Pela 1ª vez, uma ópera na república islâmica
22/08/13 17:20A voz dos atores é meio fraquinha. Em vez da orquestra, só há um piano. Mas o que importa é que “Gianni Schicci”, do mestre Giacomo Puccini, é a primeira ópera em cartaz no Irã desde a implementação do regime teocrático, em 1979.
A peça está passando no charmoso Teatro Vahdat, no centro de Teerã, construído antes da revolução nos moldes da Opera de Viena, mas que passou as últimas três décadas recebendo principalmente soporíferos eventos oficiais.
“Gianni Schicci” é a primeira ópera a receber aval do Ministério da Cultura e Orientação Islâmica, que controla todas as manifestações artísticas no país (ao menos as oficiais, já que Teerã fervilha de arte underground). Uma primeira permissão foi concedida no ano passado, mas o diretor e ator Hadi Qozzat decidiu repetir a dose em março e, agora, com mais uma série de apresentações.
Assisti à peça na quarta-feira (21.ago), em meio a um público dominado por estudantes e jovens apreciadores de artes. Alguns casais, vários grupos de amigos. Todo mundo, ou quase, em sua primeira ópera. Moças ostentavam um visual rebuscado, com o véu quase na nuca de tão ousadas. Mas o ambiente estava longe do glamour vistoso que se vê com frequência na Europa.
Eu estava bem posicionado, sentado na terceira fila, de frente para o palco. Sala cheia. A decoração era clássica, reproduzindo uma casa burguesa em Florença, palco da trama. O figurino dos atores pareceu convincente aos meus olhos de leigo. A peça foi toda dita em italiano, também convincente. A plateia acompanhava as falas num telão acima do palco onde era projetada a tradução do texto em farsi. Inútil para este que vos escreve. Ainda bem que minha cabeça guardou resquícios das aulas de italiano na oitava série.
A peça cômica narra os estratagemas de uma família que tenta recuperar a herança que um tio rico e solteirão preferiu doar à caridade. Um enredo de mentiras e mesquinharia, cheio de reviravoltas. A atuação é dinâmica e ágil. Sem orquestra, cortada por restrições de orçamento, o piano às vezes soa vazio, mas é possível identificar com clareza a emoção de cada momento. O ápice é quando Lauretta, filha do protagonista Gianni Schicci, um notável salafrário, canta em solo para convencer o pai a ajudar a parentada do morto a recuperar a herança. A motivação de Lauretta é sentimental: ela está apaixonada por Rinuccio, sobrinho do morto. Conhecido como “O Mio Babbino Caro”, este trecho composto na medida para sopranos é uma das marcas registradas de Puccini. Já foi interpretado pelas maiores cantoras líricas, como Maria Callas e Montserrat Caballé.
O solo de Lauretta também representa a parte mais ousada da peça, já que a lei iraniana proíbe mulheres de cantar sozinhas. Uma voz feminina só é lícita quando acompanhada de uma masculina. A interpretação de Lauretta gerou um tenso frisson na plateia, como se todos ali segurassemos juntos o fôlego diante de tão escancarada e linda subversão. Ao final do solo, a sala explodiu em aplausos.
A peça teve outros momentos de arrojo, incluindo personagens invocando Jesus em voz alta e fazendo sinal da cruz. Acima do palco havia grandes retratos, obrigatórios em todo lugar oficial, dos dois líderes supremos da república islâmica, o aiatolá Khomeini e seu sucessor, aiatolá Ali Khamenei. Altos funcionários do regime estavam na sala, convidados pela direção.
O publico aplaudiu o encerramento da peça de pé por três minutos
“Estou tão contente por ter visto uma mulher cantando em público, ainda mais no palco do Teatro Vahdat”, exclamou-se a elegante Arghavan, 30. “É tão bom que os produtores tenham cavado uma brecha no sistema para fazer a peça acontecer”.
O músico Amin, 25, mora em Mashhad, a 900 km de Teerã, e veio especialmente para ver a ópera. “A performance foi ótima. Os pianistas não fizeram nenhum erro.”
Musicóloga, doutora em estudos teatrais e autora, a franco-iraniana Leyli Daryoush, 38, lamentou a ausência de orquestra e a falta de potência de algumas vozes. “A atriz que interpretou Lauretta canta de forma justa, mas sua voz é pequena e sem timbre”. As críticas param aí. Daryoush, que vive na ponte aerea Paris-Teerã, achou a peça bem executada e dirigida. “O diretor não poderia ter escolhido uma ópera melhor para iniciar os iranianos. ‘Gianni Schicci’ é divertida, curta (1h30) e dinâmica, perfeita para combinar com um público iniciante como este. Foi um golpe de mestre”, diz a especialista. Ela elogiou também a “atitude respeitosa do público” e a agilidade das vendas de ingressos online. “Sistema impecável. Melhor do que na França”.
Depois da peça pude conversar rapidamente com o diretor Hadi Qozzat, que também é barítono e atuou no papel principal, o de Gianni Schicci. “Desde que fui estudar ópera em Viena, há doze anos, meu sonho era trazer a peça ao Irã. Foi muito difícil conseguir a autorização do governo”, contou. Ele disse ter apresentado às autoridades um vídeo com cenas do ensaio. Explicou do que se tratava, mas os censores, que nunca haviam visto ópera, não conseguiam saber se a obra entrava na categoria música ou teatro. “Na dúvida, deram as duas permissões”, alegra-se Qozzat. “Eles só me pediram para tirar uma garrafa de vinho que, na versão inicial, deveria estar no palco. Todo o resto, inclusive mulher cantando, foi aprovado”.
A outra dificuldade, segundo ele, foi trabalhar com atores sem experiência em ópera profissional. “Para os papeis principais, chamei iranianos que estudam ópera na Europa e na Turquia”. A obra saiu do papel graças a patrocinadores, inclusive a empresa alemã de correio expresso DHL, que tem presença forte no Irã. Ingressos custavam de USD 8 a USD 16.
“Esta peça diz muito sobre o estado das coisas. Tenho certeza que o Irã vai avançar rapidamente. A população mostrou que já avançou”, diz Daryoush.
Espero que os ventos da democracia breve varra o Irã, levando aitolás para o exílio.
Parabéns ao diretor, e parabéns as autoridades iranianas. Que seja a primeira de muitas operas para levar o melhor da musica e cultura ocidentais ao Irã. Não há porque a religião privar os iranianos de um dos mais maravilhosos repertórios musicais da arte ocidental.
Quem sabe não chegará o dia em que os iranianos poderão deleitar-se com “Aida” ?