A polêmica do beijo em Cannes
20/05/14 16:11* ver atualização ao final do texto
O assunto da vez nas rodinhas de artistas e intelectuais em Teerã é a polêmica deflagrada pelo beijinho que a mais famosa estrela do cinema iraniana deu no rosto do chefão do festival de Cannes no ultimo domingo.
Ao se apresentar formalmente no evento, sob o glorioso título de membro do júri, a atriz iraniana Leila Hatami, 41, protagonista do premiadíssimo “A Separação” (2011), estendeu a mão ao presidente do festival, o francês Gilles Jacob, 83, e o cumprimentou com um beijinho em cada bochecha. Uma cena tão banal que não mereceria sequer ser relatada.
Mas, no Irã, virou assunto de governo.
Afinal, a interpretação local da sharia (lei islâmica) não somente obriga mulheres a cobrir cabelo e formas do corpo para sair às ruas como também as proíbe de qualquer contato físico com homens que não sejam da mesma família.
O vice-ministro da Cultura, Hossein Noushabadi, foi a público para enviar furioso alerta à atriz.
“Espero que aquelas que atendem arenas internacionais na condição de mulheres iranianas tenham cuidado com a castidade e a dignidade para que a imagem de mulher iraniana não seja manchada aos olhos do mundo”, disse Noushabadi.
“Se elas respeitarem as normas islâmicas, a cultura e as crenças do Irã, é desejável que as celebridades viajem ao exterior. Mas se sua presença ignora valores sociais e critérios éticos, isso é inaceitável para a nação iraniana.”
“Nação iraniana” talvez seja uma expressão exagerada, já que boa parte dos iranianos que conheço (vários meios, várias idades) não se incomodam nem um pouco com o que faz uma atriz no exterior.
“O que há de errado em dar beijinho no rosto? Ainda mais num senhor de 83 anos!”, me disse, irritada, a médica A.J, 62.
Entre os revoltados também estava o Clube dos Jovens Jornalistas, organização ligada ao regime e cuja sede fica pertinho de onde moro. O clube criticou a atriz por ter estendido a mão a Gilles Jacob, um veterano cinéfilo que é misto de ensaísta, crítico e diretor.
Outros acusaram Leila de não ter se coberto o suficiente – ela usava apenas um lenço sobre o cabelo, deixando seu pescoço à mostra, algo também vetado pelo Estado teocrático em vigor desde 1979.
A cada dia, multidões de iranianas que vivem ou passeam no exterior dão de ombros às proibições e fazem o que bem entendem fora da terra natal. O problema de Leila Hatami é seu status de figura pública. Ela está – literalmente – sob os holofotes do cinema, uma das coisas mais globalizadas que existem.
Os ataques contra a atriz me parecem crueis e injustos. Quem critica provavelmente nunca conversou com ela, como eu tive a sorte de fazer, durante um jantar na casa de amigos em comum, no ano passado.
Se os críticos a conhecessem pessoalmente, saberiam que ela declinou vários convites para atuar no Ocidente, inclusive em Hollywood, por recusar-se a atuar sem véu.
Não que ela seja religiosa. Longe disso. Mas Leila Hatami sempre priorizou o Irã – na vida e no trabalho. Ela cresceu e estudou na Europa e fala fluentemente francês, inglês e alemão. Mas ela preferiu instalar-se em Teerã. Leila mora no centro da capital, com o marido, o excelente ator Ali Mosaffa.
Ambos poderiam ter apostado em carreiras no Ocidente, mas seu ganha pão é o cinema iraniano – o das massas locais, não aquele que é exaltado no circuito cult de Nova York a Berlim. “A Separação”, que faturou até o Oscar, em 2012, é uma exceção na sua carreira. Deem uma olhada currículo de Leila e me digam quantos dos filmes em que ela atuou vocês conhecem.
“Minha vida e minha família estão no Irã. Não pretendo mudar isso”, me disse Leila, uma mulher doce, apesar dos ares de diva.
Gritaria à parte, minha aposta é de que ela poderá voltar tranquilamente para Teerã. Seu “pecado” foi leve, ao contrário do que fez outra beldade do cinema iraniano, Golshifteh Farahani, 30, parceira de Leonardo di Caprio em “Rede de Mentiras” (2008). Há dois anos, Golshifteh pousou nua para a revista francesa “Madame Figaro” em protesto contra a condição feminina no Irã. O regime alertou a atriz a nunca mais pisar no país.
* Após dias de uma polêmica que gerou até pedidos para que recebesse chibatadas na volta ao Irã, Leila Hatami pediu desculpas por ter “ferido o sentimento de algumas pessoas” e alegou ter sido pega de surpresa pela abordagem de Gilles Jacob. “Ele é como um avô para mim”, afirmou a atriz.
Parabéns pelo artigo e pelas interlocuções esclarecedoras aos seus leitores. Tá bom assim?
Obrigado, Izabel.
Samy,
Por questões pessoais, que não posso detalhar, me tornei uma leitora assídua de suas colunas.
Admiro seu trabalho jornalístico, mas com uma observação a mais. Um jornalista educador? Ou seria um educador com a arte jornalística?.
Não deixe que eles se separem. Conselho que não me pediu. Então, falei.
Jesus, quanta ignorância. Alguém logo vai dizer, oras é a cultura deles, devemos respeitar. Sim, devemos respeitar culturas diversas, assim como os iranianos devem respeitar O DIREITO DE ESCOLHA de cada pessoa, de adotar ou não o fundamentalismo islâmico. Ninguém pode ser obrigado a se vestir ou se comportar de determinado jeito porque “os guardiães” querem! Francamente, tratam as mulheres como um objeto desprovido de qualquer sentimento ou vontade.
Vi na imprensa que o ex presidente Rafsangani não pode concorrer a outro mandado, pois foi inabilitado pelo Conselho de Guardiães.
Teria sido por ter antecipado que faria reformas. O que propunha?
Qual a opinião da população sobre esta triagem feita pelo conselho de guaridiães a canditados? Eles não deveriam ser peneirados nas urnas?
Ulisses, o Conselho de Guardiães vetou a candidatura de Rafsanjani à Presidência em 2013, mas isso não significa que esteja barrado da política. Pelo contrário. Ele ainda é chefe do Conselho de Discernimento e mantem forte influência entre centristas e reformistas. Além disso, é um multibilionário. Ele foi barrado da corrida à Presidência por ser detestado pelos ultraconservadores, que o enxergam como pró-Ocidente e liberal demais no plano econômico. Muita gente se frustrou, mas isso acabou favorecendo Rowhani, que recebeu votos de amplos segmentos – de religiosos a reformistas, passando por simpatizantes de Rafsanjani. O Conselho de Guardiães da revolução é um órgão poderoso e intocável. Todas as tentativas de reformá-lo fracassaram.
Se ele é multimilionário, já era rico antes da revolução?
Caso ele tivesse ganho as eleições teria mais chances de realizações ou seria mais ousado que o atual presidente Rowhani?
Li que ele perdeu as eleições em 2005 para Armadinehad.
Sendo ele considerado um progressista, significa que Armadenejad não se mostrou como conservador na campanha, ou foi o outro lado do Irã que se manifestou?
Sim, Rafsanjani já era rico antes da revolução, mas ele ficou ainda mais rico durante a guerra Irã-Iraque, graças ao comércio de armas, segundo historiadores. O establishment do regime jamais o deixaria o ganhar. A divisão é mais complexa do que conservadores x reformistas. Ahmadinejad ganhou a eleição de 2005 graças a um discurso populista e um jeitão “gente como a gente” que conquistou muito apoio nos meios rurais e nas cidades do interior. Até hoje não há provas contundentes de que a eleição de 2009 foi fraudada.
Estas manifestações no Facebook MY STEALTHY FREEDOM, nas quais mulheres iranianas posam sem véu, têm repercussão no Irã?
Há discussões em torno de se deixar o véu de ser uma obrigação legal, para ser uma escolha individual?
Cacique, este é um protesto bastante marginal, iniciado por alguém que mora na Europa e com repercussão mínima por aqui. Não existe nem cabe discussão sobre o uso obrigatório do véu. É o símbolo máximo e absoluto da autoridade moral do Estado. Diz um amigo diplomata: “Se um dia o regime ficar em apuros, o véu será o último símbolo ao qual se agarrará.” Tendo a concordar. E, como eu sempre disse aqui, nem as mulheres enxergam isso como tema prioritário. Claro, incomoda a maior parte delas, mas o tema fica atrás de outras questões mais urgentes na lista de prioridades, como a crise econômica, a situação política, a liberdade de expressão etc.
Para nós ocidentais é impensável essa intromissão do estado na vida privada: um beijo vira questão de estado!! Uma dancinha na internet vira caso de polícia! Realmente bem diferente da visão individualista ocidental
Fernando, o problema não é Ocidente x Oriente. O problema é a presença de elementos ultraconservadores no Estado. Como escrevi no texto, a maiora dos iranianos não se incomodaram com isso.
Samy, acabei de ler que os jovens que aparecem dançando no vídeo (seu post anterior) foram presos! Parece que os clérigos ficaram irados. A reportagem dizia que os jovens já foram soltos mas terão que pagar uma multa de aproxidamente 30 mil reais cada um, procede?
http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/reuters/2014/05/21/iranianos-presos-por-aparecerem-em-video-cantando-sao-libertados.htm
Samy, acabei de ver sua reportagem na Folha sobre o tema. Aliás, bem mais completa e detalhada do que a da Reuters. Já está respondido. Obrigado
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/167036-parodia-de-clipe-leva-seis-a-prisao-no-ira.shtml
DIREITO DE REUNIÃO.
A Constituição Brasileira, assegura o direito de reunião. No art. 5º, XVI, consta:
“XVI – todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente;”
Assim, aqui no Brasil as pessoas podem se reunir, por exemplo, tanto para pedir a liberação da maconha, como o contrário. Ou seja, mais repressão ao comércio de entorpecentes.
No Irã tal direito é assegurado à população?
Em tese, o direito a manifestação é assegurado, mas as autoridades estão traumatizadas pelos megaprotestos contra supostas fraudes na eleição presidencial de 2009 e, desde então, vêm tolerando apenas manifestação por parte dos conservadores.
Credo, fui casada com iraniano por 6 anos, graças aos deuses deixei isso tudo no passado, enterrado para sempre! Não pude suportar a eterna vigilância Big Brother dos colegas de trabalho e toda sociedade iraniana ao nosso redor. Um dia, no metrô, percebemos que estávamos sob a mira de um funcionário da embaixada, onde meu marido trabalhava (isso foi na Europa, “extremo ocidente”). No dia seguinte, todos sabiam que ele tinha sido visto andando com uma mulher em “trajes indecentes”. E eu estava com uma saia comprida, blusa comprida de gola alta. Mas as mangas da blusa iam “só” até o cotovelo. Pouco importava que eu nunca fui muçulmana nem que vivíamos numa capital ocidental. Numa visita ao Irã, fui atacada na rua por usar um hejab simples, tive que pedi um tchador emprestado a uma amiga (isso tem pouco mais de 10 anos…). Voltei a morar no BR, passei a dar tanto valor à nossa liberdade, pouco me importa que me digam que a exploração das mulheres e a objetificação feminina no ocidente são similares à escravidão porque não são. O Irã estava num bom caminho de tolerância e abertura mas uma pena tudo ter mudado.
Setareh ou Samy.
Entre as mulheres do Irã, como é a conversa sobre as proibições.
Rejeitam expressamente, mas toleram e submetem por questões de sobrevivência?
Ou tem falar entre si sobre o assunto, temerosas de mulheres favoráveis ao regime?
Yara, me parece que a situação ficou mais leve desde que a Setareh rompeu laços com o Irã. A repressão pode ser implacável, mas a palavra de rua, em família, no comércio, é razoavelmente livre. Quem se expõe a prisão ou perseguição é quem milita, faz campanha, coordena protestos. Sobre a situação da mulher, complexa e cheia de nuances, me atrevo a sugerir a leitura desta reportagem que publiquei em março na Folha.
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2014/03/1432402-realidade-velada.shtml
Olá, Yara, Samy
Sinceramente não sei se melhorou ou piorou. Realmente não sei da situação recente, mas a recente prisão dos infelizes que dançaram com a música “Happy” me diz muita coisa…. Quando ainda convivia com iranianos, cansei de ouvir histórias de pessoas presas por “crimes morais”, por exemplo uma jovem que foi levada para a prisão de Evin porque andou num carro do colega da faculdade, com quem não era casada. A sensação que eu tinha todos os dias é de viver num regime estilo “1984”, mas com cabeças cobertas. Eu poderia escrever páginas e mais páginas, mas acho que acabaria caindo num lugar-comum. A situação das mulheres é mesmo complexa, contraditória, pois assim como no Brasil, há muitas mulheres machistas, é difícil também falar das “mulheres iranianas”, pois elas não são um bloco único; há as mais “rebeldes”, as mais “conformistas”, as mais religiosas e por aí vai. Vou ler o artigo do Samy. Abraços.
Setareh, parabéns pelo seu depoimento!
Não a conhecia, tentarei acompanhar mais seu trabalho de agora em diante, mas me diga: O cinema iraniano é grande? Bons filmes ? (espero que não seja o estilo de Bollywood que reina no Paquistão e minha esposa me obriga a ver hahaha) A população gosta do cinema local?
Eu admito que conheço pouco do cinema deles (Irã), o último filme que vi foi o bom “O Balão Branco” de Jafar Panah.
Ahhhhh aceito sugestões dos melhores clássicos do cinema local, se não for pedir demais, Samy.
Heitor, o Irã tem uma das escolas de cinema mais conceituadas do mundo. São filmes delicados e instigantes, sempre muito humanos. Nada a ver com Bollywood. Dito isso, é evidente que o Irã também produz pastelões comerciais. Veja “A Separação”, que ganhou o Oscar 2012, “Sobre Elly”, ambos com Leila Hatami. Descubra ainda outras obras de Jafar Panahi e Abbas Kiarostami.