A festa da Revolução Islâmica
11/02/14 16:04Acabo de voltar da praça Azadi, a sudoeste de Teerã, onde acompanhei, pelo terceiro ano seguido, a principal celebração ideológica do regime iraniano: o dia da Revolução Islâmica, que sempre reúne multidões. Faz 35 anos que o aiatolá Khomeini proclamou vitória sobre a ditadura do xá Mohammad Reza Pahlavi.
Não é propriamente agradável passar horas em pé no curral da imprensa e sob um frio de lascar, acompanhando mil discursos à glória do regime enquanto não chega a fala do presidente, ápice da festa. Mesmo assim, gosto de cobrir o 11 de fevereiro, ou 22 de Bahman, como é conhecido no calendário persa. Costuma ser um dos melhores termômetros da situação política no Irã. Além de sempre proporcionar momentos curiosos, como quando helicópteros militares largaram uma chuva de pétalas de rosas sobre a multidão, em 2012.
Aos olhos do leigo, o dia da revolução na praça Azadi não passa de um amontoado de clichês mostrando um regime iraniano incendiário e hostil. O grito de “Morte aos EUA” é repetido incontáveis vezes pelos altos falantes e pelo público. Há cartazes com agressivas mensagens em inglês contra o governo americano. Bandeiras dos EUA e Israel são queimadas. Policiais com roupa militar parecem multiplicar-se por toda parte. Quase todos têm barba rala e cara de mau. Agentes de inteligência também são fáceis de identificar, com seus ternos sem gravata e walkie talkie na mão. Há, ainda, a famosa Guarda Revolucionária, com farda verde caqui. O rosto grave do aiatolá Khomeini, fundador do Estado islâmico iraniano, é onipresente. O programa nuclear ocupa papel central em todos os discursos, apesar de martelarem que as intenções são pacíficas.
Mas, basta estar minimamente familiarizado com a vida sob comando dos aiatolás, para perceber que o tom dessas celebrações muda a cada ano.
Em 2012, o discurso do então presidente Mahmoud Ahmadinejad foi duríssimo contra EUA e Israel. Semanas antes da festa nacional, o quarto cientista nuclear em dois anos havia sido assassinado em atentado em plena luz do dia, presumivelmente por Israel. O rosto sorridente do rapaz barbudo dominava os cartazes erguidos sobre o mar de gente. Quem fabrica e distribui cartazes e faixas na chegada do povo à praça Azadi são organizações ligadas ao aparato ideológico – portanto, bastante conservadoras. Além disso, aquela época coincidiu com o pico de ameaça, real ou artificial, de um iminente ataque por parte de Israel.
No ano passado, Ahmadinejad aproveitou uma de suas últimas falas como presidente para tentar deixar imagem de estadista. Seu discurso foi cheio de amor em direção ao Ocidente e aos inimigos internos. Mas, naqueles dias, Ahmadinejad travava arrojada disputa ideológica com o líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, capo di tutti capi no sistema iraniano. Resultado: os cartazes no público eram dominados por mensagens de apoio incondicional a Khamenei.
A coisa ficou ainda mais complexa em 2014. O presidente agora é Hasan Rowhani, que se elegeu com discurso conciliador e promessas de abertura interna e externa. A base de apoio a Rowhani é ampla, mas os ultraconservadores não vão com a cara dele. Acham que ele cede demais nas negociações nucleares e temem que sua reaproximação com o Ocidente seja uma capitulação ou o início de um retorno à dominação do Irã pelos EUA, como na era Pahlavi. Portanto, não é de se estranhar que a festa da revolução, seara dos ultras, tenha sido muito mais vazia neste ano.
Rowhani teve de usar toda sua astúcia retórica para discursar defendendo as negociações nucleares sem contrariar os radicais donos da festa. Diante dele, uma floresta de cartazes entre os mais duros que já vi. Havia montagens com chutes na cara de Obama e da negociadora americana, Wendy Sherman, além de ameaças diretas a Israel, algo que Teerã costuma evitar fazer frontalmente, preferindo parábolas, na linha “deveria ser varrido do mapa.”
A maior novidade, aos meus olhos, foi uma montagem mostrando os três principais líderes reformistas (os ex-candidatos à Presidência Mir Hossein Mousavi e Mehdi Karoubi, hoje em prisão domiciliar; e o ex-presidente Mohammad Khatami) sendo enforcados. O título do cartaz dizia: “O povo exige que vocês sejam julgados [pelos protestos contra supostas fraudes na eleição de 2009].”
Para além das considerações políticas, a festa nacional é um grande evento com gente de todo tipo, que classifico, com fins assumidos de simplificação, em três categorias.
Primeiro, aqueles, incluindo os mais velhos, que encaram o comparecimento ao aniversário da revolução como obrigação religiosa. Afinal, o aiatolá Khamenei tem status de santidade e sua missão, segundo algumas interpretações, é cuidar dos fieis antes da volta do Mehdi, o messias na visão xiita. Tenho um amigo jornalista, viajado e culto, que acredita piamente nos valores da Revolução Islâmica.
Segundo, funcionários públicos, militares e estudantes, levados de ônibus até a praça Azadi.
Por fim, meios populares que, simpatizando às lágrimas com a revolução ou sem tanto apego, encaram aquilo tudo como uma grande festa. Famílias inteiras aparecem. Fazem piqueniques, jogam cartas ou aproveitam os diversos serviços gratuitos oferecidos na retaguarda das comemorações na praça Azadi: teste de pressão sanguínea; oficina de brinquedos para crianças; distribuição de chá etc.
Vale ressaltar, porém, que muitos iranianos, principalmente em meios urbanos e de classe média, não dão a mínima para o aniversário da revolução.
Mas quem vai encontra de tudo no agito do aniversário da revolução. Gente vendendo balões, camisetas, ursinhos de pelúcia… O governo promove mutirão de dentistas. A Prefeitura recolhe impressões dos participantes sobre a festa. A milícia basij, que presta todo tipo de serviço ao regime, desde aulas de reforço escolar para crianças carentes até uma mãozinha contra manifestantes, tem um estande para recrutar voluntários. Nesta terça-feira havia até um ponto de “alerta” à população sobre empresas supostamente cúmplices da ocupação israelense dos territórios palestinos: L’Oréal, Nestlé, Timberland, Coca-Cola… Pera lá, Coca Cola? A empresa tem uma fábrica enorme no Irã!
A cena mais interessante de 2014 ocorreu às margens da muvuca central e me foi relatada por uma testemunha. Um grupo de pessoas começou a gritar o clássico “Morte aos EUA”. Alguém se aproximou e pediu: “gente, chega dessa conversa amarga, deixa isso para lá, vamos superar” . O grupo parou na hora.
Samy, me responda uma coisa, o aiatola Khomeini é persa ou azeri?
Boa pergunta, Vinicios. O líder supremo não é persa. Etnicamente, ele é turco-azeri.
Vinicios, acabo de perceber que respondi sobre a etnia do aiatolá Khamenei, líder supremo atual. Mas o anterior, aiatolá Khomeini, era persa, sim.
Me desculpe mudar de assunto totalmente, mas gostaria de saber se esse documentário é verdadeiro?
O governo do Irã realmente permite o transexual?
https://www.youtube.com/watch?v=YoV0QsnE5rM
Abraço.
Sim, Heitor, já publiquei longa reportagem a esse respeito na versão impressa da Folha.
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/88364-operacao-antigay.shtml
Uauuu que lindo, concordo que Deus é amor.
Um símbolo da Revolução Islâmica são as regras impostas a mulheres.
Antes, conforme tenha conhecimento, estas restrições de vestuário, comportamentos e de direitos não existia.
Esta época não está represada no inconscientes coletivo? Tal qual as religiões nos países que foram comunistas?
Bastou o fim da repressão, e o sentimento retornou.
Então, não há demanda por tirar o véu e usar saias em público?
Será possível conviverem aí no Irã pessoas que se vestem e comportam como religiosos ortodoxos, e outros que não.
Qual seja, pessoas que se vestem e comportam como ocidentais, predominando a escolha individual?
Várias coisas, Ulisses. No Irã o modo de se vestir é amplamente ocidentalizado. A maioria dos véus é um simples lenço sobre a cabeça. Mesmo no caso do chador, que cobre o corpo, usa-se por baixo roupas muito parecidas com as da Europa. O véu é mais uma imposição para cobrir o cabelo do que uma roupa tradicional. Entre os homens, somente em aldeias remotas pessoas não usam roupas como a sua e a minha. Veja fotos das ruas de Teerã, e notará que, com exceção do véu, poderia ser um lugar qualquer do Ocidente, com jeans, tênis, camisa etc. Claro que o véu incomoda muitas mulheres, mas cito aqui a frase exata que me foi dita por uma empresária iraniana: “me irrita quando vou à Europa e as pessoas me olham com cara de coitadinha por ter de usar o véu. Gostar, não gosto. Se pudesse, andaria sem. Mas está longe de ser nossa preocupação mais importante. É muito mais uma obsessão do Ocidente, que não ecoa tanto por aqui. Somos um país muçulmano, e o véu sempre fez parte da nossa vida. Problemas muito mais sérios são o desemprego, a repressão contra reformistas, a arbitrariedade da Justiça, as restrições à imprensa etc.” Você cita a época do xá. Pois bem, nos anos 1970, a Polícia perseguia quem ostentava símbolos religiosos. O resultado é que muita gente se tornou ainda mais conservadora. Mulheres deixavam de ir à universidade por não poder usar o véu. E isso só aumentou o ódio contra a monarquia. Não se pode interpretar o Irã sob lentes ocidentais. É outra realidade. O xá se perdeu por causa de seu projeto fracassado de querer transformar iranianos em britânicos ou franceses.
Samy, continuando sua manifestação sobre o temor e a negativa por uma nova revolução.
Notório que o regime se mantém mais pela força do que pela legitimidade.
Muitos iranianos estão no exterior, os poderes eleitos não têm o poder máximo, e não há partidos políticos.
Seria possível uma mudança no rumo da democracia, pacificamente, através do voto apenas?
Ou seja, o governo soltar as amarras da sociedade consensualmente?
Ulisses, a questão é mais complexa do que parece. O regime não se mantem só pela força. Não se esqueça de que se trata de um país razoavelmente rico, com muita gente se beneficiando economicamente do status quo e camadas mais pobres com acesso a subsídios e outros tipos de ajuda. Além disso, simpatizantes sinceros existem, e em número maior do que o Ocidente gostaria. O regime já começou a melhorar sua relação com as potências ocidentais e, talvez, em algum momento, alivie as coisas no plano interno. Mas não vejo nenhuma possibilidade de reformas estruturais num futuro próximo. Além disso, qualquer solução por consenso seria impossível num país tão grande, tão populoso e com tantas clivagens – religiosas, políticas, culturais, econômicas e étnicas.
Samy, sobre sua coluna (ou blog) tenho uma reclamação: poderia ser diário!
Sempre acesso a internete e lanço seu nome, procurando novidade.
Muito bom, uma das coisas boas que vi ultimamente.
Uma eleição legislativa, com livres candidaturas, sem a ‘triagem’ da elite teocrática, está no horizonte próximo?
E mais, com a participação dos iranianos que vivem no exterior?
Ulisses, a próxima eleição parlamentar será em 2015. Não está claro se haverá mudanças nas regras. Iranianos no exterior votam em eleições presidenciais.
Novamente eu voltei aqui para elogiar sua matéria! Fantástica! Tenho uma dúvida
o quê acontece com o ex presidente Mahmoud Ahmadinejad? Continua atuando na esfera politica?
Abraço!
Jefferson, Ahmadinejad sumiu da vida pública desde sua cena de saída. Alguns de seus aliados enfrentam processo por corrupção e isso pode atingi-lo. O ex-presidente tem tantos inimigos que é melhor ele se manter discreto. Até agora, sua única missão de conhecimento público é a construção de uma “Universidade Internacional.”
Você já teve conseguiu conversar com pessoas na faixa dos 60 anos de idade, que poderiam fazer um paralelo entre a vida na época do Xá e agora.
Será que você pode fazer um balanço dos prós e contras da revolução islâmica? Ou ao comentar isto, se disser que há algo contra, poderá ter problemas em seu trabalho?
Júnior, sua pergunta é pertinente e mereceria uma dissertação! Resumidamente, há todo tipo de opinião, inclusive nostálgicos da monarquia, raros. Mas mesmo quem tem críticas ao regime não necessariamente quer nova revolução, um processo sempre longo e traumático. As pessoas, mais receosas ainda com os acontecimentos na Síria e no Egito, preferem achar brechas no status quo para viver. Goste-se ou não, a teocracia iraniana provê estabilidade, serviços básicos decentes e níveis corretos de desenvolvimento social elogiados pela ONU. Há proporção relevante de descontentes, sem dúvida, mas me parece que o Estado e a população acharam uma maneira de se acomodar um ao outro.
De fato, uma excelente cobertura.
Prezado Samy Adghirni, existe algum tipo de turismo na Revolução Islâmica?
Carlos, você se refere a iranianos de outras cidades indo a Teerã para os festejos ou a estrangeiros fazendo turismo no Irã? Nos dois casos, a resposta é sim. Fiz um caderno inteiro de Turismo no Irã, publicado na versão impressa da Folha. Segue texto principal, com links para as demais matéria do pacote.
http://www1.folha.uol.com.br/turismo/1094581-turismo-no-ira-encontra-fe-cultura-e-historia.shtml
Samy, boa noite. Escrevo de Recife, Brasil. Como leitor da Folha de São Paulo, acabei de conhecer seus relatos a partir de Teerã. Gosto muito de suas considerações ponderadas. Você tem viajado por outras cidades do Irã? Pergunto isso porque o pouco que li de seus escritos, você sempre fala de Teerã. Nos brinde com relatos sobre montanhas, lagos, etc, no que for possível. Parabéns pela cobertura da festa da Revolução Islâmica.
Sergio, já andei muito pelo interior, sim. Dê uma olhadas em posts mais antigos, principalmente os de 2012.
Muito bom!
Se estivesse em Teera certamente iria a Praca Azadi. Dever ser intessantissimo observar as pessoas nesse evento que e’ tao importante no calendario iraniano.
Mas vale lembrar que algumas parcelas da populacao nao estao interessadas – alguns sentem ate ojeriza – pelas celebracoes do aniversario da revolucao. Uma amiga tehrani fez questao de passar longe da praca na terca e preferiu ir ver um filme do Fajr Festival.
PS: Samy, teremos algum post do Festival Fajr? O cinema iraniano e’ tao famoso no mundo e tambem no Brasil, seria legal conhecer um pouco mais do seu principal festival. Que tipos de filmes sao exibidos nele? Ha algum tipo de censura? Quais os temas mais comuns? Quais as obras preferidas do juri?
PS: Samy,
Less than 15% of islam population is in the middle east region. To say Iran represents Islam…or that the powerful people there represent what islam is is naive. Is like saying Dilma really represents every brasilian citizen interest, which is not true. Or saying that if you see Italy you KNOW what catholicism is, which is bullshit. Not sure why would this writer take a side….?
Andre, nobody here is saying that Iran represents Islam.
Adorei a abordagem da festa. sem tendencias nem esteriótipos, simplesmente narrou o que havia la. Parabéns pelo texto.
Ursinhos de polícia? Erro de digitação ou isso é mesmo vendido em Teerã?
Admiro demais seu trabalho, Samy. Te acompanho sempre!
Cordiais saudações…
Corrigido, Diniz. Obrigado.
Muito legal Samy! Parabéns pela matéria e pela cobertura!