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Samy Adghirni

Um brasileiro no Irã

Perfil Samy Adghirni correspondente em Teerã.

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A festa da Revolução Islâmica

Por Samy Adghirni
11/02/14 16:04

Acabo de voltar da praça Azadi, a sudoeste de Teerã, onde acompanhei, pelo terceiro ano seguido, a principal celebração ideológica do regime iraniano: o dia da Revolução Islâmica, que sempre reúne multidões. Faz 35 anos que o aiatolá Khomeini proclamou vitória sobre a ditadura do xá Mohammad Reza Pahlavi.

Não é propriamente agradável passar horas em pé no curral da imprensa e sob um frio de lascar, acompanhando mil discursos à glória do regime enquanto não chega a fala do presidente, ápice da festa. Mesmo assim, gosto de cobrir o 11 de fevereiro, ou 22 de Bahman, como é conhecido no calendário persa. Costuma ser um dos melhores termômetros da situação política no Irã. Além de sempre proporcionar momentos curiosos, como quando helicópteros militares largaram uma chuva de pétalas de rosas sobre a multidão, em 2012.

Aos olhos do leigo, o dia da revolução na praça Azadi não passa de um amontoado de clichês mostrando um regime iraniano incendiário e hostil. O grito de “Morte aos EUA” é repetido incontáveis vezes pelos altos falantes e pelo público. Há cartazes com agressivas mensagens em inglês contra o governo americano. Bandeiras dos EUA e Israel são queimadas. Policiais com roupa militar parecem multiplicar-se por toda parte. Quase todos têm barba rala e cara de mau. Agentes de inteligência também são fáceis de identificar, com seus ternos sem gravata e walkie talkie na mão. Há, ainda, a famosa Guarda Revolucionária, com farda verde caqui. O rosto grave do aiatolá Khomeini, fundador do Estado islâmico iraniano, é onipresente. O programa nuclear ocupa papel central em todos os discursos, apesar de martelarem que as intenções são pacíficas.

Mas, basta estar minimamente familiarizado com a vida sob comando dos aiatolás, para perceber que o tom dessas celebrações muda a cada ano.

Em 2012, o discurso do então presidente Mahmoud Ahmadinejad foi duríssimo contra EUA e Israel. Semanas antes da festa nacional, o quarto cientista nuclear em dois anos havia sido assassinado em atentado em plena luz do dia, presumivelmente por Israel. O rosto sorridente do rapaz barbudo dominava os cartazes erguidos sobre o mar de gente. Quem fabrica e distribui cartazes e faixas na chegada do povo à praça Azadi são organizações ligadas ao aparato ideológico – portanto, bastante conservadoras. Além disso, aquela época coincidiu com o pico de ameaça, real ou artificial, de um iminente ataque por parte de Israel.

No ano passado, Ahmadinejad aproveitou uma de suas últimas falas como presidente para tentar deixar imagem de estadista. Seu discurso foi cheio de amor em direção ao Ocidente e aos inimigos internos. Mas, naqueles dias, Ahmadinejad travava arrojada disputa ideológica com o líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, capo di tutti capi no sistema iraniano. Resultado: os cartazes no público eram dominados por mensagens de apoio incondicional a Khamenei.

A coisa ficou ainda mais complexa em 2014. O presidente agora é Hasan Rowhani, que se elegeu com discurso conciliador e promessas de abertura interna e externa. A base de apoio a Rowhani é ampla, mas os ultraconservadores não vão com a cara dele. Acham que ele cede demais nas negociações nucleares e temem que sua reaproximação com o Ocidente seja uma capitulação ou o início de um retorno à dominação do Irã pelos EUA, como na era Pahlavi. Portanto, não é de se estranhar que a festa da revolução, seara dos ultras, tenha sido muito mais vazia neste ano.

Rowhani teve de usar toda sua astúcia retórica para discursar defendendo as negociações nucleares sem contrariar os radicais donos da festa. Diante dele, uma floresta de cartazes entre os mais duros que já vi. Havia montagens com chutes na cara de Obama e da negociadora americana, Wendy Sherman, além de ameaças diretas a Israel, algo que Teerã costuma evitar fazer frontalmente, preferindo parábolas, na linha “deveria ser varrido do mapa.”

A maior novidade, aos meus olhos, foi uma montagem mostrando os três principais líderes reformistas (os ex-candidatos à Presidência Mir Hossein Mousavi e Mehdi Karoubi, hoje em prisão domiciliar; e o ex-presidente Mohammad Khatami) sendo enforcados. O título do cartaz dizia: “O povo exige que vocês sejam julgados [pelos protestos contra supostas fraudes na eleição de 2009].”

Para além das considerações políticas, a festa nacional é um grande evento com gente de todo tipo, que classifico, com fins assumidos de simplificação, em três categorias.

Primeiro, aqueles, incluindo os mais velhos, que encaram o comparecimento ao aniversário da revolução como obrigação religiosa. Afinal, o aiatolá Khamenei tem status de santidade e sua missão, segundo algumas interpretações, é cuidar dos fieis antes da volta do Mehdi, o messias na visão xiita. Tenho um amigo jornalista, viajado e culto, que acredita piamente nos valores da Revolução Islâmica.

Segundo, funcionários públicos, militares e estudantes, levados de ônibus até a praça Azadi.

Por fim, meios populares que, simpatizando às lágrimas com a revolução ou sem tanto apego, encaram aquilo tudo como uma grande festa. Famílias inteiras aparecem. Fazem piqueniques, jogam cartas ou aproveitam os diversos serviços gratuitos oferecidos na retaguarda das comemorações na praça Azadi: teste de pressão sanguínea; oficina de brinquedos para crianças; distribuição de chá etc.

Vale ressaltar, porém, que muitos iranianos, principalmente em meios urbanos e de classe média, não dão a mínima para o aniversário da revolução.

Mas quem vai encontra de tudo no agito do aniversário da revolução. Gente vendendo balões, camisetas, ursinhos de pelúcia… O governo promove mutirão de dentistas. A Prefeitura recolhe impressões dos participantes sobre a festa. A milícia basij, que presta todo tipo de serviço ao regime, desde aulas de reforço escolar para crianças carentes até uma mãozinha contra manifestantes, tem um estande para recrutar voluntários. Nesta terça-feira havia até um ponto de “alerta” à população sobre empresas supostamente cúmplices da ocupação israelense dos territórios palestinos: L’Oréal, Nestlé, Timberland, Coca-Cola… Pera lá, Coca Cola? A empresa tem uma fábrica enorme no Irã!

A cena mais interessante de 2014 ocorreu às margens da muvuca central e me foi relatada por uma testemunha. Um grupo de pessoas começou a gritar o clássico “Morte aos EUA”. Alguém se aproximou e pediu: “gente, chega dessa conversa amarga, deixa isso para lá, vamos superar” . O grupo parou na hora.

blogdosamy

Vendedor de balão durante comemoração do 35º aniversário da Revolução Islâmica, em Teerã

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Nos murais, o ódio aos EUA resiste

Por Samy Adghirni
04/02/14 21:09

Aliados na época do xá e inimigos mortais desde a revolução iraniana de 1979, Irã e EUA ensaiam uma normalização, aparentemente convictos de que têm mais a ganhar acalmando o jogo do que cultivando tensões.

Negociações nucleares já resultaram num acordo interino que satisfez todo mundo, ou quase. Membros dos dois governos se falam publicamente e posam, sorridentes, para fotos. Obama até bateu papo ao telefone com o colega Rowhani, xodó dos líderes mundiais. Teerã e Washington ainda divergem em muita coisa, mas trocam cada vez mais figurinhas sobre uma série de problemas, incluindo Síria, Iraque e Afeganistão. E como dinheiro sempre entra nos cálculos, empresários iranianos e americanos andam acenando uns aos outros, loucos para consumir um amor ainda proibido.

Mas três décadas de hostilidade não se apagam assim de repente –literalmente. Pinturas e murais anti-EUA que caracterizam a paisagem de Teerã continuam lá. São um dos elementos centrais da ideologia oficial iraniana, apesar da crescente discussão para aposentar o grito de “Morte à América.” Setores influentes do regime — clérigos, deputados e militares– querem manter a narrativa que justifica a animosidade. Ainda mais agora, às vésperas do 35º aniversário da revolução iraniana, festejado na próxima terça-feira, dia 11. Símbolos resistem, como se pode notar nesta galeria exclusiva de imagens recentes de Teerã.

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Pela 1ª vez, música ao vivo na TV estatal

Por Samy Adghirni
28/01/14 13:12

Iranianos estão acostumados a ver músicos tocando instrumentos apenas em canais ou filmes estrangeiros. Na TV nacional, é proibido desde a revolução que levou os aiatolás ao poder, em 1979.

Imaginem, então, o choque que milhões de telespectadores tiveram, na semana passada, ao deparar-se com uma banda tocando ao vivo no programa matinal “Bom Dia Irã”, do canal 1 da toda-poderosa Islamic Republic of Iran Broadcasting (IRIB).

Eram sete músicos do grupo Avaye Baran, sentadinhos, tocando uma canção em homenagem ao profeta Maomé com instrumentos persas tradicionais. Mais comportado, impossível. O exato oposto do Créu. Mesmo assim, a transmissão foi cortada após alguns segundos.

Musical

Foi o suficiente para que a aparição gerasse intenso debate nas redes sociais e na mídia local, onde proliferaram fotos da TV tiradas por telespectadores atônitos.

A pergunta que todos fazem é: a banda entrou ao vivo por descuido da produção ou foi uma jogada das facções liberais próximas do presidente Hasan Rowhani apontando para uma programação mais flexível?

O jornal reformista “Sharq” festejou o que viu como “fim do tabu.” Internautas iranianos estavam eufóricos no Facebook e no Twitter, bloqueados, mas amplamente acessados graças a programas antifiltro.

A alegria se esvaiu depois que o diretor do programa, Gholamreza Bakhtiari, minimizou o ocorrido, sob pressão dos ultraconservadores que têm ojeriza à ideia de capitulação ideológica. “As imagens dos instrumentos que foram ao ar não têm nada a ver com uma mudança na abordagem ou nas práticas da IRIB. Foi apenas um erro da nossa parte”, disse à agência de notícias Fars, próxima dos linha dura. Bakhtiari disse que estava disposto a “assumir as consequências” pelo suposto vacilo.

Há 34 anos, a IRIB se pauta por uma interpretação rígida da lei islâmica, contestada por muitos clérigos, que considera música algo impuro e imodesto, com exceção das marchas militares à glória do regime.

Banir de vez a música colocaria o Irã na mesma categoria que o Taleban, comparação pavorosa para a teocracia iraniana, que detesta ser vista como extremista. O jeito foi enquadrá-la.

Todos os álbuns vendidos legalmente no país precisam do aval do Ministério da Cultura e Orientação Islâmica. Entre as músicas ocidentais, praticamente só a clássica circula em paz. Mulher só pode cantar se estiver acompanhada de um homem. Dança, nem pensar. Shows e concertos, que também dependem do aval oficial, se limitam quase sempre a formações tradicionais. Ou seja que as pessoas podem ver instrumentos sendo executados ao vivo, mas passar na TV não pode. Entenderam?

Na verdade, música ao vivo na TV até pode, desde que os instrumentos não apareçam. Só o cantor pode mostrar a cara. Quando bandas tocam sem vocal nas emissoras da IRIB, a telinha mostra imagens da natureza, campos floridos ou montanhas.

Após a polêmica acerca do “Bom Dia Irã”, a banda fusion Pallett aproveitou convite para se apresentar num canal educativo da TV estatal para fazer um protesto elegante e original: enquanto sua música era tocada no estúdio, o quinteto mimou a execução dos instrumentos. O vídeo é bacana.

O problema, para a IRIB, é que todas essas restrições são facilmente contornadas pelos iranianos. Difícil achar uma casa que não tenha parabólica. CDs piratas de Lady Gaga a Celine Dion são vendidos por jovens que correm entre os carros quando fecha o sinal de trânsito.

Rowhani entendeu esse descompasso e fez campanha prometendo aliviar barreiras à cultura. Por isso, jovens e nem tão jovens votaram nele em massa, dispensando até segundo turno nas eleição de junho.

Desde então, o ministro da Cultura de Rohwani, Ali Jannati, vem travando queda de braço duríssima contra os ultraconservadores que ainda controlam setores chave da teocracia iraniana, incluindo a Justiça e instituições morais. No complexo e fragmentado sistema iraniano, o presidente e sua clique têm poderes limitados.
Já há deputados tentando articular o impeachment de Jannati para puni-lo por ter defendido regras mais brandas para artistas, inclusive na publicação de livros.

A internet é outra briga.

Rowhani, Jannati e aliados querem levantar os filtros e liberar Facebook, Twitter e milhares de outros sites. A exemplo da surpresa com a banda tocando instrumentos na TV estatal, iranianos descobriram, numa noite de setembro, que o Facebook estava liberado. Mas, horas depois, o site novamente só podia ser acessado via antifiltros. Até hoje não se sabe o que aconteceu. Mas é difícil não enxergar mais um capítulo da batalha entre ultras e liberais.

O fato de a turma do presidente não ter conseguido cumprir promessa acerca de algo que é, ao menos em tese, tão simples, pode indicar que reformas internas mais profundas ainda são sonho distante.

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Procura-se assistente

Por Samy Adghirni
21/01/14 10:50

Lá se vão cinco semanas desde que minha assistente pediu as contas. Cinco semanas trabalhando sozinho, com freio de mão puxado.

Sem assistente não consigo tocar nenhuma entrevista mais séria, pois meu farsi só dá para conversas informais. Também fico sem me comunicar com escritórios do governo, que, na maioria das vezes, pedem envio de faxes em farsi. Mais de mês sem alguém para me mandar a indispensável resenha diária de imprensa local. Brigar sozinho com a provedora de internet ou a empresa de telefonia fixa tem sido uma provação.

Uma boa assistente faz as vezes de repórter, ajudando a enxergar e executar pautas. Por isso, a pessoa que procuro não é secretária nem tradutora. Aliás, a escolhida obterá uma credencial de imprensa oficial do Escritório de Mídia Estrangeira do Ministério da Cultura e da Orientação Islâmica igual à minha. Seremos ambos jornalistas no mesmo barco.

Faço questão que seja mulher. É consenso entre estrangeiros que iranianas são mais espertas e dedicadas que os rapazes. Além disso, uma parceria feminina é indispensável para bisbilhotar áreas às quais, como homem, não tenho acesso.

A candidata ideal deve ser séria, curiosa e corajosa. Precisa ter inglês irretocável, falado e escrito. Quem se interessa por temas políticos e econômicos leva vantagem. Como se trata de um emprego em meio período numa área muito específica (jornalismo iraniano não atrai multidões), privilegio jovens dispostas a aprender.

Mas está difícil.

As candidatas que tinham ido bem nas outras vezes em que procurei alguém estão todas empregadas. Uma delas respondeu à minha mensagem no Facebook de forma um tanto ríspida, como que se quisesse se vingar por eu tê-la preterido, lá atrás. Esnobei e agora sou esnobado. É o jogo.

Teerã inteira sabe do meu desespero. Nos eventos sociais, alguém sempre tem uma dica, mas aquela “sobrinha brilhante” ou “amiga que já escreveu artigos para jornal” geralmente já está ocupada. Me pergunto se essa fartura de empregos não é sinal de que a economia pode estar ressuscitando desde a eleição do presidente Hasan Rowhani, em junho.

Na semana passada, consegui marcar entrevista com algumas candidatas. Uma delas era esperta e motivada, mas soube responder a apenas uma das dez questões do meu teste de conhecimentos sobre noticiário iraniano. Outra apareceu acompanhada do pai, que tinha decidido ver minha cara a pedido do… marido da moça! Resmunguei que o encontro, num café, era uma conversa reservada, e o pai teve que sair para dar uma volta. Mas ficou ligando de dez em dez minutos para perguntar se a entrevista estava perto de acabar. Coitada da moça, ficou constrangida que só, ciente do papelão. Mas imaginem esse marido e esse pai o tempo todo na nossa cola. De todo modo, ela não foi bem no teste.

A última entrevistada chegou insegura e tímida. Mas gabaritou o questionário e não só sabia o que era um lide como mostrou com orgulho matérias sobre tecnologia que ela assinou em jornais importantes de Teerã. Essa tem chances. A ver.

A escolhida terá a dura missão de assumir um lugar que foi ocupado até meados de dezembro por uma jovem inteligente e com real talento para reportagem. “Samy se deu bem, essa moça leva jeito”, diziam outros correspondentes, ao vê-la fuçando onde não devia ou cobrando informações de assessores presidenciais. Ela, de fato, era arretada. Até demais. Sua cabeça quente se tornou um problema. E eu admito ter exigido além da conta, algumas vezes. Dias antes de eu embarcar para alguns dias de descanso no Brasil, ela mandou carta de demissão e foi atrás de um namorico no exterior.

Antes dela, eu havia trabalhado com outra moça, recomendada por um amigo. Vacilo ter aceitado. Eu havia acabado de chegar no Irã, em 2011, e estava atordoado, sem rumo e com pressa para começar a produzir. Me esforcei para treiná-la, mas a moça não gostava dessa coisa de jornalismo. Sem vibração, sem energia pessoal, não há êxito nesta profissão. Decidi mandá-la embora depois que ela traduziu errado e se confundiu com uma notícia importante.

Espero que a terceira assistente seja a última.

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Bolsistas iranianos rumo ao Brasil

Por Samy Adghirni
14/01/14 11:59

Manhã recente no consulado brasileiro em Teerã. Enquanto estou sentado na sala de espera para resolver um rolo de passaporte, uma jovem iraniana chega, pega uns papeis no balcão de atendimento e começa a preenche-los numa mesa ao lado. Espio de canto de olho, e vejo que a papelada leva a marca da USP. Mais precisamente do Departamento de Matemática e Estatística. Bisbilhoteiro por profissão, arrisco um oi em inglês. “Você vai estudar no Brasil?”. O “yes” da moça, seco e baixinho, deixa claro que ela não quer conversa.

Um rapaz alto, de gravata e gabardine, entra na sala. Em seguida, um baixinho vestindo tênis e casaco. Perguntam algo ao atendente no balcão e se acomodam nas cadeiras da sala de espera. Me parece claro que ninguém ali se conhece, mas quando me dou por conta os três iranianos já estão no maior papo. Ligo o meu tradutor mental na potência máxima e grudo na conversa.

Todos são estudantes inscritos em programas de pós-graduação em universidades brasileiras. Contam sobre seus respectivos cursos e trocam dicas sobre passagens aéreas para o Brasil. Nenhum jamais pisou nas Américas. O baixinho nunca sequer saiu do Irã.

A moça, deduzo, está no consulado para dar entrada no pedido de visto depois de ser aceita pela USP. O rapaz alto, já PHD, vai fazer pós-doc em Ciência dos Alimentos na Unicamp. Ele está na embaixada para retirar o visto. O baixinho, que também aguarda a emissão do visto aprovado, conta com orgulho que integrará o Departamento de Geociência da Unicamp, “um dos melhores do mundo”, segundo ele.

Os três conseguiram bolsa do CNPQ. Estão empolgadíssimos. Quando finalmente entro na conversa, me perguntam se o valor de R$ 2000 e poucos que cada um receberá é suficiente para morar no Brasil. Detalhe: os dois rapazes se instalarão em Campinas com suas respectivas mulheres, que não terão renda. Deixo você, caro leitor, imaginar o que respondi sobre o custo de vida brasileiro, tema abordado extensivamente em posts anteriores.

Depois que a moça sai, continuo a conversa com os dois rapazes, que devem desembarcar no Brasil em fevereiro. Me pedem recomendação de algum professor de português em Teerã. Sem graça, admito que não conheço nenhum. Aliás, também venho recebendo mensagens de leitores atrás de professores de farsi no Brasil.

Esse encontro fugaz teve algo de caricatural para quem conhece o Irã. Eu estava diante de três “nerds” de exatas, perfil típico dos estudantes iranianos. Humanas não fazem muito sucesso por aqui.

As melhores universidades de ciência e engenharia no Ocidente, americanas inclusive, estão cheias de iranianos. “São dedicados, competitivos e não se metem em confusão”, me disse certa vez a cônsul da França. “Só não damos visto para estudantes ligados à área de pesquisa nuclear”.

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Impressões de uma viagem ao Brasil

Por Samy Adghirni
07/01/14 11:50

Acabo de voltar de alguns dias de descanso no Brasil. A viagem fez saltar aos olhos os enormes contrastes com a vida no Irã, onde estou instalado como correspondente da Folha desde 2011. As comparações geraram um turbilhão de sentimentos e impressões que ecoam até agora na minha cabeça.

O maior impacto foi rever por toda parte corpos tão naturalmente à mostra. Eu não me lembrava de como shortinhos, decotes e bermudas imperam até mesmo em shoppings e restaurantes. Num supermercado da praia onde fui comprar água mineral antes do Ano Novo, todos os clientes homens estavam sem camisa – inclusive eu, feliz da vida em poder andar por aí de forma tão despojada. No Irã eu não saio de chinelo nem para comprar detergente na esquina. Não está escrito na lei que é proibido mostrar o pé, mas a noção de pudor ainda prevalece nas sociedades de muitos países islâmicos. Até mesmo nos Emirados Árabes Unidos, cujas leis são, em tese, mais liberais do que no Irã, não se veem homens sem camisa.

A estadia brasileira, que teve escalas em Porto Alegre, São Paulo e litoral paulista, me deu uma saudade danada de poder curtir um filme ocidental no cinema, uma comida de boteco ou simplesmente passar a tarde mergulhado em leituras numa dessas grandes livrarias. Shows e baladas, então, nem se fala.

Indescritível alívio para os ouvidos ouvir todos na minha volta falando a “minha” língua. Me diverti redescobrindo a variedade de sotaques.

Adorei rever o verde exuberante e cheio de variações da vegetação brasileira, assim como o colorido das grandes cidades. Acredite, caro leitor, se você acha São Paulo cinzenta, é porque nunca esteve em Teerã. As grandes cidades iranianas fervilham de atividade, mas tudo nelas é austero e comportado, tirando o trânsito.

Acho incrível poder acompanhar as nuances que resultam nas quatro estações no Irã, todas muito marcadas. Mas curti muito sair de Teerã com temperatura negativa e sob neve e desembarcar em São Paulo num calor daqueles.

Em contrapartida, não tive a menor saudade do custo de vida no Brasil. Até hoje não entendo porque se paga tão caro para fazer uma ligação de celular ou comer uma massa num restaurante arrumadinho. Fiquei estarrecido com os preços na barraquinha de uma praia do litoral paulista: R$ 15 por um açaí na tigela, R$ 6 por um côco morno.

Também foi chocante perceber a diferença em termos de segurança pública. Eu havia me esquecido do pânico que domina o dia a dia dos brasileiros. Ao andar na rua, cuidado com os pertences, relógio e carteira principalmente. De carro, tem que frear bem antes do sinal vermelho para minimizar o tempo parado. Não abra a janela. Não pare para atender quem pede ajuda na estrada que pode ser golpe. Há poucas semanas, um dos meus melhores amigos teve uma faca enfiada no peito por um assaltante no aterro do Flamengo, no Rio. Sobreviveu por milagre. Arrastão, reféns, balas “perdidas”, prédios invadidos. Que loucura.

Não bastasse a criminalidade desenfreada, fiquei desconcertado com a facilidade com que as pessoas podem ficar agressivas no Brasil. Há quem vire monstro por causa de uma buzina. Tem também os valentões que partem para murros e pontapés porque alguém supostamente olhou para a sua namorada ou por causa de uma discussão de bar. No Irã tudo é tão mais suave. Vi pouquíssimas vezes pessoas se agredirem fisicamente – quando aconteceu, não passou de uns sopapos mal dados.

Também vi semelhanças entre Brasil e Irã. A começar pela ineficiência da internet e precariedade dos aeroportos. No quesito telefonia celular, contudo, o Irã funciona bem melhor.

Percebi, ainda, que brasileiros e iranianos compartilham hábitos nada nobres, como furar fila, tentar levar vantagem em tudo e dirigir de forma totalmente irresponsável.

Famílias ricas dos dois países são muito parecidas, com sua propensão à ostentação e tara por carrões de luxo.

Mas há costumes comuns que eu prezo. Iranianos são tão tagarelas quanto brasileiros. Eu mesmo tendo a ser bastante reservado em locais públicos, mas gosto de saber que posso puxar papo com desconhecidos sem que isso seja visto como invasão de intimidade, como em alguns lugares da Europa. Tanto no Irã quanto no Brasil, pessoas são abertas e acolhedoras com estrangeiros. Isso não tem preço.

Pode soar absurdo diante do abismo entre as práticas, mas brasileiros e iranianos também compartilham propensão semelhante à religiosidade. Deus sempre aparece nas conversas. Muita gente tem um santo predileto. Locais de culto são respeitados.

De volta à gélida Teerã, observo pela janela da sala as nuvens pesadas que cobrem a cidade. Os pés ainda ardem, detonados com tanta picada de mosquito na praia. O aparelho de fax está abarrotado de comunicados enviados pela assessoria de imprensa do governo na minha ausência. Contemplo no meu telefone fotos dos dias na praia. Tão perto, tão longe.

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No Irã, encher o tanque custa R$ 20

Por Samy Adghirni
18/12/13 12:33

Iranianos se queixam, com razão, de que os preços não param de aumentar. Culpa das sanções econômicas e da má gestão do findo governo Ahmadinejad, que geraram uma inflação anual de ao menos 40%, segundo as contas do próprio governo. Apesar do acordo nuclear preliminar assinado no mês passado com as potências, que abre caminho para aliviar as sanções, os preços continuam em alta desenfreada.

Mas, comparado com padrões internacionais e especialmente com a realidade brasileira, o custo de vida no Irã é muito baixo. Vários levantamentos mostraram que Teerã é uma das capitais mais baratas para se se viver como estrangeiro. Vamos aos exemplos.

Uma passagem de ônibus em Teerã custa 4.000 rials, míseros R$ 0,38. Comprando o equivalente local do bilhete único, fica ainda mais barato.

Encher o tanque de um carro popular sai por 210.000 rials. Inacreditáveis R$ 20. E olha que o Irã, apesar de grande produtor de petróleo, precisa importar gasolina porque sua capacidade de refino é limitada pela infraestrutura sucateada, outra consequência das sanções.

Voos domésticos, então… Uma ida e volta entre Teerã e Isfahan (1000 km) vale 2.000.000 rials, ou seja, R$ 189!

Um taxi confortável, Toyota Camry novinho, para percorrer os quase 60 km da minha casa até o aeroporto internacional Imã Khomeini: 450.000 rials = R$ 38.

Shopping de eletrônicos importados de última geração, com destaque para produtos da Apple, no norte de Teerã (Apu Gomes/Folhapress)

Shopping de eletrônicos importados de última geração, com destaque para produtos da Apple, no norte de Teerã (Apu Gomes/Folhapress)

Para um jantar com entrada, prato principal, sobremesa e bebida (sem álcool) no restaurante mais caro da capital, um italiano com muito mais pompa do que qualidade, é preciso desembolsar 1.200.000 rials por pessoa. Menos de R$ 112. No pé sujo delicioso do bazar de Tajrish, duas pessoas comem até dizer chega por R$ 22.

A fantástica diarista que passa lá em casa duas vezes por semana (uma para limpar, outra para cozinhar) me cobra 600.000 rials (R$ 55) por uma jornada que vai das 7h às 13h.

Eletrônicos também são mais baratos. Um iPhone 5S 16 G sai por menos de R$ 1.600 no shopping Paytakht, que praticamente todos os produtos high tech disponíveis no Ocidente.

O mais bacana é o preço da medicina particular. Dia desses tive uma laringite pesada, daquelas de tossir feito cachorro doente. Fui ao pronto socorro do hospital Day, um dos melhores de Teerã. Mesmo num feriado, fui atendido rápido, sem fila nem burocracia. Paguei R$ 15 a consulta. Os remédios, incluindo antibióticos, custaram mais R$ 15.

Sim, boa parte da economia é subsidiada pelo dinheiro público, e isso preocupa o governo Rowhani, que quer restringir a gastança propalada pelas políticas populistas do governo Ahmadinejad, incluindo remessas mensais em cash equivalente a R$ 46 depositadas a cada mês na conta de praticamente cada cidadão. Isso, é claro, gera mais e mais inflação. Vale ressaltar, contudo, que no Irã pessoas físicas não pagam imposto de renda.

Dito isso, nem tudo é tão barato.

O aluguel é uma paulada. Conte R$ 3.700 para morar num apartamento de 75 m2 num bairro nobre.

Um quilo de carne de qualidade média custa 300.000 rials, ou R$ 28. Um quilo de arroz nacional vale 70.000 rials = R$ 6,60.

Por um carro importado, cobram-se taxas de quase 100%, ou seja que, na prática, é preciso pagar o valor de dois automóveis para adquirir um só.

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O Irã entra em clima de Copa do Mundo

Por Samy Adghirni
13/12/13 17:59

O clima de Copa aos poucos se instala no Irã, cuja seleção volta a disputar um mundial após ficar de fora em 2010.

A mídia dedica cada vez mais tempo e espaço aos preparativos e a temas relacionados à Copa no Brasil. Difícil ligar o rádio e não sintonizar em algum programa que debata sobre os adversários do Irã na primeira fase (Argentina, Nigéria e Bósnia) ou sobre o desempenho dos jogadores iranianos em seus respectivos clubes, na liga nacional ou no exterior. Jornais e revistas estão cheios de matérias sobre o mundial.

Sim, houve a famosa polêmica acerca da censura à transmissão do sorteio dos grupos na Bahia por causa do decote da Fernanda Lima. Mas o tema aqui foi muito menos destacado do que no exterior, apesar da mobilização on-line de iranianos contrários ou favoráveis à gaúcha. Censura é algo integrado ao dia a dia. Eventos esportivos internacionais são quase sempre transmitidos com delay de alguns segundos ou até minutos para evitar imagens consideradas impróprias para os rígidos padrões da TV estatal, como corpos femininos descobertos ou bandeiras de Israel. Anormal teria sido se a Fernanda Lima tivesse aparecido na telinha dos canais da IRIB, a riquíssima Islamic Republic of Iran Broadcasting, diretamente subordinada ao escritório do líder supremo, aiatolá Ali Khamenei.

O clima de Copa também começa a brotar lentamente nas ruas de Teerã, onde a Samsung há algumas semanas espalhou dezenas de cartazes em verde e amarelo anunciando que quem comprar TV de alta definição concorre a uma viagem para assistir aos jogos do Irã no Brasil.

Por causa da Copa, tenho a impressão que os iranianos ficam mais interessados do que antes ao descobrirem minha nacionalidade. “Ei, Brasil, Copa do Mundo! Olimpíada!”, tenho ouvido com crescente frequência. Na padaria ou no taxi, cada vez mais me perguntam o que acho da seleção brasileira e da iraniana, conhecida como “teem-ê mellí”.

Vários colegas de academia têm vindo falar comigo para perguntar sobre a possibilidade de ver a copa ao vivo e a cores. “É fácil tirar visto?”; “É um país muito caro?”; “Tem muita violência?”. Visto, a embaixada brasileira garante que fornece a qualquer iraniano que tiver ingresso na mão. Gastos locais e segurança, ah, coitados…

Um bombado veio se queixar de que uma agencia de viagem iraniana está cobrando US$ 15 mil por pacote incluindo aéreo, hotel e ingressos para os jogos do Irã.

Propangada da Samsung oferece viagens para a Copa do Mundo da Fifa 2014 no Brasil, em rua de Teerã

Propangada da Samsung oferece viagens para a Copa do Mundo da Fifa 2014 no Brasil, em uma rua de Teerã (Apu Gomes/Folhapress)

Na noite de ontem, me encontrei com um amigo, jovem empresário, que estava feliz da vida por já ter comprado passagem para o Brasil. Agora, está atrás de ingressos. Ele me perguntou sobre as cidades onde o Irã jogará: “Como é Curitiba? Verdade que Belo Horizonte tem as meninas mais bonitas do Brasil?”, regozijou-se o rapaz, playboy solteiro.

Isso é só o começo. Aposto minhas fichas que o Irã viverá um surto de euforia mais perto da Copa.

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Aids dispara no Irã

Por Samy Adghirni
03/12/13 11:33

Controlada em algumas partes do mundo, a Aids explode no Irã. Quem diz isso não são ONGs ou organismos internacionais, mas o próprio governo da república islâmica.

Desde 2002, o número de infectados aumentou “80% a cada ano”, segundo afirmou o ministro da Saúde Hassan Hashemi, citado pelo jornal “Shahrvand”, por conta do Dia Mundial de Luta Contra a Aids, no último domingo. O ministro lamentou que o tema seja “tabu na sociedade iraniana”.

Existem atualmente 27 mil pessoas contaminadas pelo vírus HIV no Irã, segundo dados oficiais. Quase 90% são homens. O número de infectados é bem maior pelas contas da Unaids, agência da ONU de combate à doença: 71 mil. Alguns médicos garantem que o número real supera os 100 mil. Ainda é uma estatística relativamente modesta para um país de 77 milhões de habitantes, mas o suficiente para deixar alarmas as autoridades.

No dia anti-Aids, o governo promoveu em Teerã um grande evento com médicos, pacientes, ONGs e diplomatas. A TV estatal ajudou a divulgar campanha para prevenir a contaminação e combater o preconceito contra infectados. “O mundo inteiro luta contra a doença, e nós não somos exceção. [Acabou-se o tempo em que] palanques públicos eram usados para zombar das sociedades ocidentais”, disse o ministro, num raro ataque de autocrítica por parte de dirigentes iranianos.

Hashemi anunciou que a principal causa de contaminação no país deixou de ser o uso de seringas infectadas. Hoje, o maior perigo está no que chamou de “relações sexuais inseguras.” Ele não entrou em detalhes, mas estava claro que ele se referia ao fato de a sociedade seguir modo de vida muito mais próximo do ocidental do que se imagina.

Jovens iranianos ficam, namoram e fazem sexo casual. Embora tudo seja ilegal e passível de castigo físico e multa, o governo cada vez mais tende a fechar os olhos. Nas grandes cidades, virgindade feminina há tempos deixou de ser pré-requisito para casamento.

A prostituição corre solta. Às vezes, a prática é maquiada com recurso ao sigheh, um contrato de união temporária que não tem o mesmo valor legal que um casamento e permite a um casal de desconhecidos ocupar um quarto de hotel. Geralmente, a mulher espera compensação financeira. Somente homens e mulheres estrangeiros podem dormir juntos em hotéis sem algum documento que comprove a legalidade de sua união. Alguns sighehs duram um par de horas, outros se estendem por anos. Um homem pode acumular vários sighehs, mas a mulher só pode emendar um segundo depois que o primeiro expirar.

Dito isso, prolifera a prostituição clássica, sem papel assinado. Moças se oferecem na rua ou na internet. Um conhecido me falou de um playboy solteirão de Teerã que promete o equivalente a US$ 300 a toda moça, de preferencia nos seus vinte e poucos anos, disposta a visitar sua mansão.

Camisinhas são vendidas livremente nas farmácias, mas, a exemplo do que ocorre no resto do mundo, muita gente dispensa. Já ouvi que autoridades distribuem preservativos nas prisões.

Mas relações homossexuais são um tema tão tabu que praticamente não há informação sobre prevenção.
Para além da preocupação com a transmissão por relação sexual, o Irã também sofre com alto índice de toxicomania, que resulta, em grande parte, da proximidade com o Afeganistão, maior produtor mundial de opiáceos.

O governo anunciou que distribuirá nas escolas um caderno de oito páginas destinado a alertar a consciência da garotada. Kits para detectar o HIV serão despachados para postos de saúde de todos, promete o Ministério da Saúde.

Tudo isso mostra que, por trás do discurso ultraconservador e moralista, a teocracia iraniana é capaz de encarar de frente questões de saúde pública envolvendo temas moralmente sensíveis.

Mas nem todos os membros do governo acompanham esta lógica. O vice-ministro da Saúde, Ali Akbar Sayari, atribuiu a alta das contaminações às TVs estrangeiras acessadas por parabólicas ilegais, às academia de ginástica e aos salões de beleza para mulheres. “É o triângulo da morte”, alertou.

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Zarif, o chanceler que virou herói

Por Samy Adghirni
27/11/13 16:37

A decisão estratégica de arriscar um acordo preliminar com as potências para tentar pôr fim a dez anos de impasse sobre o programa nuclear partiu do líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, máxima autoridade do Irã. Mas quem executou, seduziu e barganhou pelo lado iraniano foi Mohammad Javad Zarif, o ministro das Relações Exteriores e negociador atômico mais popular na história da república islâmica.

Na volta a Teerã, após quatro dias e quatro noites de intensa negociação em Genebra, a comitiva de Zarif foi recebida por centenas de pessoas em êxtase no aeroporto Mehrabad. Alguns choravam, outros gritavam palavras de agradecimento ao ministro pela perspectiva de ver um alívio, ainda que modesto, das sanções que empobrecem o país e aumentam o desemprego. Parecia a torcida do meu Colorado recebendo o time após a conquista do Mundial de clubes da FIFA contra o Barcelona, em 2006.

Zarif, por ter morado muito tempo nos EUA, tem grande capacidade de empatia com americanos, e isso foi fundamental para abrir as primeiras rodadas de diálogo bilateral público e direto entre Teerã e Washington em 34 anos de inimizade. Reiteradas conversas olho no olho entre Zarif e seu colega americano, John Kerry, foram fundamentais para acelerar conversas nucleares nos últimos meses.

É curioso constatar como a trajetória do ministro sempre esteve atrelada aos EUA.

Nascido numa família religiosa de Teerã, o xiita Zarif foi parar em terras ianques em 1979 para fugir da perseguição anti-islâmica em vigor sob a então ditadura secular do xá Mohammad Reza Pahlavi. Instalado em São Francisco, integrou o curso de Relações Internacionais da universidade local. Em 1979, quando a revolução derrubou a monarquia em Teerã, Zarif bateu à porta da missão iraniana na ONU, em Nova York, em busca de trabalho. Uma de suas primeiras missões foi ajudar a fechar o consulado iraniano em São Francisco após a ruptura entre Irã e EUA, decorrente do sequestro da embaixada americana em Teerã.

O chanceler iraniano, Mohammad Javad Zarif, durante entrevista em Teerã (Atta Kenare/AFP)

Na década de 1980, Zarif alternou funções junto à equipe do Irã na ONU com estudos e pesquisa acadêmica. Em 1988, obteve doutorado em Direito Internacional pela Escola Josef Korbel de Estudos Internacionais, uma das melhores do mundo, segundo a revista Foreign Policy. Entre ex-alunos notáveis encontram-se também a ex-secretária de Estado Condoleezza Rice e o ex-chefe do Estado maior das Forças Armadas americanas, general George W. Casey Jr.

A carreira diplomática de Zarif decolou nos anos 1990, acarretada em grande parte pela sua capacidade de articular contatos secretos com os americanos sempre que necessário. Em 1994, o ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger o teria presenteado com uma cópia autografada do livro “Diplomacy”. A dedicatória dizia: “To Zarif, my respectful enemy.” O interessado nunca desmentiu a história.

Zarif assumiu o comando da representação do Irã na ONU em 2002, o mesmo ano que dissidentes iranianos ligados a um grupo terrorista revelaram ao mundo a existência de uma face secreta do programa nuclear de Teerã. Na época, o negociador chefe do Irã era Hasan Rowhani, que se tornaria presidente onze anos depois. Para evitar nova guerra no Oriente Médio na esteira do 11 de Setembro, Zarif e Rowhani costuraram, em 2003, a famosa “Grande Barganha”, pela qual Teerã aceitava até o princípio de um dia reconhecer Israel em troca do fim das sanções e da promessa de não ser atacado. George W. Bush esnobou a oferta sob pretexto de que países que havia incluído em seu “eixo do mal” não mereciam confiança. A escalada pavimentou o caminho para a eleição do polêmico Mahmoud Ahmadinejad na eleição iraniana de 2005. Alegando incompatibilidade com o estilo truculento do novo presidente, Zarif reunicou ao cargo de embaixador da ONU em 2007 e passou a dedicar-se às aulas de Relações Internacionais na Universidade de Teerã.

A eleição do amigo Rowhani, em junho passado, resgatou do ostracismo aquele que interlocutores ocidentais consideram um dos diplomatas iranianos mais preparados.
“Zarif é um craque das conversas multilaterais. Ele conhece tão bem a ONU e passou tanto lá que ele deve ter até hoje um par de pantufas esperando por ele na porta do prédio, em Nova York”, me contou, brincando, um diplomata europeu.

Pessoas com acesso a Zarif me descreveram um sujeito sério e introvertido “até demais” no trato pessoal. Já ouvi que o ministro não faz a menor questão de ser simpático com gente de fora do circuito diplomático. Bem diferente do personagem afável e sorridente que posa ao lado dos negociadores de EUA, Rússia, China, Reino Unido, França e Alemanha.

Zarif fala inglês perfeitamente e, com suas frequentes postagens no Twitter (83 mil seguidores) e Facebook (733 mil curtidas), mostra dominar recrusos da comunicação moderna. “A arte do diplomata é esconder toda turbulência por trás de um sorriso”, tuitou o ministro após o acordo, no último fim de semana.
Mas o ministro disse, em sua autobiografia “Mr. Ambassador”, que jamais sentiu-se culturalmente próximo do Ocidente.

“Morei 30 anos no EUA, mas sempre preservei minha cultura e costumes islâmicos e iranianos. Até hoje o estilo de vida ocidental me soa estranho. […] Você não pode beber alcool, não pode comer carne ilícita [não preparada do modo muçulmano] e não aperta mão de mulher. É por isso que um diplomata iraniano sempre sentirá que o Ocidente não é onde deveria estar.”

Isso não basta para acalmar os linha dura da teocracia iraniana, que detestam a desenvoltura de Zarif com ocidentais e o acusam de ter cedido demais em Genebra. O acordo determina que, pelos próximos seis meses, o Irã deverá reduzir o grau de enriquecimento de urânio, suspender planos de expansão das centrais nucleares e permitir monitoramento mais intrusivo por parte dos inspetores da ONU. Em troca, Teerã receberá um alívio modesto das sanções que assolam o dia a dia do população e recuperará parte dos fundos bloqueados em bancos no exterior.

Apesar de o líder supremo ter expressado publicamente apoio à equipe de negociadores de Zarif, setores ultraconservadores têm saudade de Saeed Jalili, que era negociador do Irã antes do governo Rowhani. Jalili se recusava a falar inglês e aproveitava cada encontro com as potências para lembrar o mal que o Ocidente já fez aos iranianos: ocupação do país, golpe de Estado em 1953, apoio ao regime do xá, apoio às tropas do Iraque que invadiram o Irã etc.

Sem querer, o pessoal “do contra” acabou fortalecendo ainda mais a empatia de Zarif com seus interlocutores.

Em artigo na imprensa local, um editorialista extremista divulgou que o ministro confidenciou a deputados que havia sido contrário à conversa telefônica entre Obama e Rowhani, ocorrida às margens da Assembleia Geral da ONU, em setembro. Zarif ficou tão irritado com a discórdia plantada que ele foi parar no hospital com ataque de nervos e paralisia lombar. As dores se estenderam por semanas, e Zarif apareceu de cadeiras de rodas numa das negociações em Genebra. As comitivas negociadoras, incluindo a americana, se interessaram pela saúde do chanceler, um tema que se imiscui totalmente nas conversas. Todo mundo oferecia ajuda, trazia um conselho ou uma história pessoal semelhante de estresse causado por trabalho. Zarif melhorou e, semanas depois, a negociação resultou num acordo.

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