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Samy Adghirni

Um brasileiro no Irã

Perfil Samy Adghirni correspondente em Teerã.

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Papel da mulher opõe líder supremo e Rowhani

Por Samy Adghirni
22/04/14 12:55

No seu segundo e último mandato, o ex-presidente Mahmoud Ahmadinejad caiu em degraça depois de desafiar a autoridade do líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, chefe absoluto do Estado iraniano.

Eis que agora o sucessor de Ahmadinejad, o bem comportado Hasan Rowhani, também resolveu divergir abertamente de Khamenei.

O embate se deu sobre um dos temas mais polêmicos: o papel da mulher na sociedade. O assunto está quente por conta do Dia da Mulher, que o Irã festejou no último sábado, aniversário de nascimento de Fatima Zahra, filha do profeta Maomé.

Discursando em Teerã diante de centenas de mulheres cobertas da cabeça aos pés com o chador, o tipo de véu que identifica maior devoção religiosa, Khamenei foi direto ao ponto: “Um dos maiores erros do Ocidente em relação às mulheres é a igualdade de gênero.”

Assim falou o líder: “Por que um emprego masculino deveria ser dado a uma mulher? Que orgulho uma mulher pode ter ao ter um emprego masculino?”.

Khamenei disse que o islã “não faz distinção” entre gêneros, mas ressaltou que se trata de “duas formas – uma para um tipo de atividade, outra para outro tipo de atividade.”

Aos olhos do líder supremo, a atividade da mulher é simples: cuidar do lar e zelar pelo bem estar da família. “Mulheres dentro de casa trazem paz, paz para o homem, paz para as crianças. Se uma mulher não tem paz mental e espiritual, ela não pode dar paz à família. Uma mulher que é humilhada, xingada, pressionada pelo trabalho, não pode ser uma boa de casa, não pode administrar o lar.”

No dia seguinte, domingo, foi a vez de Rowhani falar em homenagem às mulheres, também durante evento público em Teerã. Numa aposta certamente popular junto à opinião pública, mas politicamente arriscada, o presidente escolheu ir na direção oposta à de Khamenei.

“Mulheres devem ter oportinidades iguais, benefícios iguais e direitos sociais iguais”, disse o presidente da república islâmica. “Será possível marginalizar metade da sociedade?”

Em dois trechos de sua fala, Rowhani pareceu pedir licença para discordar de Khamenei.

“Àqueles que têm medo da presença e da excelência das mulheres […], por favor abstenham-se de atribuir essas visões erradas à religião, ao islã e ao Corão”, disse Rowhani, que é clérigo, mas de um nível hierárquico inferior ao do líder supremo.

“É verdade que o lar é o sustentáculo da sociedade e que a reforma começa em casa, mas se ignorarmos metade da população do país, não veremos desenvolvimento verdadeiro e crescimento neste país.”

Mesclar a questão da mulher à economia foi uma jogada astuta. O que Rowhani pareceu dizer é: “Para amenizar o terrível efeito das sanções e o fracasso das políticas populistas de Ahmadinejad, precisamos contar com o máximo da nossa força de trabalho, e isso inclui as mulheres.”

Rowhani comemorou o fato de as mulheres terem se tornado protagonistas em todas as áreas da sociedade, mas admitiu que “ainda falta muito para atingir [a] meta [da igualdade de gênero.]”

Foi um posicionamento corajoso por parte de Rowhani. Afinal, o líder supremo tem status de santo, e contestá-lo pode trazer problemas. Ahmadinejad teve vários atritos com Khamenei, desde nomeações de ministros até divergências ideológicas e diplomáticas.

Ao contrário de Ahmadinejad, Rowhani tem um amplo apoio social, que se estende dos reformistas tradicionais até alguns religiosos, passando pelos segmentos mais liberais. Mais importante ainda é o fato de as mulheres terem votado em massa em Rowhani na eleição do ano passado. É compreensível que o presidente lhes deva alguma satisfação, apesar da pressão dos ultraconservadores.

Para além do dossiê nuclear, da relação com o Ocidente e da gestão econômica, o abismo acerca de questões morais e culturais entre Rowhani e seus adversários promete ser um dos mais perigosos pontos de atrito interno pelos próximos anos.

Sobre a questão da mulher no Irã, sugiro a leitura de uma reportagem que escrevi no mês passado para o caderno “Ilustríssima”.

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A pacata diáspora iraniana

Por Samy Adghirni
15/04/14 13:54

Numa recente folga, viajei até o interior da Alemanha para farrear com amigos de infância num conhecido festival de música. Ao fazer o check-in no hotel, reconheci imediatamente o sotaque do tiozinho na recepção. “Shomá iraní hastíd?” – o senhor é iraniano?

Era o dono do estabelecimento. Um senhor baixinho e falador, em seus 50 e muitos anos. Ao ouvir a conversa, uma simpática e elegante senhora, uma década mais moça, apareceu para saber com quem o marido estava papeando em farsi.

Moram na Alemanha há três décadas. Ela vai a Teerã uma vez por ano para visitar a mãe que, por um curioso acaso, mora perto da minha casa. Ele detesta ir ao Irã. Acha o regime pavoroso e não suporta a intromissão da religião na política. Mas cede à pressão da mulher para acompanhá-la de vez em quando. O casal possui dois hoteizinhos. Os filhos se formaram em boas universidades locais. Todo mundo tem cidadania alemã.

São um típico exemplo da diáspora iraniana que se espalha no mundo inteiro. Comunidade tranquila, trabalhadora e bem integrada.

Destoando de sua má imagem internacional, o Irã é um grande exportador de pessoas prósperas e instruídas. Muitas abandonaram o país por razões políticas e religiosas. Outras saíram em busca de melhores salários e condições de vida. O Irã é um dos recordistas mundiais em fuga de cérebros, o fenômeno pelo qual um país é desertado de seus melhores quadros, gerando graves consequências sociais e econômicas. Ao menos 150 mil iranianos com alta qualificação se mudam para o exterior a cada ano, segundo admitiu recentemente o ministro da Ciência e Tecnologia, Reza Faraji Dana. Um quarto dos iranianos com curso superior moram em países ricos.

Existem ao menos quatro milhões de iranianos residentes no exterior. Metade encontra-se na América do Norte. A maior comunidade vive nos EUA, mais precisamente em Los Angeles, apelidada de Tehrangeles.

Muitas famílias iranianas migraram para os EUA para fugir da Revolução Islâmica, em 1979, incluindo membros das minorias judaica e bahá’í. Neste grupo havia muitos médicos, engenheiros, professores e cientistas. Mas na época do xá também houve fuga de oposicionistas. O atual chanceler iraniano, Mohammad Javad Zarif, foi morar na Califórnia quando adolescente para escapar da ditadura Pahlavi.

De geração em geração, a comunidade de descendência iraniana nos EUA se tornou uma das minorias mais bem sucedidas do país. O fundador do site e-Bay é o bilionário Pierre Omidyar. O número dois da Google foi Omid Kordestani. Salar Kamangar comandou o site Youtube. A Nasa está cheia de iranianos e descendentes, entre os quais o jovem prodígio Babak Ferdowsi, que comandou à distância a aterrissagem do jipe-robô em Marte, há dois anos. O economista Nouriel Roubini, famoso por ter antecipado a crise americana de 2008, é filho de judeus iranianos e fala farsi. A superestrela da CNN Christiane Amanpour é cidadã iraniana. O pai do ex-tenista André Agassi era boxeador da seleção olímpica iraniana. Os DJs da dupla Deep Dish são nascidos no Irã. O genro do secretário de Estado, John Kerry, é um respeitadíssimo neurocirurgião iraniano.

Na Europa, iranianos estão presentes nas melhores universidades, incluindo escolas politécnicas. Há muitas famílias do Irã morando nos distritos 15 e 16 de Paris, entre os mais caros da capital francesa. O estereótipo do iraniano parisiense é uma pessoa refinada e erudita. Na Alemanha, iranianos desfrutam de uma imagem melhor que a de turcos e árabes. Suécia, Holanda e Reino Unido também têm comunidades iranianas.

É raro ver imigrantes da república islâmica exercendo trabalho braçal. Casos como o dos dois rapazes que, numa aparente tentativa de migrar ilegalmente para a Europa usando passaporte falso, estavam a bordo do avião da Malaysia Airlines desaparecido não refletem o perfil dominante dos imigrantes iranianos.

Casamentos e laços sociais tendem a priorizar a comunidade, mas isso não impede iranianos de se adaptarem plenamente aos modos dos países onde se instalam. Se enturmam, trabalham e namoram locais com facilidade. Mesmos os mais religiosos tendem a viver sua fé de forma pacata, sem afã de sair por aí querendo converter todo mundo.

A diáspora reflete a diversidade étnico e religiosa do Irã. Há imigrantes persas, mas também curdos e turco-azeris. Muçulmanos são majoritários, mas Israel tem ao menos 135 mil cidadãos judeus de origem iraniana. Entre eles estão o ex-ministro da Defesa Shaul Mofaz e o ex-presidente Moshe Katzav, que trocou palavras em farsi com o então colega iraniano Mohammad Khatami durante o velório do papa João Paulo 2º, em 2005. O Brasil tem uma comunidade bahá’í ativa e altiva.

Apesar da quantidade significativa de iranianos que nunca mais voltaram após a revolução de 1979, a maior parte da diáspora mantem vínculos e visita o país. Voos em direção ao Irã vivem cheios de famílias com dupla cidadania.

Autoridades iranianas vêm tentando há anos atrair de volta os expatriados. A resposta foi modesta, mas é comum esbarrar em Teerã com iranianos que, após anos e até décadas no Ocidente, retornaram ao país para montar negócios.

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Não abram, é a Polícia!

Por Samy Adghirni
08/04/14 13:15

Boa parte dos prédios residenciais de Teerã têm interfone com câmera acoplada. Toca a campainha, e você, antes mesmo de atender, pode conferir na telinha quem está na portaria. Ótimo contra ladrões. Ótimo também contra a Polícia, que vive querendo entrar nos edifícios em busca de parabólicas ilegais.

Os policiais geralmente não entram nas casas sem mandado de busca. Mas eles têm acesso às áreas de uso público, como garagens, piscinas de condomínio e terraços. Quando conseguem colocar a mão nas antenas, desmontam e confiscam tudo. A coisa não costuma ter consequências mais graves, mas obriga moradores a comprar novas parabólicas (individuais ou coletivas) e pagar mão de obra para instalar tudo de novo.

O Estado teocrático iraniano tem o monopólio sobre emissoras de TV e rádio. Canais estrangeiros são vetados sob pretexto de ser moralmente corruptos e de propagar ideias destinadas a derrubar o regime islâmico em vigor desde a revolução de 1979. Verdade seja dita, algumas emissoras, como BBC Persian e Voice of America (bancada pelos EUA), fazem militância aberta contra o governo iraniano.

Apesar da proibição, os tetos das cidades iranianas se parecem com uma floresta de parabólicas, compradas sem dificuldade no mercado negro. Tem modelos nacionais, importados, uns mais voltados para canais europeus, outros para emissoras do Oriente Médio etc.

Ao perceber que mandar policiais de porta em porta equivalia a enxugar gelo, autoridades morais adotaram política mais agressiva. Nos últimos anos, passaram a disparar pelos ares sinais eletrônicos destinados a cortar as transmissões que saem dos satélites estrangeiros em direção às parabólicas. Esses sinais são chamados de “parasitas” – para-zít, em farsi. Sua eficácia é impressionante. Ao ligar a TV em canais estrangeiros, você se depara com tela fragmentada em quadradinhos e sons estridentes e entrecortados. Impossível assistir. Conheço gente que está há meses sem poder curtir canais estrangeiros. Os traficantes de parabólicas dizem que as antenas voltam a funcionar se forem deslocadas para as varandas, onde ficam menos expostas aos parasitas – mais expostas, porém, aos olhares de quem está na rua.

Rumores sobre possíveis riscos à saúde ganharam força em 2012, quando um conhecido médico disse que o aumento dos abortos espontâneos no Irã era consequência dos parasitas no ar.

Há alguns meses, a vice-presidente da república para temas ambientais, Massoumeh Ebtekar, disse que os sinais podem causar câncer.

O problema é que quem manda em questões morais e de censura não é o governo, mas o Judiciário e o aparato de segurança, dominados por ultraconservadores (não eleitos) opostos às políticas conciliadoras do presidente Hasan Rowhani. Aos olhos dessa turma linha dura, vale qualquer esforço para preservar a nação da “westoxification”, a intoxicação cultural supostamente causada pela imposição das ideias ocidentais.

Amigos iranianos me contaram que a situação era muito pior até o início dos anos 1990, quando o regime bania até aparelhos de videocassete. Fitas contendo filmes, documentários e videoclipes entravam no país escondidas em malas de roupas e presentes. Nas escolas, professores incentivavam crianças a denunciar os pais.

Hoje em dia, qualquer loja de eletrodomésticos vende aparelhos de DVD de última geração. Os filmes continuam oficialmente vetados, mas ambulantes nem precisam mais se esconder para vender todo tipo de obra (inclusive os mais impensáveis) nas ruas, na saída dos restaurantes ou em postos de gasolina.

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O sequestro que choca o Irã

Por Samy Adghirni
01/04/14 14:18

Iranianos acompanham com apreensão e revolta o drama de cinco jovens soldados sequestrados no início de fevereiro por um obscuro grupo insurgente na fronteira com o Paquistão.*

A facção, conhecida como Jaish Al Adel, anunciou na semana passada ter executado um dos reféns. Identificado como Jamshid Danaeifar, tinha 27 anos de idade. Deixa mulher e um bebe recém nascido.

Redes sociais estão tomadas por uma campanha implorando clemência pelos que continuam vivos. Presume-se que tenham sido arrastados para algum cativeiro do outro lado da fronteira, em território paquistanês. Páginas de apoio aos soldados no Facebook já reúnem dezenas de milhares de seguidores. Até quem não simpatiza com o regime aderiu à mobilização. Afinal, os reféns são simples recrutas cumprindo os dois anos de serviço militar obrigatório. Nada a ver com os voluntários da Guarda Revolucionária que vão para a Síria ajudar as tropas de Bashar Al Bassad. Danaeifar era o único militar de carreira, mas soldado raso.

Houve protesto em Teerã na frente da Embaixada do Paquistão, país acusado de ser negligente com grupos armados clandestinos e de não se empenhar o suficiente pelos reféns. A diáspora iraniana também se manifestou diante das representações paquistanesas no exterior. Um porta-voz do Paquistão disse à BBC que as buscas deram em nada.

Muita gente reclama que o Ocidente não dá a mínima para o caso por se tratar de iranianos. Bem diferente do sequestro de Gilad Shalit, soldado israelense sequestrado por militantes palestinos em 2006, que atraiu a atenção do mundo inteiro até ser liberado, seis anos depois, lembram os críticos.

O governo do presidente Hasan Rowhani está sob intensas críticas por não conseguir proteger seus recrutas. A ala linha dura, tanto dentro do regime quanto na opinião pública, exige que o Irã aja por conta própria e envie forças especiais para libertar os reféns. Teerã pode fazer isso, mas seria uma grave violação da soberania territorial do Paquistão. Arriscado mexer com um vizinho que possui um Exército forte – e a bomba atômica.

Numa de suas primeiras crises como chanceler, Mohammad Javad Zarif disse que o governo não mede esforços para que os soldados retornem ao “abraço de suas famílias.” Zarif enviou carta ao secretário-geral da ONU, Ban Ki Moon, dizendo que condenar o sequestro não é suficiente. Ban chamou o ataque de “ato pavoroso” e pediu que os autores sejam julgados.

Sabe-se quase nada sobre o Jaish Al Adul (Exército da justiça, em árabe), cujos blogs e sites estão fora do ar há meses.

Aparentemente formado por étnicos balúchis, o grupo diz defender os direitos dos muçulmanos sunitas, que formam 10% da população iraniana. O Irã não só tem maioria populacional xiita como também é governado por um Estado teocrático xiita.

O preconceito contra sunitas existe, sem dúvida. Teerã tem várias igrejas cristãs e até sinagogas, mas nenhum local de culto para os sunitas. Além disso, a minoria sunita compõe a parcela mais pobre da população. Isso não justifica as atrocidades cometidas por extremistas sunitas que, segundo o Irã, são bancados pela arqui-inimiga Arábia Saudita. Há quem veja também o dedo dos Estados Unidos ou de Israel por trás do interesse em fomentar instabilidade no Irã. Em 2010, o líder de um dos grupos sunitas mais radicais, responsável pela morte de dezenas de militares, foi preso e enforcado, para alegria de muita gente num país onde existe amplo apoio à pena de morte.

Em outubro passado, o Jaish Al Adel massacrou 14 recrutas na mesma região da fronteira com o Paquistão.

O caso atual é mais dramático, por envolver suspense sobre o paradeiro dos reféns. Surgiram na mídia iraniana relatos de que o Jaish Al Adel agora oferece a Teerã uma troca de prisioneiros – soltar os quatro recrutas em troca da libertação de centenas de militantes sunitas detido pelo Irã. Autoridades locais negam ter recebido essa proposta.

Os agressores filmaram a o momento da captura, ocorrido quando os soldados, encarregados de monitorar a fronteira com o Paquistão, descansavam numa barraca de lona. Assista ao vídeo abaixo, editado pelos sequestradores ao som de cantos jihadistas. É de partir o coração. Um dos recrutas chora de desespero. Outro pede licença para colocar uma calça antes de ser levado.

Sequestro

* Os quatro recrutas foram libertados na sexta-feira 4 de abril e já estão reunidos com suas famílias. Não está claro se o Irã fez alguma concessão aos sequestradores.

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Quando Teerã vira outra cidade

Por Samy Adghirni
25/03/14 12:33

Ninguém em sã consciência ousaria dizer que Teerã é um lugar agradável. A caótica metrópole de 12 milhões de habitantes sofre com trânsito, poluição e barulho que fazem São Paulo parecer um vilarejo suíço. Estresse o tempo todo – ou quase isso. Existe um período no ano, de no máximo duas semanas, em que a capital se torna um recinto de sossego. E este período é agora.

O início da primavera, na última sexta-feira, selou a chegada do Nowruz, o Ano Novo persa. Tempo de megafaxinas (como já mencionado nesta coluna), comemorações e votos de felicidade. Passada a euforia que eletriza a nação antes da virada, igualzinho ao fim de ano brasileiro, o Irã entra em estado de virtual paralisia. Aulas são suspensas, o governo fecha as portas e o comércio libera funcionários. Estradas, aeroportos e rodoviárias entopem com tanta gente aproveitando as férias para respirar outros ares. E eis que, como a cada ano, o final de março transforma Teerã numa cidade pacata e aprazível.

Incrível como a crosta marrom de poluição que cobre a capital se desintegra já no primeiro dia das férias. Reflexo imediato da debandada geral de milhões de carros movidos a uma gasolina caseira de alta toxicidade, à qual os iranianos são obrigados a recorrer por causa das sanções que encarecem demais o combustível importado. Peralá, o Irã não era um grande produtor de petróleo? Sem dúvida. Mas as punições impostas por EUA e Europa impedem a república islâmica de importar equipamentos necessários para refinar o petróleo. Isso deixa duas opções: torrar dólares para comprar gasolina do exterior ou inventar o próprio combustível. Teerã tem índices de poluição piores que os da Cidade do México.

Mas, por ora, a sensação de ar puro é reforçada pelos primeiros dias de sol prolongado após o inverno. Se o paraíso existe, acho que sua luminosidade e temperatura são parecidas com as de Teerã nesta época do ano.

No último fim de semana, a parede montanhosa que costeia o norte de Teerã aparecia com tanta nitidez que eu conseguia ver o brilho da neve e a sombra das rochas. Em tempos normais, a cordilheira Alborz não passa de um vulto acinzentado que se desvenda timidamente por trás de um manto de ar sujo.

A bordo de um taxi na via expressa Modarres, descendo dos bairros norte em direção ao sul, pude contemplar Teerã até a linha do horizonte. Na mesma corrida, fiquei extático ao enxergar, lá longe, a leste, o monte Damavand, pico mais alto do Oriente Médio, com quase 6.000 metros. Nunca imaginei que fosse possível vê-lo desde Teerã. Mais de 70 km separaram a capital do Damavand, que atrai montanheiros do mundo inteiro.

Na série dos pequenos deleites da primavera em Teerã, também ando curtindo observar o céu – azul luminoso ou coberto de estrelas.

Para além da estética, as férias de Nowruz trazem valiosas comodidades no dia a dia. O já mencionado trajeto de táxi entre minha casa e o centro de Teerã, onde fui almoçar na casa de amigos, levou menos de dez minutos. A mesma corrida pode demorar mais de uma hora, dependendo do trânsito. No caminho de volta para casa, me diverti ao constatar que o carro não parou de andar uma vez sequer, de tão vazios estavam os faróis.

Esse alívio da tensão urbana parece aproximar pessoas que ficam em Teerã, além de melhorar o humor geral. A alegria de ver a cidade vazia apareceu invariavelmente em todas as minhas conversas nos últimos dias, com amigos ou desconhecidos.

Há alguns incômodos, como comércio fechado. Preciso passar no barbeiro com urgência. A diarista saiu de férias, e o apartamento onde moro está de pernas para o ar. Minha (nova) assistente foi visitar a família no interior. Preocupação muito maior é ver todos os serviços públicos parados. Rezo por quem precisar de hospital ou de alguma urgência burocrática. Tudo continua em câmera lenta até a primeira semana de abril.

Ontem, perguntei a um amigo iraniano por que ele estava gastando férias em Teerã. Resposta: “Viajar no Nowruz? Besteira! É a única época em que eu amo morar aqui. Outra hora eu viajo.”

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E a personalidade do ano no Irã é...

Por Samy Adghirni
18/03/14 15:58

Na próxima sexta-feira acaba o ano persa de 1392. Como acontece no Brasil, a chegada do reveillon leva muita gente no Irã a olhar para trás e fazer um balanço do ciclo que se encerra. Foi com esse espírito que duas empresas jornalísticas, uma pró e outra antirregime, perguntaram a dezenas de milhares de iranianos quem foi a personalidade do ano no país.

Ainda mais surpreendente que o resultado em si é o fato de as pesquisas terem chegado a resultados parecidos. Sinal de que ambas têm algo de crível.

Num ano marcado pelo fim da tenebrosa era Mahmoud Ahmadinejad e pela volta triunfal de um governo “paz e amor”, eu logo pensei, ao saber dos levantamentos, que a personalidade do ano seria o presidente Hasan Rowhani, eleito em junho. Mas ele só chega em segundo.

O iraniano mais popular de 1392 (março de 2013 a março de 2014) é o ministro das Relações Exteriores Mohammad Javad Zarif, que também chefia a comitiva iraniana nas negociações nucleares com as grandes potências.

Com inglês impecável e modos refinados, Zarif demonstrou grande capacidade diplomática ao costurar um acordo que permite sonhar, pela primeira vez, com uma solução definitiva ao impasse atômico. O ministro parece ter revitalizado o orgulho de muitos iranianos, que andava no chinelo por causa das insanidades proferidas mundo afora por Ahmadinejad. Em novembro, escrevi neste mesmo espaço um texto contando que Zarif havia se tornado um heroi nacional.

Zarif lidera com 51% dos votos a pesquisa online feita pela agência de notícias ISNA, relativamente liberal, mas fiel seguidora da teocracia iraniana. O levantamento da ISNA teve participação de 18.521 internautas, que escolheram sua personalidade do ano numa lista elaborada pela redação.

O ministro obtem 28% na segunda pesquisa, feita pelo site da Radio Farda, emissora em farsi baseada na Europa e financiada pelo Congresso americano. Mesmo banida no Irã, a estação é ouvida por milhões de iranianos, na internet ou por meio de parabólicas. O número de participantes foi de 21.511.

Rowhani fica com 17% dos votos na ISNA, e 21% na Radio Farda.

Atrás de Rowhani aparece o empresário Babak Zanjani, que obtem 15% nas duas pesquisas. Jovem e moderno, Zanjani inspirou muita gente ao faturar bilhões de dólares em negócios que gravitam em torno das estatais iraninas. Mas ele está preso desde dezembro sob acusação de corrupção.

A partir das posições inferiores, as duas pesquisas divergem. O quarto colocado no ranking da ISNA (10%) é o ex-presidente Ali Akbar Hashemi Rafsanjani [1989-1997], hoje chefe de um dos órgãos consultivos do regime e homem mais rico do país. Rafsanjani foi impedido de concorrer à eleição presidencial, mas jogou todo seu peso em favor de Rowhani.

Já o quarto colocada Radio Farda é o cineasta e ativista Mohammad Nourizad (10%), que passou anos na prisão por criticiar o líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, pela implacável repressão aos protestos contra a reeleição supostamente fraudulenta de Ahmadinejad, em 2009.

No ano passado, o vencedor da Radio Farda foi a ativista de direitos humanos Nasrin Sotoudeh, que entrevistei recentemente.

Pesquisei os dados da ISNA, mas não encontrei quem foi indicado personalidade no ano persa de 1391. Como as agências de notícias aqui têm o curioso hábito de eliminar páginas da internet que podem gerar encrenca, fico sem saber se houve levantamento ou se as notícias com o resultado foram simplesmente limadas da web.

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A superfaxina anual nas casas iranianas

Por Samy Adghirni
11/03/14 16:26

Famílias iranianas estão mergulhadas numa das atividades mais curiosas da cultura local: a limpeza geral, total e absoluta de seus lares antes do Nowruz, o Ano Novo persa, no dia 21 de março, que marca também o início da primavera.

Toda sujeira deve ser removida, até o ultimo grão de poeira no cantinho mais remoto. O mutirão é tão pesado que é chamado de “khuneh tukí”, sacudindo a casa, em farsi.

Quanto mais perto da virada, maior a agitação. Já estamos na fase em que é recomendável não visitar amigos e parentes, pois todo mundo ou quase está com a casa de pernas para o ar. Sofás, camas, cadeiras, mesas, cortinas e tapetes são colocados para fora para uma lavagem completa. Com os cômodos vazios, é mais fácil esfregar chão e paredes, inclusive em sótãos, porões e garagens. Janelas devem ser limpadas por dentro e por fora.

Armários, gavetas e arquivos são esvaziados para que se avalie o que fica e o que será descartado. É o período do ano em que disparam doações de roupa à caridade.

Também é época de dores nas costas e nas articulações com tanto empurra empurra de móveis. Quem pode, paga mão de obra especializada. Um amigo contratou um homem de Kermanshah, cidade no Curdistão iraniano, para fazer o trabalho. Curdos têm fama de ser trabalhadores fortes e incansáveis. Quem não fechar contrato com antecedência ficará sem mão de obra, pois os bons profissionais são disputadíssimos.

Do lado de fora de casas e prédios, às vezes há pilhas de objetos colocados à disposição dos garis e operários da Prefeitura.

“Essa limpeza é a justificativa perfeita pela qual mulheres conseguem convencer os maridos a comprar móveis novos,” brinca uma iraniana.

Muita gente acredita que a limpeza deve ser feita também nos corações. Hora de purificá-los e eliminar mágoas, dores e ressentimentos.

A ideia toda do khuneh tukí é trazer para a vida dos seres humanos o grande renascimento que brota na natureza durante a primavera. Até o tempo ajuda: quente o suficiente para abrir portas e janelas, fresco o suficiente para trabalhar sem sofrer com o calorão ou com insetos.

Quando as casas ficam tinindo de limpas e cheirosas, a tradição manda que se use roupa nova para visitar amigos e parentes no Ano Novo, dando prioridade aos mais velhos. É tanta gente para ver que algumas visitas duram apenas alguns minutos. Fartura de presentes, sorrisos e votos de felicidade. Tudo muito formal e regulado, num dos traços mais típicos da interação social à iraniana. Pega mal ignorar esse ritual ou quebrar o protocolo com humor fora do script, cobrança ou acerto de contas familiar. Até os jovens mais rebeldes e doidões se curvam à tradição milenar.

Embora seja traço da cultura persa, a faxina geral de fim de ano é praticada por outros povos da região como curdos, turcos-azeris, tadjiques e baluchis.

Tradições semelhantes permanecem vivas em terras anglo-saxãs, como Escócia, Irlanda e Austrália. Entre judeus também existe o hábito de eliminar todas as impurezas da casa antes do Pessach, a Páscoa judaica.

Meus amigos bicho-grilo brasileiros chamariam isso simplesmente de “renovação de energias.”

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Os melhores restaurantes de Teerã

Por Samy Adghirni
04/03/14 13:33

As atrações mais legais para turistas no Irã estão localizadas fora de Teerã. O diferencial de qualquer visita à república islâmica encontra-se em passeios na magnífica Isfahan, na curiosa Yazd ou na pacata Shiraz. Mas a capital é imbatível num quesito: comida.

Tarado por uma boa mesa que sou, faço questão de conduzir por um tour gastronômico amigos e parentes que passam por aqui. Modéstia às favas, montei ao longo destes quase dois anos e meio no Irã um roteiro para ninguém botar defeito. Podem perguntar aos meus sogros.

A primeira parada costuma ser o Gilaneh, no bairro onde moro. O lugar é especializado em comida do norte do Irã, incluindo peixes do mar Cáspio e iogurtes. Eu costumo pedir kebab (espeto) de carne ou frango marinado no molho de romã. O acompanhamento _básico e incontornável em qualquer restaurante iraniano_ é arroz. O do Gilaneh é branco e soltinho. Outra grande vantagem é o ambiente agradável, com mobília tradicional e sem música (piano ao vivo ou melodias lounge, tanto faz, enquanto como, detesto).

Ao lado do Gilaneh fica o Shandiz, opção incontornável para quem curte carne. O lugar, imenso salão amarelado sem janelas, incomoda de tão feio. Mas lá é servido o melhor mahichê (ovelha cozida no osso durante horas) de Teerã. Acompanha baghalí polô, arroz com favas e ervas verdes.

Ainda no quesito carne, já levei visitantes ao SPU, onde se come dentro de cabines de vidro de tamanhos variáveis (pequenas para casais, maiores para grupos de até oito) que ficam cravadas nas primeiras alturas das montanhas Alborz, ao norte de Teerã. O forte é a costela de carneiro, chamada de shish lik.

O recordista em opções é o Hani, perto do centro. Trata-se de um enorme self-service num abafado subsolo que fervilha de gente. Limpíssimo, mas desagradável. O bandejão tem todo tipo de comida persa – arroz de açafrão com frango, saladas, iogurtes, kebabs, cogumelos etc. Eu sempre vou na língua de boi, apesar da previsível cara de nojo dos meus acompanhantes. Tudo é fresquinho e feito na hora. Qualidade irretocável, com exceção das sobremesas, uma fartura de gelatinas fluorescentes e pudins com gosto de gesso. Aliás, no quesito doces os iranianos decepcionam. Esta é uma arte em que turcos, sírios e libaneses detêm a máxima maestria na região.

No centrão de Teerã encontra-se o Dizí Sara, onde a especialidade é um prato que se saboreia em duas etapas: uma sopa vermelha chamada áb-gusht (literalmente, água de carne) na qual se molham pedaços de pão; e uma maçaroca feita a partir de gordura de carneiro, feijão e tomate, entre outros ingredientes naturais. É uma das poucas comidas iranianas mais pesadas. Meu prato predileto em terras persas.

Meus visitantes sem frescura têm o privilégio de ser levados a um lugar especial, dica de um amigo local, cantinho que a maioria dos moradores de Teerã desconhece. No coração do velho bazar de Tajrish fica um pé sujo apertado e com aparência repulsiva, no qual você divide as parcas mesas com desconhecidos – geralmente pessoas que trabalham nas redondezas. A comida é espetacular, principalmente o kebab e os ensopados (de ervas verdes e de berinjela com lentilha). Apesar da higiene duvidosa, não conheço ninguém que tenha adoecido.

Teerã tem várias outras opções, inclusive restaurantes com cardápio internacional, mas aí já não é tão interessante para quem está só de passagem. Além disso, costumam ser pretensiosos e ruins, com honrosas exceções, como o Fellini (italiano) e o Monsoon (asiático fusion).

Preços dos restaurantes aqui listados vão de US$ 5 (pé sujo cujo nome admito não saber) até US$ 24 (super bandejão Hani) por pessoa.

Comer fora no Irã tem algumas chatices. Primeiro, o serviço não é lá essas coisas. Está certo que a gentileza às vezes compensa trapalhadas. Mas é imperdoável a constante pressão dos garçons para que se termine rápido para ceder lugar aos próximos clientes. Iranianos comem à velocidade da luz e não se incomodam. Eu, sim.

Outro problema para muitos ocidentais é a proibição de bebidas alcóolicas. “Que comida maravilhosa, pena que não se possa tomar um bom vinho para acompanhar”, costumam lamentar os visitantes.

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Tuntistun em Teerã

Por Samy Adghirni
25/02/14 13:47

Nos primórdios da minha carreira de repórter, vivia cobrindo eventos e artistas de música eletrônica. Era, além de um universo familiar e querido, um nicho de mercado para tentar me firmar no jornalismo. Uma década e meia depois, percebo com satisfação que o house e o techno chegaram, quem diria, até a terra dos aiatolás.

Discotecas e bares são, evidentemente, proibidos no Irã. Mas as festas clandestinas que pulsam em casas e apartamentos de Teerã têm DJs que cobram até USD 200 por apresentação – valor equivalente ao salário mensal de muita gente por aqui. Seus sets costumam misturar tuntistun europeu/americano com uma especie de pancadão local que geralmente tem ritmo frenético e vocais melodramáticos em farsi, na linha “você me abandonooooou, estou sozinhooooooo”. Uma espécie de eletrônico romântico que toca em oito entre cada dez táxis de Teerã e que não conquista ninguém fora do Irã.

Os DJs iranianos compram por aqui mesmo tudo que precisam. Uma loja perto da minha casa vende picapes CDJ, mixers, fone e amplificadores de primeira linha. Proibidas são as festas. A música em si, por ser muito mais focada no ritmo do que na letra, parece não incomodar tanto as autoridades morais.

Difícil achar um jovem nas grandes cidades iranianas que não saiba quem são David Guetta ou Tiësto (nada disso é minha praia, mas ok). Hits da badalada dupla francesa Daft Punk tocam a todo volume nas academias de musculação.

Música eletrônica mais sofisticada pode ser comprada em CDs piratas à venda em lojas ou na rua. Já tive a boa surprea de encontrar coisas que costumam agradar iniciados exigentes, como discos de Richie Hawtin e Luciano, figurões do minimal techno.

Um belo dia, entrei numa loja da Benetton de Teerã na qual estava tocando uma música do produtor brasileiro Gui Boratto. Som classudo que só.

Há alguns meses, a revista de comportamento “Viva”, publicação em inglês onipresente nos salões de beleza e cafés descolados de Teerã, apareceu com uma capa que anunciava: “Especial melhores DJs do mundo”. Era um dossiê de uma dezena de páginas reunindo perfis de superastros óbvios como Carl Cox e Avicii, mas também de artistas para lá de cult, como Carl Craig.

O Irã também exporta músicos do ramo. Uns atuam na vizinhança, mais especificamente na agitada noite de Dubai, como a DJ Nesa. Outros fazem sucesso no mundo, como Omid 16 B, baseado em Londres, e a dupla Deep Dish, formada por ilustres DJs iranianos radicados nos EUA: Ali Dubfire e Sharam (foto).

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A eleição de Rowhani mudou alguma coisa?

Por Samy Adghirni
18/02/14 17:50

Dias desses, um amigo correspondente e eu subíamos a rua Valiasr, que corta Teerã de sul a norte, após almoçarmos com uma fonte. Conversávamos sobre os rumos do Irã e debatíamos se havia mudança desde que Hasan Rowhani assumiu a Presidência, em agosto, com mil promessas de abertura externa e interna.

Na nossa frente caminhavam, também em direção ao norte, duas moças bem vestidas e com perfume carregado. Seus longos cabelos transbordavam por todos os lados para fora do véu, reduzido a um pano displicentemente jogado por cima da cabeça. Visual típico das mulheres de classe média liberal, que vivem testando os limites da lei islâmica à moda iraniana. Mostrar o cabelo, só dentro de casa, de acordo com o código moral e legal dos aiatolás. Por estarmos atrás delas, não víamos seus rostos. Mas era fácil deduzir que eram jovens.

Quando as moças se preparavam para atravessar a rua, um carro da polícia irrompeu da direita e parou na frente delas. Um agente, fardado e barbudo, saiu do veículo e ordenou que parassem. Uma van chegou em seguida, da qual saíram duas mulheres cobertas com chador preto, tipo de véu que cobre o corpo da cabeça aos pés, deixando apenas o rosto à mostra. Era uma equipe da temida polícia moral, incumbida de caçar roupas e comportamentos considerados impróprios aos olhos da lei. Como a mesma lei proíbe contato físico entre homens e mulheres sem parentesco, cabe a agentes femininas executar as detenções.

Para não chamar atenção, meu amigo e eu passamos reto. Algumas passadas depois, demos uma espiada por trás do ombro. As moças, ainda mais jovens do que imaginávamos, estavam paralisadas de medo. Havia um agravante: elas tinham o rosto copiosamente maquiado, algo também vetado em público.

De lá, certamente acabariam levadas para a delegacia, de onde só sairiam depois de alguém levar algum véu mais pudico. Casos assim dificilmente resultam em processos. Mas ser parado pela polícia moral significa perder o dia – e aguentar um estresse em dose cavalar.

A cena foi um balde de água fria na nossa animada especulação sobre abertura do Irã. Por alguns minutos, continuamos caminhando em silêncio.

Na semana passada, um colega de academia me contou a seguinte história, ocorrida numa noite recente em Teerã.

Um de seus amigos tinha tomado uns drinques numa festa (combinação também vetada pela lei) e dirigia de volta para casa quando se envolveu numa batida de carro – culpa do outro motorista, garante meu colega de academia. Ao chegar, a polícia sentiu cheiro de álcool e obrigou o rapaz a soprar no bafômetro. Resultado: ele deverá se apresentar ao tribunal e dificilmente escapará de umas chibatas nas costas.

Não faltam outros exemplos para mostrar que, enquanto as relações diplomáticas do Irã com o Ocidente se reaquecem numa fartura de sorrisos e interesses convergentes, quase nada mudou na agenda doméstica. E olha que Rowhani ganhou, em parte, graças ao apoio dos jovens que acreditaram na sua promessa de aliviar a pressão interna.

Os filtros na internet continuam. Acessar redes sociais, Google Brasil e até mesmo o site da Folha, só com programas antifiltros que tornam a navegação mais lenta. Um amigo carioca me mandou um link para assistir uma reportagem de TV na qual ele aparece. Video de dois, três minutos. Não consegui assistir.

Isso é irrelevante diante de outros problemas.

Presos políticos continuam atrás das grades ou sob restrição de circulação. Entre eles estão os líderes reformistas Mir Hossein Mousavi e Mehdi Karoubi, que contestaram sua derrota nas urnas para Ahmadinejad na eleição de 2009. O ex-presidente Mohammad Khatami (1997-2005) estava até meses atrás proibido de deixar o país. Não sei se ele recuperou esse direito.

Jornalistas ainda são incomodados. Mulheres e minorias continuam em desvantagem perante a lei.

Mais urgente: o número de execuções disparou nos últimos meses, alimentando todo tipo de especulação.

É aí que entra um esboço de explicação.

As restrições listadas competem à Justiça e às autoridades morais, sobre as quais Rowhani tem pouco controle.

O presidente, segundo a Constituição, cuida da economia, dos programas sociais e da infraestrutura. Na política externa, ele também tem margem de manobra. Mas no xadrez político iraniano, os poderosos inimigos de Rowhani, alguns dos quais vêm a ser justamente os ultraconservadores chefões do aparato securitário, usam e abusam de suas prerrogativas para tentar sabotá-lo. Há quem diga que a disparada das penas capitais é uma maneira de enviar ao mundo a mensagem de que o Irã não mudou nem mudará.

Claro, quem mais manda no país é o líder supremo, aiatolá Ali Khamenei. Khamenei apoia Rowhani na frente externa. Na política doméstica, ninguém sabe direito, mas o líder tem histórico conservador.

Resta a economia, que, na falta de uma melhora, ao menos parece ter se estabilizado. O dólar interrompeu sua queda e há meses se mantem no mesmo nível. Estudos apontam que a inflação arrefeceu. O consumo parece a todo vapor, e as empresas animam-se com o início do alívio às sanções, como parte de um acordo nuclear provisório com as potências. Mais punições serão levantadas se houver um acordo definitivo.

Simpatizantes de Rowhani não perdem esperança. Eles dizem que o presidente e seus ministros estão apostando todas as fichas nessa reaproximação com o Ocidente por um bom motivo. Se a coisa continuar andando e a economia melhorar, Rowhani conseguirá, segundo eles, capital político e apoio das massas para brigar por mais liberdades civis, políticas e individuais.

Obs: Alguns leitores escreveram perguntando porque já não encontram “Um brasileiro no Irã” na lista dos blogs da Folha. Este espaço migrou para a categoria de colunas do jornal.

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