranianos admiram e invejam a modernidade de Israel. Mas a maioria dos que conheço condenam a ocupação israelense dos territórios palestinos e rejeitam as reiteradas ameaças de Netanyahu.

A população do Irã tende a ser ufanista e patriota ao extremo. Conheci gente contrária ao regime religioso e até partidários da monarquia deposta pela revolução de 1979. Mas nunca vi ninguém favorável a uma intervenção estrangeira. E Netanyahu é a voz mais sonora em favor de um bombardeio ao Irã.

Imagem de jeans publicada pelo usuário @sahardelshad, no Instagram

Imagem de jeans publicada pelo usuário @nilfar, no Instagram

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

O brasileiro Nilson, astro do futebol no Irã

Por Samy Adghirni
30/09/13 09:47

Quando recebeu proposta para jogar no Perspolis, do Irã, o veterano goleiro Nilson, 37, ficou perplexo. Como ele, com sólida carreira no futebol profissional brasileiro e português, poderia se aventurar num campeonato tão distante da elite internacional?

Os amigos não ajudaram. “Você ficou louco? O que vai fazer lá? Quer colocar sua vida em risco?”

Com incentivo da mulher, a jornalista pernambucana Gilvana, Nilson Correa topou o desafio.

Mas ao desembarcar em Teerã, no ano passado, Nilson foi… deportado!

 

“Cheguei sem visto e sem informação. O oficial da alfândega perguntou o que eu queria fazer no Irã, e eu disse que iria jogar no Perspolis. Ele não acreditou e mandou me colocarem de volta no avião”, contou Nilson dias atrás, em longa conversa na cafeteria do suntuoso prédio onde mora, a oeste de Teerã.

Furibundo com o destrato, jurou nunca mais pisar na república islâmica. Mas os dirigentes do Perspolis imploraram perdão pelo desencontro e aumentaram a oferta de salário anual de US$ 500 mil para US$ 600 mil. Mais bichos e um adicional por jogo sem levar gol. “Aí eu disse que aceitava.”

Em sua segunda temporada iraniana, Nilson hoje é superastro do Perspolis e o brasileiro mais destacado da liga iraniana.

“Estamos muito felizes com ele. Ele caiu nas graças da torcida e a equipe inteira gosta dele porque, além de grande goleiro, é uma pessoa muito boa”, me contou um dirigente do time, sempre na disputa pela liderança.

Embora desconhecido no Brasil, o Perspolis é um dos maiores e mais tradicionais time da Ásia. O alvirubro de Teerã diz ter torcida de 30 milhões, a maior do continente. Registrados com carteirinha, são 1,2 milhão. Nada mal. Seu arqui-rival é o azul Esteghlal, também de Teerã, com quem protagoniza uma das maiores rivalidades do futebol mundial. Clássicos podem facilmente levar ao estádio Azadi 100 mil pessoas em delírio.

Alguns dos principais nomes do futebol iraniano passaram pelo Perspolis, como o meia-atacante da seleção Ali Karimi, ex-Bayern de Munique, e o ex-centroavante Ali Daei, também ex-Bayern, apontado pela FIFA como maior artilheiro da história em partidas oficiais internacionais, com 109 gols _Puskas é segundo (84) e Pelé, quinto (77). Daei hoje é treinador do Perspolis.

“O futebol aqui é bom. O jogador iraniano tem qualidade e valoriza a técnica”, diz Nilson, fala mansa e gestos suaves,

O goleiro garante ter se adaptado à nova vida.

“Quem fala mal do Irã não conhece. Além de tranquilo e seguro, o país é bonito, tem praia, floresta, montanha etc. Teerã é enorme, no Brasil só São Paulo é maior. Tem tudo aqui. E as pessoas são muito boas”, afirma o goleiro, que mora com a mulher e a filha Letícia, de quatro anos.

No tempo livre, vão a parques e shoppings. O casal é evangélico e faz orações diárias. “Até minha filhinha já participa”, alegra-se Nilson, que diz nunca ir às alucinadas farras clandestinas que agitam o ocidentalizado norte de Teerã.

Quando o time faz a reza islâmica antes de entrar em campo, Nilson fica na dele, orando para Jesus. “Os iranianos respeitam minha fé, nunca tive problema por isso.”

“A maior dificuldade é a língua. Mas já decidi começar aulas particulares de farsi”.

O capixaba Nilson foi revelado pelo Vitória e fez parte do grupo que chegou à final do Brasileirão de 1993. “Era
uma turma boa, tinha Dida, Paulo Isidoro, Alex Alves, Vampeta…”

À época considerado grande promessa, foi convocado para a Seleção Brasileira sub-20 e sub-23, jogando ao lado de estrelas como Caio, Luizão, Zé Elias, Denilson e Emerson.

Nilson passou por vários times brasileiros, mas brilhou mesmo no Santa Cruz e no Nautico. Em 2005 transferiu-se para o Vitória Guimarães, de Portugal, onde foi feliz até a crise econômica europeia tornar as finanças do clube incompatíveis com seu salário. Foi o técnico português Manuel José que levou o goleiro ao Irã. José deixou o Perspolis, Nilson ficou.

Em 2011, Nilson recebeu passaporte de Burkina Faso para atuar pela seleção do país africano. “Me deram 100 mil euros pela naturalização e me prometeram 4.000 euros por convocação mais 3.000 euros por vitória.” Ele chegou a passar dez dias concentrado com o time na Namíbia, até que a CBF vetou a transação. “Devolvi o passaporte, mas me disseram que eu poderia ficar com os 100 mil euros.”

Nilson acompanha à distância a nova geração de colegas brasileiros. Mas só merecem elogios arqueiros da velha guarda. “Taffarel foi o melhor. André era sua cópia fiel no estilo sóbrio, não espalhafatoso. Dida é outro grande goleiro. Fabio se perdeu numa época, mas se recuperou”.

Gringos? “Preud’homme foi melhor goleiro do mundo com 40 anos de idade. Van Der Saar e Buffon também são impressionantes”.

Nilson diz que pretende jogar por até mais dois anos. “Depois disso quero ser treinador. Vai ser muito bom se Deus abrir esta porta.”

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

O vídeo-bomba da Guarda Revolucionária na Síria

Por Samy Adghirni
18/09/13 19:15

O vídeo abaixo prova o que todos já sabiam: a Guarda Revolucionária do Irã, força máxima da república islâmica, tem militares em solo sírio para ajudar forças leais a Bashar Al Assad.

As imagens, que vazaram há cerca de dez dias, mostram o dia a dia de uma unidade da guarda iraniana nos arredores de Aleppo, noroeste da Síria. O vídeo, legendado em inglês, parece ter sido filmado para fins de documentário ou para consumo interno do regime de Teerã. Mas o cinegrafista, também iraniano, morreu num ataque dos rebeldes, que capturaram a gravação e a transmitiram a um jornalista da TV holandesa. Os sites iranianos Mashregh News e Raja News confirmaram a veracidade da gravação. Alguns veículos estatais lamentaram o vazamento.


O material é um verdadeiro tesouro para qualquer pessoa interessada no conflito pois mostra aspectos da guerra até agora pouco documentados, como a interação às vezes descompassada entre instrutores iranianos e forças sírias, a tranquilidade da guarda em área de conflito e o humor jocoso dos comandantes persas em relação aos árabes.

O personagem central foi identificado pela mídia iraniana como Haj Ismail Heydari, um comandante da Guarda Revolucionária que morreu pouco depois da filmagem e cujo funeral foi acompanhado por membros do regime em Teerã (http://www.mashreghnews.ir/fa/news/243271/تصاویرتشیع-پیکر-شهید-اسماعیل-حیدری).

Em depoimento à câmera, fica clara sua missão de orientar e supervisionar uma milícia local pró-Assad. Heydari se queixa da brutalidade com que comandantes sírios tratam soldados rasos e afirma que a escola militar iraniana vai na contramão disso ao privilegiar o respeito para com os subordinados, não a força. Heydari também critica forças de Assad por não ser gentis com os moradores da área.

A dimensão sectária do conflito é confirmada quando o comandante afirma sem rodeios que está ali para defender o “bem” (os xiitas Assad, Hizbullah e Irã, com a benção do líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, considerado representante de Deus na terra pelo xiismo iraniano) contra o “mal” (países ocidentais, Israel e monarquias do golfo Pérsico, que Heydari chama de “infiéis” por ser sunitas).

Apesar da aliança vital, os militares iranianos têm dificuldade de comunicação com os sírios. Primeiro, por causa da língua. Iranianos, cujo idioma é o farsi, se esforçam para falar árabe, mas a conversa parece sair truncada, conforme o que resta do meu árabe.

Os militares iranianos às vezes agem com condescendência e desprezo com os sírios. Ao dirigir uma picape por um vilarejo, Heydari mostra moradores caminhando por uma rua e explica ao cinegrafista que a retirada dos rebeldes do setor permitiu à população voltar ao local. “Não havia mais nenhum ser humano por aqui”, diz o comandante, imediatamente interrompido por um colega iraniano. “Continua não havendo humanos, são apenas árabes”.

O comentário em holandês tem algumas forçações de barra e imprecisões, como quando o narrador insinua que a unidade da guarda poderá ser castigada em Teerã por cantar música pop. Besteira. Música pop há muitos anos deixou de ser motivo de problema para o regime.

O vídeo termina com cenas da vida doméstica dos homens da Guarda Revolucionária. Aparecem cozinhando, lavando louça e dando gargalhadas na escola que lhes serve de base.

Questionada sobre o vídeo durante sua coletiva semanal, a porta-voz da chancelaria, Marzieh Afgham, disse que o “Irã não tem nenhuma presença militar oficial na Síria”. Um jornalista iraniano quis saber se isso significa que Teerã tem presença “não oficial”. Afgham não respondeu.

Mohammad Ali Jaafari, chefe máximo da Guarda Revolucionária, já admitiu que seus homens estão na Síria como “assessores”, mas não em “missão militar.”

Aqui, mais imagens dos iranianos na Síria, incluindo em cenas de combate contra rebeldes.

http://www.youtube.com/watch?v=TIbIYtIiS4Y&list=PLPC0Udeof3T4sIyyP9pqhkVP1P4PswlmO

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

A guerra síria vista do Irã

Por Samy Adghirni
12/09/13 13:53

Alguns leitores e amigos no exterior vêm me perguntando como a crise siria é vista no Irã, aliado máximo do governo de Bashar Al Assad. Recebi até o email de um brasileiro preocupado por já ter fechado pacote turístico para visitar o Irã nos próximos dias. Ele queria saber se corria algum risco ao vir para cá.

A percepção iraniana da guerra na Síria é cheia de nuances e depende muito da pessoa ou instituição a quem a pergunta é dirigida. No geral, porém, o conflito não é ressentido de forma direta no dia a dia. Embora os iranianos sejam grandes consumidores de notícia e estejam a par dos acontecimentos, a Síria é (ainda) uma preocupação distante.

Vale lembrar que a Síria não faz fronteira com o Irã, além de ser culturalmente muito diferente. A Síria é árabe, e o Irã, predominantemente persa. Até mesmo do ponto de vista religioso, há pouco em comum. Iranianos são, em sua maioria, xiitas, enquanto na Síria prevalece o islã sunita (não me cansarei de repetir o quanto são distintos os dois principais ramos do islã). Sim, Bashar Al Assad é da seita alauíta, vertente xiita, mas a fé mística e liberal dos alauítas não tem nada a ver com o xiismo conservador praticado na República Islâmica do Irã.

Os governos, porém, formam uma especie de aliança vital. O Irã é o principal parceiro estratégico da Síria, com quem compõe, ao lado do grupo armado libanês Hizbollah, uma frente geopolítica que diz resistir à ordem regional imposta pelas potências hegemônicas inimigas –Ocidente, Israel e monarquias árabes.

Mas para muitos iranianos, o investimento de Teerã em favor de Damasco não se justifica.

“Não só não estou preocupado com a Síria como também me incomoda o fato de o Irã priorizar sua situação geopolítica em vez dos [problemas internos como a] economia”, diz o estudante Farzad, 23.

A tradutora Guita, 50, acha que o Irã está “apostando suas fichas no campo errado, no do perdedor”. O engenheiro Sirous, 46, diz que Bashar Al Assad “não merece” o apoio iraniano.

Por outro lado, também existem muitos iranianos favoráveis à posição de seu governo.

“A Síria é nossa amiga e nossa irmã. Defendê-la é uma questão de honra. Os EUA querem atacá-la e capturá-la, assim como fizeram com outros países da região, com o intuito de encurralar o Irã”, diz o soldador Asghar, 45, retomando a tese, corroborada por analistas e diplomatas, de que o verdadeiro objetivo da estratégia ocidental na Síria é atingir o Irã.

Para além dos prós e contra, o levantamento indicou uma tendencia curiosa, pela qual alguns iranianos discordam do alinhamento de Teerã a um governo que comete atrocidades contra seu povo mas ao mesmo tempo entendem que seu país ficaria perigosamente isolado e enfraquecido em caso de queda do governo sírio.

A estudante Mona, 23, por exemplo, representa o oposto da base de apoio do regime. Artista, libertária, não religiosa e militante oposicionista. Mas, questionada sobre que lado ela apoia na guerra civil síria, ela responde com firmeza: “não importa a minha preferência. O Irã precisa apoiar [o governo da] Síria como forma de preservar seu aliado regional.”

Na mesma linha está o jurista Ruhollah, 30, também crítico do regime iraniano. “Assad é o único [líder] a favor do Irã. Se ele cair, a Síria já era para o Irã.”

Fraturas sobre a guerra síria também racham a classe política iraniana. O líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, defende um alinhamento total a Assad. Khamenei se absteve de dizer que Teerã entraria em guerra para defender Damasco, mas avisou que os EUA “sofreriam perdas” caso atacassem a Síria. Tom mais abrasivo veio da Guarda Revolucionária, a mais poderosa força armada iraniana, que advertiu que uma operação militar contra Assad selaria o fim de Israel. A guarda, no entanto, não sinalizou qualquer disposição em agir militarmente em favor do aliado sírio.

Já o novo presidente, o pragmático Hasan Rowhani, vem trilhando uma retórica cautelosa ao extremo. Logo após o ataque químico que massacrou centenas de civis na periferia de Damasco, no mês passado, Rowhani usou sua conta Twitter para condenar o uso de tais arsenais, mas sem apontar culpados, no que foi visto com um possível distanciamento em relação a Assad.

O tema das armas químicas é muito sensível por aqui, já que os maiores ataques com gás venenoso desde a Segunda Guerra Mundial foram lançados nos anos 80 pelas tropas leais ao então ditador Saddam Hussein, à época apoiado pelo Ocidente, contra populações civis iranianas durante o conflito Irã-Iraque.

O influente ex-presidente centrista Ali Akbar Hashemi Rafsanjani culpou abertamente as tropas de Bashar Al Assad pelo massacre.

O ministro das Relações Exteriores, Mohamad Javad Zarif, superastro do novo gabinete, está conduzindo uma estratégia alinhada com os esforços russos e americanos para desmantelar arsenais químicos sírios – e buscar uma solução política ao conflito. A julgar pelas palavras e atos de Zarif, o Irã está tentando diminuir, não aumentar, a tensão envolvendo a Síria.

Ou seja, as opiniões sobre a guerra síria são múltiplas e variadas. Mas o importante é que o leitor brasileiro, citado no início deste post, que me perguntou sobre a situação no Irã, pode vir fazer seu tour iraniano sem se preocupar.

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

Preconceito à iraniana

Por Samy Adghirni
03/09/13 09:04

O site do “Washington Post” repercutiu um tempo atrás um estudo apontando as populações supostamente mais e menos racistas no mundo (http://www.washingtonpost.com/blogs/worldviews/wp/2013/05/15/a-fascinating-map-of-the-worlds-most-and-least-racially-tolerant-countries/). A pesquisa foi feita por dois suecos em 80 países com base na seguinte pergunta: que tipo de gente você não gostaria de ter como vizinho? A quantidade de gente respondendo “pessoas de outra raça” determinava o índice médio de intolerância racial de cada país. O estudo está repleto de falhas e lacunas, o que causou ceticismo em meios científicos. Mesmo assim, não é totalmente desprovido de pertinência.

O primeiro país que fui checar no mapa é o Irã. Como eu imaginava, apresenta alto índice de racismo. A república islâmica não está no topo do ranking racista, liderado por Índia e Jordânia, mas no grupo logo abaixo, de lugares onde a pesquisa registrou entre 30% e 39,9% de entrevistados que não querem vizinhos de raça diferente.

O racismo no Irã às vezes é chocante de tão sincero. Me dei conta disso logo nos meus primeiros dias no país, quando uma moça desconhecida me abordou no meio da rua querendo bater papo ao ver que eu era gringo, prática muito comum por aqui. “Adoro conversar com estrangeiros, ainda mais com alguém como você, que não é negro”. Fiquei estarrecido. Tempos depois, o garçom de um restaurante cheio de pompa perguntou minha nacionalidade, num inglês meia boca. Ao ouvir a resposta, emendou: “há muitos negros no Brasil, não é? Sorte a sua ter nascido branco”.

Na mesma época, tentei ressuscitar meu árabe para puxar papo com um taxista, na esperança de que ele fosse um desses raros iranianos a entender o idioma (no Irã fala-se farsi). O sujeito enfureceu-se. “No arabic! No arabic!”, gritou, apontando para a porta do passageiro, como que ameaçando me mandar descer se eu dissesse mais uma palavra em árabe. “No arabic here”, repetiu. Meses depois, quando eu visitava as fabulosas ruínas de Persépolis, a capital dos reis persas da Antiguidade, tive que ouvir da guia turística a seguinte frase: “Olhe isso, veja como somos um povo grande e refinado, ao contrário dos árabes, que não têm cultura nem história”.

Para além do fervor nacionalista, há uma espécie de orgulho étnico na mentalidade iraniana. A palavra IRAN significa “terra dos arianos” [nobres] no antigo idioma sânscrito. Segundo alguns estudos, o berço histórico dos arianos é uma área situada a nordeste do território iraniano. Arianos, como se sabe, formavam o arquétipo da pureza racial que a diabólica cabeça de Adolf Hitler queria instaurar na Alemanha nazista. Para além das considerações étnicas, vejo uma tendência das civilizações mais antigas do mundo, como chineses e egípcios, além dos iranianos, em se acharem melhores que os outros.

A tese de que a xenofobia é alimentada, como na Europa, pelo medo de uma maciça população imigrante com biotipo, cultura e modos diferentes não se aplica ao Irã, onde existem poucos estrangeiros.

Praticamente não há negros. Os únicos que conheço são diplomatas estrangeiros. Árabes de Estados vizinhos também são raros. Quem mais sofre na pele o preconceito são os cerca de dois milhões de afegãos, metade ilegais, que saíram de seu país em busca de uma vida melhor e mais segura no desenvolvido e rico vizinho persa. Não bastasse o salário de miséria para exercer trabalhos braçais em construção e limpeza urbana, os afegãos vivem sob constante hostilidade. “Volta para o teu país”, é uma frase que ouvem com frequência. A eles se atribui a suposta alta de criminalidade em Teerã. Uma pessoa iraniana que trabalha para a imprensa estrangeira, esclarecida e de boa família, certa vez me disse, com a maior naturalidade: “afegãos são desonestos e estupradores”.

Tudo isso é ainda mais revoltante se comparado com o carinho com que a maioria dos iranianos trata estrangeiros brancos de países vistos como nobres _América do Norte, Europa ocidental, Austrália e alguns outros. Quase todos os gringos _com cara de gringo_ acham que a grande maioria da população do Irã é acolhedora e amigável. Arrisco dizer que os visitantes e expatriados mais bem acolhidos são os de países hostis ao governo iraniano. Americanos e franceses são tratados a pão de ló por onde passam. Já africanos relatam experiências sociais nada agradáveis. Eu, tupiniquim com pinta de Oriente Médio, fico num meio termo. Não sou destratado nem tenho direito aos mimos e privilégios reservados a estrangeiros de biotipo caucasiano.

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

Pela 1ª vez, uma ópera na república islâmica

Por Samy Adghirni
22/08/13 17:20

A voz dos atores é meio fraquinha. Em vez da orquestra, só há um piano. Mas o que importa é que “Gianni Schicci”, do mestre Giacomo Puccini, é a primeira ópera em cartaz no Irã desde a implementação do regime teocrático, em 1979.

A peça está passando no charmoso Teatro Vahdat, no centro de Teerã, construído antes da revolução nos moldes da Opera de Viena, mas que passou as últimas três décadas recebendo principalmente soporíferos eventos oficiais.

“Gianni Schicci” é a primeira ópera a receber aval do Ministério da Cultura e Orientação Islâmica, que controla todas as manifestações artísticas no país (ao menos as oficiais, já que Teerã fervilha de arte underground). Uma primeira permissão foi concedida no ano passado, mas o diretor e ator Hadi Qozzat decidiu repetir a dose em março e, agora, com mais uma série de apresentações.

Assisti à peça na quarta-feira (21.ago), em meio a um público dominado por estudantes e jovens apreciadores de artes. Alguns casais, vários grupos de amigos. Todo mundo, ou quase, em sua primeira ópera. Moças ostentavam um visual rebuscado, com o véu quase na nuca de tão ousadas. Mas o ambiente estava longe do glamour vistoso que se vê com frequência na Europa.

Eu estava bem posicionado, sentado na terceira fila, de frente para o palco. Sala cheia. A decoração era clássica, reproduzindo uma casa burguesa em Florença, palco da trama. O figurino dos atores pareceu convincente aos meus olhos de leigo. A peça foi toda dita em italiano, também convincente. A plateia acompanhava as falas num telão acima do palco onde era projetada a tradução do texto em farsi. Inútil para este que vos escreve. Ainda bem que minha cabeça guardou resquícios das aulas de italiano na oitava série.

A peça cômica narra os estratagemas de uma família que tenta recuperar a herança que um tio rico e solteirão preferiu doar à caridade. Um enredo de mentiras e mesquinharia, cheio de reviravoltas. A atuação é dinâmica e ágil. Sem orquestra, cortada por restrições de orçamento, o piano às vezes soa vazio, mas é possível identificar com clareza a emoção de cada momento. O ápice é quando Lauretta, filha do protagonista Gianni Schicci, um notável salafrário, canta em solo para convencer o pai a ajudar a parentada do morto a recuperar a herança. A motivação de Lauretta é sentimental: ela está apaixonada por Rinuccio, sobrinho do morto. Conhecido como “O Mio Babbino Caro”, este trecho composto na medida para sopranos é uma das marcas registradas de Puccini. Já foi interpretado pelas maiores cantoras líricas, como Maria Callas e Montserrat Caballé.

O solo de Lauretta também representa a parte mais ousada da peça, já que a lei iraniana proíbe mulheres de cantar sozinhas. Uma voz feminina só é lícita quando acompanhada de uma masculina. A interpretação de Lauretta gerou um tenso frisson na plateia, como se todos ali segurassemos juntos o fôlego diante de tão escancarada e linda subversão. Ao final do solo, a sala explodiu em aplausos.

A peça teve outros momentos de arrojo, incluindo personagens invocando Jesus em voz alta e fazendo sinal da cruz. Acima do palco havia grandes retratos, obrigatórios em todo lugar oficial, dos dois líderes supremos da república islâmica, o aiatolá Khomeini e seu sucessor, aiatolá Ali Khamenei. Altos funcionários do regime estavam na sala, convidados pela direção.

O publico aplaudiu o encerramento da peça de pé por três minutos

“Estou tão contente por ter visto uma mulher cantando em público, ainda mais no palco do Teatro Vahdat”, exclamou-se a elegante Arghavan, 30. “É tão bom que os produtores tenham cavado uma brecha no sistema para fazer a peça acontecer”.

O músico Amin, 25, mora em Mashhad, a 900 km de Teerã, e veio especialmente para ver a ópera. “A performance foi ótima. Os pianistas não fizeram nenhum erro.”

Musicóloga, doutora em estudos teatrais e autora, a franco-iraniana Leyli Daryoush, 38, lamentou a ausência de orquestra e a falta de potência de algumas vozes. “A atriz que interpretou Lauretta canta de forma justa, mas sua voz é pequena e sem timbre”. As críticas param aí. Daryoush, que vive na ponte aerea Paris-Teerã, achou a peça bem executada e dirigida. “O diretor não poderia ter escolhido uma ópera melhor para iniciar os iranianos. ‘Gianni Schicci’ é divertida, curta (1h30) e dinâmica, perfeita para combinar com um público iniciante como este. Foi um golpe de mestre”, diz a especialista. Ela elogiou também a “atitude respeitosa do público” e a agilidade das vendas de ingressos online. “Sistema impecável. Melhor do que na França”.

Depois da peça pude conversar rapidamente com o diretor Hadi Qozzat, que também é barítono e atuou no papel principal, o de Gianni Schicci. “Desde que fui estudar ópera em Viena, há doze anos, meu sonho era trazer a peça ao Irã. Foi muito difícil conseguir a autorização do governo”, contou. Ele disse ter apresentado às autoridades um vídeo com cenas do ensaio. Explicou do que se tratava, mas os censores, que nunca haviam visto ópera, não conseguiam saber se a obra entrava na categoria música ou teatro. “Na dúvida, deram as duas permissões”, alegra-se Qozzat. “Eles só me pediram para tirar uma garrafa de vinho que, na versão inicial, deveria estar no palco. Todo o resto, inclusive mulher cantando, foi aprovado”.

A outra dificuldade, segundo ele, foi trabalhar com atores sem experiência em ópera profissional. “Para os papeis principais, chamei iranianos que estudam ópera na Europa e na Turquia”. A obra saiu do papel graças a patrocinadores, inclusive a empresa alemã de correio expresso DHL, que tem presença forte no Irã. Ingressos custavam de USD 8 a USD 16.

“Esta peça diz muito sobre o estado das coisas. Tenho certeza que o Irã vai avançar rapidamente. A população mostrou que já avançou”, diz Daryoush.

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor

Encontros no deserto

Por Samy Adghirni
14/08/13 08:49

“Você acha que o universo tem fim?”, lançou Amir, cinco minutos após sermos apresentados.

Amir mora na cidadezinha de Mahan, oásis no desértico sudeste do Irã, por onde andei dias atrás, a trabalho. Conversamos num fim de tarde no magnífico parque de Bagh-e-Shazde, um palácio do século 19 transformado em jardim municipal. Amir, que tem 28 anos e é filho de um pequeno empresário local, estava eufórico por poder praticar os idiomas estrangeiros aprendidos num cursinho. Seu inglês e seu francês eram incrivelmente fluentes. Ele me disse que seu passa tempo favorito era puxar papo com turistas e outros visitantes estrangeiros. Amir tinha apreço especial por discussões metafísicas e filosóficas.

“Eu acho que o universo é infinito”, decretou. “Se você acredita que o universo é finito, então me diga o que tem no final. Um penhasco? Uma parede?”.

Amir também queria saber se eu tinha alguma dica para prolongar a vida. “Queria viver mil anos, mas sei que não é possível”, me disse, apagando o sorriso estampado até então. “Quanto mais eu pensar na velhice, mais rápido vou envelhecer, não é verdade?”, perguntou. “Acho que a felicidade é o que me permitirá viver mais tempo”, ponderou. Eu respondia com acenos de cabeça.

O vento chacoalhava a folhagem das enormes e centenárias árvores, e um suave chiado ecoava pelo parque. O sol escaldante se esvaía, e a temperatura caía rapidamente. Famílias com crianças passeavam por entre as alamedas floridas. Jovens fumavam narguilê nas mesas da cafeteria. Casais flertavam, despreocupados, nesta região conhecida por ser menos conservadora que o resto do país.

Perguntei a Amir se ele já havia se apaixonado por alguém. Disse a ele que achava que o amor era a melhor maneira de ser feliz. Ele discordou. “Tenho certeza que ejacular diminui a expectativa de vida”, rebateu, falando alto, em francês. Eu quis saber se ele já havia estado em algum relacionamento. “Sim, pagando. Mas não foi legal porque elas não sentiam nada por mim”.

Não sei se era meu estado de espírito ou a melancolia do deserto, mas fiquei com a impressão de ouvir quase somente histórias carregadas de emoção ao longo desses três dias na árida Província de Kerman, cuja capital leva o mesmo nome e fica a 30 km de Mahan.

Naquele mesmo jardim conheci um homem da minoria balúchi, grupo étnico que vive na região do Sistão-Baluchistão, onde os territórios do Irã e do Paquistão se cruzam. Vestindo o típico traje branco balúchi, camisa até o joelho e calça larga, contou que havia vindo a Kerman em busca de tratamento para combater o câncer da mulher. “Na região onde moramos não há bons hospitais. Chegamos hoje. Deixei minha esposa num hospital de Kerman e vim esfriar a cabeça neste parque tão bonito”, me disse, com a voz embargada de tristeza.

Um dos funcionários da loja de artesanato do parque era um sujeito baixinho que estava sempre sorrindo. Ela havia passado a maior parta da vida na Alemanha e, por isso, falava alemão. Decidira voltar ao Irã havia dez anos para abrir uma empresa, mas uma doença lhe tirou a maior parte da visão. Hoje ele se orienta pela luz para caminhar.

O guia que contratei para a viagem, o pacato Hosein, um senhor de sessenta e poucos anos, também me comoveu com sua história. Nos anos 70, ele trabalhou para empresas americanas até então onipresentes no Irã. Ganhava bem e planejava estudar nos EUA. Mas sofreu acidente de carro e ficou em coma por semanas. Ao acordar, percebeu que havia perdido parte das faculdades físicas e mentais. Hosein estava internado em Kerman quando eclodiu a revolução de 1979 que levou a teocracia ao poder. Quando ele se reergueu, um ano e meio após o acidente, já não havia mais possibilidade alguma de ir para os EUA. Hosein se reinventou e hoje é um dos mais conhecidos guias para gringos em Kerman, sendo citado inclusive pelo Lonely Planet.

A viagem também teve encontros mais alegres. Os dois irmãos que possuem o lendário hotel Akhavan, em Kerman, são engraçados e cheios de histórias sobre turistas do mundo inteiro que visitam a região. Mesmo simples e barato (US$ 30 a diária!), seu hotel é um exemplo de limpeza, serviço amigável e comida deliciosa. Não é de se admirar que o Akhavan seja sucesso de crítica e público desde a metade do século 20.

Conheci em Kerman duas moças simpáticas, alunas da faculdade local que faziam pesquisa acadêmica sobre a percepção da hospitalidade na região. Uma delas antes havia estudado idiomas arqueológicos. Achei o tema fascinante.

No meio do deserto, bem longe de Kerman e Mahan, um jovem me mostrou vias subterrâneas que levam, dezenas de quilômetros a fio, água das montanhas até a aldeia onde mora.

Passei a viagem toda sem ouvir falar em política ou no programa nuclear.

Mais opções
  • Google+
  • Facebook
  • Copiar url
  • Imprimir
  • RSS
  • Maior | Menor
Posts anteriores
Posts seguintes
Publicidade
Publicidade
  • RSSAssinar o Feed do blog
  • Emailsamy.adghirni@grupofolha.com.br

Buscar

Busca
  • Recent posts Samy Adghirni
  1. 1

    Um adeus e um livro

  2. 2

    Googoosh, a diva do pop persa

  3. 3

    "Essa gente" no poder

  4. 4

    O caos eficiente do transporte urbano em Teerã

  5. 5

    Algo de podre no ambiente pré-copa

SEE PREVIOUS POSTS
Blog dos Correspondentes

Tags

adghirni Airbus A300 Ano Novo persa Arash Hejazi Bandar Abbas Christian Science Monitor Estreito de Ormuz F14 Tomcat Feira do Livro de Teerã George Bush Império persa Iran Air 655 irã Irã; EUA; Samy Adghirni; Scott Peterson Irã; Mulher: Apedrejamento; Revolução Islâmica; Samy Adghirni; Ruhollah Khomeini: Savak; Xá Mohamed Reza Pahlevi Irã; Teerã; Samy Adghirni isfahan israel khomeini mossad Neda Agha Soltan Nowruz nuclear Pasárgada Paulo Coelho Persépolis Piquenique; parque Mellat Polícia moral Press TV rituais samsung Samy Adghirni Sexualidade no islã; Corão; Bíblia Shiraz sincretismo Teerã Torá; Turismo no Irã USS Vincennes Valiasr Vanak William C. Rogers zoroastrismo
Publicidade
Publicidade
Publicidade
  • Folha de S.Paulo
    • Folha de S.Paulo
    • Opinião
    • Assine a Folha
    • Atendimento
    • Versão Impressa
    • Política
    • Mundo
    • Economia
    • Painel do Leitor
    • Cotidiano
    • Esporte
    • Ciência
    • Saúde
    • Cultura
    • Tec
    • F5
    • + Seções
    • Especiais
    • TV Folha
    • Classificados
    • Redes Sociais
Acesso o aplicativo para tablets e smartphones

Copyright Folha de S.Paulo. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress (pesquisa@folhapress.com.br).