Zarif, o chanceler que virou herói
27/11/13 16:37A decisão estratégica de arriscar um acordo preliminar com as potências para tentar pôr fim a dez anos de impasse sobre o programa nuclear partiu do líder supremo, aiatolá Ali Khamenei, máxima autoridade do Irã. Mas quem executou, seduziu e barganhou pelo lado iraniano foi Mohammad Javad Zarif, o ministro das Relações Exteriores e negociador atômico mais popular na história da república islâmica.
Na volta a Teerã, após quatro dias e quatro noites de intensa negociação em Genebra, a comitiva de Zarif foi recebida por centenas de pessoas em êxtase no aeroporto Mehrabad. Alguns choravam, outros gritavam palavras de agradecimento ao ministro pela perspectiva de ver um alívio, ainda que modesto, das sanções que empobrecem o país e aumentam o desemprego. Parecia a torcida do meu Colorado recebendo o time após a conquista do Mundial de clubes da FIFA contra o Barcelona, em 2006.
Zarif, por ter morado muito tempo nos EUA, tem grande capacidade de empatia com americanos, e isso foi fundamental para abrir as primeiras rodadas de diálogo bilateral público e direto entre Teerã e Washington em 34 anos de inimizade. Reiteradas conversas olho no olho entre Zarif e seu colega americano, John Kerry, foram fundamentais para acelerar conversas nucleares nos últimos meses.
É curioso constatar como a trajetória do ministro sempre esteve atrelada aos EUA.
Nascido numa família religiosa de Teerã, o xiita Zarif foi parar em terras ianques em 1979 para fugir da perseguição anti-islâmica em vigor sob a então ditadura secular do xá Mohammad Reza Pahlavi. Instalado em São Francisco, integrou o curso de Relações Internacionais da universidade local. Em 1979, quando a revolução derrubou a monarquia em Teerã, Zarif bateu à porta da missão iraniana na ONU, em Nova York, em busca de trabalho. Uma de suas primeiras missões foi ajudar a fechar o consulado iraniano em São Francisco após a ruptura entre Irã e EUA, decorrente do sequestro da embaixada americana em Teerã.
Na década de 1980, Zarif alternou funções junto à equipe do Irã na ONU com estudos e pesquisa acadêmica. Em 1988, obteve doutorado em Direito Internacional pela Escola Josef Korbel de Estudos Internacionais, uma das melhores do mundo, segundo a revista Foreign Policy. Entre ex-alunos notáveis encontram-se também a ex-secretária de Estado Condoleezza Rice e o ex-chefe do Estado maior das Forças Armadas americanas, general George W. Casey Jr.
A carreira diplomática de Zarif decolou nos anos 1990, acarretada em grande parte pela sua capacidade de articular contatos secretos com os americanos sempre que necessário. Em 1994, o ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger o teria presenteado com uma cópia autografada do livro “Diplomacy”. A dedicatória dizia: “To Zarif, my respectful enemy.” O interessado nunca desmentiu a história.
Zarif assumiu o comando da representação do Irã na ONU em 2002, o mesmo ano que dissidentes iranianos ligados a um grupo terrorista revelaram ao mundo a existência de uma face secreta do programa nuclear de Teerã. Na época, o negociador chefe do Irã era Hasan Rowhani, que se tornaria presidente onze anos depois. Para evitar nova guerra no Oriente Médio na esteira do 11 de Setembro, Zarif e Rowhani costuraram, em 2003, a famosa “Grande Barganha”, pela qual Teerã aceitava até o princípio de um dia reconhecer Israel em troca do fim das sanções e da promessa de não ser atacado. George W. Bush esnobou a oferta sob pretexto de que países que havia incluído em seu “eixo do mal” não mereciam confiança. A escalada pavimentou o caminho para a eleição do polêmico Mahmoud Ahmadinejad na eleição iraniana de 2005. Alegando incompatibilidade com o estilo truculento do novo presidente, Zarif reunicou ao cargo de embaixador da ONU em 2007 e passou a dedicar-se às aulas de Relações Internacionais na Universidade de Teerã.
A eleição do amigo Rowhani, em junho passado, resgatou do ostracismo aquele que interlocutores ocidentais consideram um dos diplomatas iranianos mais preparados.
“Zarif é um craque das conversas multilaterais. Ele conhece tão bem a ONU e passou tanto lá que ele deve ter até hoje um par de pantufas esperando por ele na porta do prédio, em Nova York”, me contou, brincando, um diplomata europeu.
Pessoas com acesso a Zarif me descreveram um sujeito sério e introvertido “até demais” no trato pessoal. Já ouvi que o ministro não faz a menor questão de ser simpático com gente de fora do circuito diplomático. Bem diferente do personagem afável e sorridente que posa ao lado dos negociadores de EUA, Rússia, China, Reino Unido, França e Alemanha.
Zarif fala inglês perfeitamente e, com suas frequentes postagens no Twitter (83 mil seguidores) e Facebook (733 mil curtidas), mostra dominar recrusos da comunicação moderna. “A arte do diplomata é esconder toda turbulência por trás de um sorriso”, tuitou o ministro após o acordo, no último fim de semana.
Mas o ministro disse, em sua autobiografia “Mr. Ambassador”, que jamais sentiu-se culturalmente próximo do Ocidente.
“Morei 30 anos no EUA, mas sempre preservei minha cultura e costumes islâmicos e iranianos. Até hoje o estilo de vida ocidental me soa estranho. […] Você não pode beber alcool, não pode comer carne ilícita [não preparada do modo muçulmano] e não aperta mão de mulher. É por isso que um diplomata iraniano sempre sentirá que o Ocidente não é onde deveria estar.”
Isso não basta para acalmar os linha dura da teocracia iraniana, que detestam a desenvoltura de Zarif com ocidentais e o acusam de ter cedido demais em Genebra. O acordo determina que, pelos próximos seis meses, o Irã deverá reduzir o grau de enriquecimento de urânio, suspender planos de expansão das centrais nucleares e permitir monitoramento mais intrusivo por parte dos inspetores da ONU. Em troca, Teerã receberá um alívio modesto das sanções que assolam o dia a dia do população e recuperará parte dos fundos bloqueados em bancos no exterior.
Apesar de o líder supremo ter expressado publicamente apoio à equipe de negociadores de Zarif, setores ultraconservadores têm saudade de Saeed Jalili, que era negociador do Irã antes do governo Rowhani. Jalili se recusava a falar inglês e aproveitava cada encontro com as potências para lembrar o mal que o Ocidente já fez aos iranianos: ocupação do país, golpe de Estado em 1953, apoio ao regime do xá, apoio às tropas do Iraque que invadiram o Irã etc.
Sem querer, o pessoal “do contra” acabou fortalecendo ainda mais a empatia de Zarif com seus interlocutores.
Em artigo na imprensa local, um editorialista extremista divulgou que o ministro confidenciou a deputados que havia sido contrário à conversa telefônica entre Obama e Rowhani, ocorrida às margens da Assembleia Geral da ONU, em setembro. Zarif ficou tão irritado com a discórdia plantada que ele foi parar no hospital com ataque de nervos e paralisia lombar. As dores se estenderam por semanas, e Zarif apareceu de cadeiras de rodas numa das negociações em Genebra. As comitivas negociadoras, incluindo a americana, se interessaram pela saúde do chanceler, um tema que se imiscui totalmente nas conversas. Todo mundo oferecia ajuda, trazia um conselho ou uma história pessoal semelhante de estresse causado por trabalho. Zarif melhorou e, semanas depois, a negociação resultou num acordo.
Samy,
desculpa sair fora do tema central, mas gostaria de saber como anda a condenação do Panahi. Desde os tempos do Ahmadinejad ele circula, sai de casa, está filmando, mas continua sem poder sair do Irã. Vc tem informações se mudou alguma coisa em relação à condenação com o novo presidente, se o judiciário, em função dos novos ares, pode ter afrouxado?
Ivonete, já me encontrei com o Panahi em algumas ocasiões, numa delas conversamos por alguns minutos. Ele me pareceu bem, ao menos fisicamente, e viaja com frequência pelo país. Lembre-se que as autoridades fecharam os olhos para o filme que fez sem autorização e enviou para festivais europeus. Ou seja, aliviaram a pressão. Mas, de fato, seu passaporte continua retido. Não se sabe por mais quanto tempo. Muito mais preocupante é a situação dos líderes reformistas Mir Hossein Mousavi e Mehdi Karroubi, que estão adoecendo em regime de prisão domiciliar há quase três anos.
Tão preocupada quanto Israel deve estar a Arábia Saudita que está a caminho de dividir os holofotes também com o Irã, além de já ter que dividi-los com o Estado hebreu na região. Empenhou-se tanto e ainda continua a se empenhar na derrota do quase xiita al-Assad em busca do enfraquecimento de Teerã no O.M., o que lhe abriria espaço para a posição de liderança na região. Agora, essa quase troca de afagos entre Irã e EEUU, que pode progredir inclusive para acordos geopolíticos, deve perturba-la profundamente, embora tenha reagido com mais senso de realidade que Israel ao abster ao esboço de sequer um gesto contrário. Em vez disso parabenizou o acordo, embora esteja rangendo os dentes de descontentamento.
Parabéns ao Samy por mais uma excelente matéria.
Caro Samy, andei afastado do blog, mas comemorei o acordo com certeza.
Foi um bom acordo, não tão bom quanto o que sugerimos em 2010, porém prevaleceu o bom senso de ambas as partes, felizmente os EUA e a Europa negociaram com o Irã mais moderado e deixaram os extremistas sionistas fora, fato que como dito, gerou piadas e baba de raiva em muitos aqui hahaha.
Com as inspeções frequentes da AIEA ficará bem difícil o Irã conseguir armas atomicas, mas para sorte de nós muçulmanos temos o Paquistão e, quem diria, a Arábia Sautida com armas nucleares do lado de Israel.
Agora podemos dormir tranquilos, afinal como eles já compraram os EUA e Israel, todos vão andar felizes de mão dada.
Até acho que a mídia só fala do Irã para ocultar os planos sauditas. Na minha opinião o Oriente Médio agora vai se estabilizar, pois tanto árabes e Israel terão armas capezes de mutuo extermínio.
A paz das armas, já dizia Cesar.
http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2013/11/1378823-analise-acordo-com-ira-pode-gerar-corrida-atomica-na-regiao.shtml
Hahaha Agora os sauditas também terão armas nucleares, engraçado como o Ocidente não fala de um regime como esse. Inclusive os Israelenses bem pianinhos.
O Irã seria invadido por muito menos, por que acha que ocorre essa diferença de tratamento, Samy ?
Heitor, sua pergunta levanta questões extremamente complexas. Primeiro, não acho que a Arábia Saudita conseguirá tão cedo a bomba atômica – aliás, talvez nem o Irã. Dito isso, razões estratégicas colocam os sauditas entre os principais aliados dos EUA (e europeus) na região. Essa aliança é fomentada em grande parte pela convergência de interesses entre EUA (que querem petróleo e clientes para sua indústria bélica) e sauditas (que buscam apoio político das potências para garantir a estabilidade de sua monarquia). Esse pacto é mesmo estranho, à luz da ideologia ultraconservadora e violenta propalada por segmentos da Arábia Saudita que originaram a criação da Al Qaeda. Mas o fato de os EUA terem descoberto em seu solo colossais reservas de hidrocarbonetos afeta a raison d’être desta relação. O Irã também tem muito petróleo, mas desde 1979 Teerã se coloca numa posição de resistência geopolítica à agenda regional pró-ocidental.
Obrigado pela resposta 🙂
Samy, eu gostaria de saber se o povo iraniano em geral acredita nas intenções pacíficas do programa nuclear de seu governo, ou se apoia o desenvolvimento de armamento atômico. Você ouviu algo a respeito por aí?
Beto, a impressão mais comum entre os iranianos é de que o país não deve abrir mão daquilo que é visto como direito legítimo ao uso da energia nuclear para fins pacíficos. A percepção iraniana é legalista: se o país assinou o Tratado de Não Proliferação Nuclear e aceita o monitoramento diário de suas centrais, por que o Ocidente contesta seu direito atômico civil garantido pelo TNP enquanto países como Israel e Paquistão têm até bomba nuclear sem ser incomodados? O tema da bomba é tabu. Ninguém defende abertamente essa ideia, embora há quem ache que o governo a está fabricando.
Obrigado pela resposta!
Samy,descrição precisa.Parabéns!!
Ótimo post. Samy, todo mundo ficou satisfeito com esse primeiro acordo, que afasta a possibilidade de alguma guerra. Acho que ninguém tá mais a fim de guerra hoje em dia. Nem o Irã, que prefere prosperidade econômica $$$, e nem os EUA que estão meio falidos e gastaram o que não tinham nos desastres do Iraque e do Afeganistão. O Irã como os EUA podem agora colaborar contra os terroristas da Al Qaeda e do Taliban , que não são inimigos comuns. Maneiro. Só o maluquete do Netaniahu de Israel é que agora fica parecendo um novo Ahmadnejad contemporâneo, fora de contexto e objeto de piadas na ONU. Já o Bush ficou como o burro, com ideia fixa, que terminou fortalecendo o Ahmadinejad. Conclusão: os fanáticos e extremistas se atraem e fortalecem reciprocamente. Os moderados e equilibrados terminam se reconhecendo. Espero que o turismo na região cresça, pois a Pérsia é fantástica. Gostaria de voltar lá. espero também que Obama não seja assassinado por algum fanático ou mercenário.
Samy,
Estava aguardando ansioso seu comentário (de “dentro”, ou seja, a partir do Irã) por que queria saber a reação local, pois, quero entender melhor isso.
Ora, quando o presidente Rowhani chegou no Aeroporto houve manifestações contrárias (“apenas” porque ele falou com o Obama no telefone), no entanto, agora todos estão felizes pelo acordo e dão louvores ao Zarif? Fico aguardando novas avaliações, amigo.
Gedeon, nem todos estão felizes, muito pelo contrário. Tanto Rowhani como Zarif foram recebidos por multidões de simpatizantes, a diferença é que no caso do Rowhani alguns ultras se infiltraram na “torcida” para agredi-lo. Mas agora o apoio do líder supremo às negociações está tão claro que ninguém se atreve a contestar o acordo tão descadaramente. Ao menos, não por enquanto…
PS: Relato mais detalhado da reação ao acordo foi publicada na versão impressa da Folha.