Encontros no deserto
14/08/13 08:49“Você acha que o universo tem fim?”, lançou Amir, cinco minutos após sermos apresentados.
Amir mora na cidadezinha de Mahan, oásis no desértico sudeste do Irã, por onde andei dias atrás, a trabalho. Conversamos num fim de tarde no magnífico parque de Bagh-e-Shazde, um palácio do século 19 transformado em jardim municipal. Amir, que tem 28 anos e é filho de um pequeno empresário local, estava eufórico por poder praticar os idiomas estrangeiros aprendidos num cursinho. Seu inglês e seu francês eram incrivelmente fluentes. Ele me disse que seu passa tempo favorito era puxar papo com turistas e outros visitantes estrangeiros. Amir tinha apreço especial por discussões metafísicas e filosóficas.
“Eu acho que o universo é infinito”, decretou. “Se você acredita que o universo é finito, então me diga o que tem no final. Um penhasco? Uma parede?”.
Amir também queria saber se eu tinha alguma dica para prolongar a vida. “Queria viver mil anos, mas sei que não é possível”, me disse, apagando o sorriso estampado até então. “Quanto mais eu pensar na velhice, mais rápido vou envelhecer, não é verdade?”, perguntou. “Acho que a felicidade é o que me permitirá viver mais tempo”, ponderou. Eu respondia com acenos de cabeça.
O vento chacoalhava a folhagem das enormes e centenárias árvores, e um suave chiado ecoava pelo parque. O sol escaldante se esvaía, e a temperatura caía rapidamente. Famílias com crianças passeavam por entre as alamedas floridas. Jovens fumavam narguilê nas mesas da cafeteria. Casais flertavam, despreocupados, nesta região conhecida por ser menos conservadora que o resto do país.
Perguntei a Amir se ele já havia se apaixonado por alguém. Disse a ele que achava que o amor era a melhor maneira de ser feliz. Ele discordou. “Tenho certeza que ejacular diminui a expectativa de vida”, rebateu, falando alto, em francês. Eu quis saber se ele já havia estado em algum relacionamento. “Sim, pagando. Mas não foi legal porque elas não sentiam nada por mim”.
Não sei se era meu estado de espírito ou a melancolia do deserto, mas fiquei com a impressão de ouvir quase somente histórias carregadas de emoção ao longo desses três dias na árida Província de Kerman, cuja capital leva o mesmo nome e fica a 30 km de Mahan.
Naquele mesmo jardim conheci um homem da minoria balúchi, grupo étnico que vive na região do Sistão-Baluchistão, onde os territórios do Irã e do Paquistão se cruzam. Vestindo o típico traje branco balúchi, camisa até o joelho e calça larga, contou que havia vindo a Kerman em busca de tratamento para combater o câncer da mulher. “Na região onde moramos não há bons hospitais. Chegamos hoje. Deixei minha esposa num hospital de Kerman e vim esfriar a cabeça neste parque tão bonito”, me disse, com a voz embargada de tristeza.
Um dos funcionários da loja de artesanato do parque era um sujeito baixinho que estava sempre sorrindo. Ela havia passado a maior parta da vida na Alemanha e, por isso, falava alemão. Decidira voltar ao Irã havia dez anos para abrir uma empresa, mas uma doença lhe tirou a maior parte da visão. Hoje ele se orienta pela luz para caminhar.
O guia que contratei para a viagem, o pacato Hosein, um senhor de sessenta e poucos anos, também me comoveu com sua história. Nos anos 70, ele trabalhou para empresas americanas até então onipresentes no Irã. Ganhava bem e planejava estudar nos EUA. Mas sofreu acidente de carro e ficou em coma por semanas. Ao acordar, percebeu que havia perdido parte das faculdades físicas e mentais. Hosein estava internado em Kerman quando eclodiu a revolução de 1979 que levou a teocracia ao poder. Quando ele se reergueu, um ano e meio após o acidente, já não havia mais possibilidade alguma de ir para os EUA. Hosein se reinventou e hoje é um dos mais conhecidos guias para gringos em Kerman, sendo citado inclusive pelo Lonely Planet.
A viagem também teve encontros mais alegres. Os dois irmãos que possuem o lendário hotel Akhavan, em Kerman, são engraçados e cheios de histórias sobre turistas do mundo inteiro que visitam a região. Mesmo simples e barato (US$ 30 a diária!), seu hotel é um exemplo de limpeza, serviço amigável e comida deliciosa. Não é de se admirar que o Akhavan seja sucesso de crítica e público desde a metade do século 20.
Conheci em Kerman duas moças simpáticas, alunas da faculdade local que faziam pesquisa acadêmica sobre a percepção da hospitalidade na região. Uma delas antes havia estudado idiomas arqueológicos. Achei o tema fascinante.
No meio do deserto, bem longe de Kerman e Mahan, um jovem me mostrou vias subterrâneas que levam, dezenas de quilômetros a fio, água das montanhas até a aldeia onde mora.
Passei a viagem toda sem ouvir falar em política ou no programa nuclear.
Caro Samy, decidi fazer aqui no seu blog um super agradecimento por nos ter indicado o Jason Rezaian e a agencia de turismo no Irã. Você foi primordial para que nossa viagem fosse um sucesso absoluto. Acalentar por mais de 30 anos o sonho de visitar o Irã e ter ao nosso lado um guia dos mais competentes como Rouin foi sensacional. Sendo de origem árabe tenho um carinho especial pelos povos do Oriente Médio e ficamos encantados com o povo iraniano, enfim com tudo no país. Penso e desejo muito que o Irã livre-se dessa receita venenosa que mistura politica com religião e que em poucos anos o país se abra gradativamente ao turismo. Com tanta história, belezas naturais e povo encantador o Irã merece ser muito mais do que já é!!! Obrigada Samy por nos indicar a melhor e mais perfeita forma de conhecer o Irã e sua história maravilhosa….abraços Renata & Cesar
Que bela viagem!!!Realmente me surpreendeu.É muito bom conhecer pessoas:cada uma é universo.O rapaz de 28 anos parece ser uma figuraça.”ejacular envelhece”.kkkk.muito boa.
Texto lindo e delicioso de ler. Escrito com sensibilidade, faz nossas próprias emoções transbordarem. Muito obrigada, Samy. Parabéns.
Que blz seu artigo e o final então foi fora de série = nada de politica ou esquema nuclear.
Outro dia li uma noticia no jornal daqui que o chefe supremo do Iran, o Aiatolá disse uma grande verdade: realmente os EUA não são o país ideal para intermediar a negociação entre Israel e os palestinos. Não preciso nem dizer porque, mas quem ainda não desconfiou a qui vai a dica: Israel só existe e persiste graças aos protetores americanos. Portanto, eles sempre vão estar do mesmo lado. Enquanto isso os palestinos não podem contar com o apoio de outros paises árabes, pois infelizmente os árabes são muito desunidos e cada um tem sua guerra própria.
Ler seus artigos enriquece meus conhecimentos desta cultura tão diferente da nossa, porém , em alguns pontos, me mostra o quanto o ser humano é igual em alguns aspectos , seja lá onde for.
Parabéns pelo artigo.
Lindo texto, cheio de poesia!
Leio sempre que posso seus artigos, acho muito interessante. Saber o dia-dia das pessoas, como pensam, como sentem, o que pensam do nosso Pais. Concluo que somos iguais apesar de diferenças étnicas, religiosas, idioma etc. Sentimos necessidade de entrosarmos com pessoas diferentes. Somos os mesmos: humanos, primatas racionais carentes! Deves escrever um livro com seus comentários. Parabéns!
A primeira pergunta é “esse lugar existe mesmo?” Texto lindo e sensível. Narrativa apaixonante que mostrou um mundo distante de tudo o que conhecemos por quotidiano. Ah, eu também quero ir embora pra Passárgada. Valeu, Samy.
Lindo texto. Senti a presença metafísica do lugar. Parabéns!
ótimo artigo. Experiências como esta revela como são os habitantes daquela região tomada de conflitos, seus costumes, seus pensamentos e sonhos, revelando que em sua maioria são pacíficos e trabalham e sonham como nos. Ao contrario do que algumas mídias ficam nos bombardeando, com imagens violentas, de conflitos onde sempre estes países do oriente médio são os vilões.
Excelente texto. O “jornalista profissional” – sempre correto, mas que, às vezes, parece estar sempre alerta para manter o distanciamento, mesmo no blogo – liberou o cronista sensível e também talentoso. O blog e os leitores ganharam. Parabéns!
Espero que você tenha sido convidado para jantar na casa de algum iraniano no Ramadan. Vi que o Marcelo katsuki, mesmo em São Paulo, conseguir ir a um verdadeiro banquete persa, na mesma época, em plena São Paulo! Pratos maravilhosos, a julgar peloso fotos.
Oi, Isa, deu certo, sim, e acabei sendo convidado por amigos para compartilhar a ruptura do jejum. Acompanhei as notícias sobre o banquete persa em São Paulo, parece ótimo mesmo!
Excelente artigo. Daqueles que fazem brotar a vontade de ir até o lugar e conferir por si mesmo. Obrigado por compartilhar a experiência. Um abraço.