Pegue uma senha quem quiser presidir o Irã
14/05/13 13:52A corrida para presidir a República Islâmica do Irã começou num abafado salão no subsolo do Ministério do Interior, no coração de Teerã. É lá que as autoridades coordenaram durante cinco dias (de 7 a 11 de maio) as inscrições dos candidatos para o pleito de 14 de junho. Pela lei, qualquer cidadão pode concorrer, desde que seja iraniano nato, muçulmano xiita, tenha ao menos 40 anos de idade, pós-graduação e ficha policial limpa. Mas como essa filtragem só é feita na etapa seguinte, na qual as candidaturas passam pelo crivo das instâncias legais e ideológicas do regime, qualquer um tem direito de se inscrever.
O primeiro passo para se registrar era pegar uma senha numa máquina eletrônica situada logo na entrada do salão. A pessoa, então, esperava a vez de olho numa televisão onde eram anunciados os números chamados. Como cortesia, garçons do ministério distribuíam chá e biscoitos a quem estava na fila. Uma vez chamados, os aspirantes se viam encaminhados até uma das mesas de inscrição, onde eram recebidos por atendentes. A formalidade consistia em preencher uma ficha, apresentar documento de identidade, currículo e 12 (!) fotos 3 x 4. A regra vale para todos. Um ex-ministro teve de voltar para casa porque havia esquecido de trazer seu RG.
A esmagadora maioria dos que apareceram eram desconhecidos, cidadãos comuns atraídos pela possibilidade de participar de um jogo –em tese– aberto a todos, refletindo ideais populares e democráticos vendidos pela revolução islâmica contra a ditadura do xá, em 1979. Teve presidenciável de tudo quanto é tipo: maluco beleza, aposentado, clérigo de médio escalão, doidão enrolado na bandeira do Irã, vereador vindo dos confins do país e até uma jovem bonitona que enlouqueceu fotógrafos e cinegrafistas de imprensa.
Um dos candidatos com quem conversei naquele circo é Ali Rahimi, 59, cirurgião com dupla cidadania iraniana-americana que dizia portar também um passaporte alemão. Rahimi era o único sujeito de gravata, acessório execrado pelo aiatolá Khomeini, fundador da república islâmica, que o tinha como símbolo da dominação ocidental. “Eu posso ajudar a consertar a relação entre Irã e EUA. A tensão atual não beneficia ninguém”, explicou.
Os mais sortudos entre os anônimos ganhavam direito de discursar diante da imprensa num auditório situado ao lado do salão. Mas, quase sempre, a fala era feita diante de um punhado de repórteres sonolentos e desinteressados. O que a mídia esperava mesmo eram os pronunciamentos dos candidatos “de verdade”, cuja chegada rompia com a monotonia do processo. Toda vez que aparecia algum figurão, jornalistas e seguranças se agitavam e se apertavam para acompanhar a formalidade eleitoral e, em seguida, o discurso no anfiteatro. Obviamente, os poderosos dispensavam a senha para entrar na fila das inscrições.
Foi assim que eu pude ver de pertinho muitos dos homens mais poderosos e influentes do país. Assessor especial e homem da máxima confiança do líder supremo aiatolá Ali Khamenei, o ex-chanceler Ali Akbar Velayati, um velhinho alto e elegante, distribuiu aos jornalistas uma cópia do seu discurso, no qual admitia impliciatmente a necessidade de o Irã moderar seu tom na relação com o mundo. Questionado por uma repórter chinesa sobre como lidaria com os EUA caso virasse presidente, Velayati, médico de carreira formado na Universidade americana John Hopkins, respondeu num inglês fluente. “Já viajei muito, e conheço os temas internacionais. [Melhorar a relação com os americanos] não é impossível”.
Também vi Hasan Rowhani, um reformista de turbante conhecido e respeitado pelas chancelarias ocidentais por ter sido o negociador nuclear chefe do Irã no período que antecedeu a era Ahmadinejad, tempos bem menos tensos. O atual negociador atômico, o conservador Said Jalili, também se inscreveu enquanto eu estava lá. Com seu jeito caladão e sorrisinho enigmático, entendi porque Jalili não consegue atrair a simpatia dos seus interlocutores no dossiê nuclear. Europeus, principalmente, queixam-se da total “falta de química” nas conversas com o iraniano. Manouchehr Mottaki, que era chanceler do Irã na época da lua de mel com o Brasil e já esteve várias vezes em Brasília, não chamou muito a atenção quando preencheu a ficha de inscrição. Na verdade, entre os candidatos com real chance de ganhar, só perdi a apresentação do prefeito de Teerã, Mohamad Qalibaf, sujeito sério e com alto índice de aprovação –conheço uma jornalista iraniana que cultiva em segredo uma paixão por ele.
O auge desse espetáculo todo ocorreu aos 40 do segundo do tempo. Literalmente. Faltavam cinco minutos antes do fim do prazo para as inscrições, no sábado passado, quando surgiram os personagens centrais da eleição. Encerrando meses de suspense, o ex-presidente centrista Ali Akbar Hashemi Rafsanjani (1989-1997) fez uma entrada triunfal no ministério, sendo recebido com gritos e até choro de colegas jornalistas críticos do atual governo (no Irã, jornalismo tende a ser uma atividade partidária, e as pessoas muitas vezes não entendem quando digo que não sou a favor nem contra). Com a disputa esvaziada de reformistas importantes, Rafsanjani parece ser o homem capaz de dar esperança a milhões de pessoas na classe média urbana, até então alheias à eleição deste ano. Sendo um dos empresários mais ricos do país, tem a simpatia do mundo dos negócios. Com formação clerical e sendo ele mesmo aiatolá, também é capaz de atrair votos conservadores. Sua entrada eletrizou uma campanha até então para lá de morna. Fiquei arrepiado com o extase de intensidade causado pela sua chegada ao ministério.
O mais incrível é que quando Rafsanjani e a multidão que o cercava, eu lá no meio, desceram as escadas até a sala das inscrições, lá estavam ninguém menos que Mahmoud Ahmadinejad e seu fiel chefe de gabinete, Esfandiar Rahim Mashaee, que haviam entrado no prédio por outra entrada. Sem poder concorrer novamente devido à limitação de dois mandatos seguidos, Ahmadinejad tenta emplacar Mashaee, contrariando até mesmo o líder supremo, que acusa o clã presidencial de querer minar as fundações religiosas do Estado para favorecer uma ideologia persa nacionalista. A presença simultânea das duas delegações incendiou o ambiente, dominado por empurra empurra, gritos de apoio e flashes de fotógrafo.
Terminadas as inscrições, as candidaturas neste exato momento estão sendo avaliados pelo Conselho de Guardiães da Revolução, formado po seis juristas e seis clérigos, responsável por avaliar as credenciais revolucionárias e o cacife dos candidatos. Do total de 686 inscritos, especula-se que uma dúzia, no máximo, esteja qualificada para o pleito. Os nomes serão anunciados na próxima semana. De todos os figurões citados nesta matéria, o único com chance real de ser barrado é Mashaee, em represália ao fato de ele e Ahmadinejad terem passado boa parte dos últimos anos questionando a supremacia do líder supremo e dos religiosos.
Já imagino alguns leitores questionando a pertinência das eleições num país como o Irã. Pois bem, vale lembrar que o sistema iraniano, em sua concepção original, pretende mesclar princípios do Iluminismo (república) e da religião (islâmica). O modelo prega, em tese, características democráticas, como representantes eleitos pelo povo, pluralidade social e direitos a minorias religiosas, tudo isso sob a benção de uma autoridade munida de poder divino para dar a palavra final sobre grandes questões nacionais. Isso, claro, é a teoria.
Mas, para além da discussão sobre violação de direitos humanos e perseguição, é preciso ter em mente que praticamente todas as eleições presidenciais iranianas até 2009 foram amplamente consideradas justas e limpas. O povo ia às urnas, e o candidato mais votado ganhava. Foi assim até mesmo quando o vencedor não era a opção preferida do líder supremo, como em 1997, quando o reformista Mohammad Khatami obteve esmagadora maioria dos votos. Khatami acabou reeleito quatro anos depois, contrariando novamente a vontade do líder. O regime contornava bem a contrariedade e ostentava o resultado das urnas e o ambiente de relativa liberdade (de imprensa, de opinião) no país como supostas provas de sua legitimidade democrática. Mas 2009 foi um divisor de águas. O povo foi às ruas dizendo que a reeleição de Ahmadinejad resultava de fraudes, e os protestos acabaram silenciados com violência. O regime perdeu milhões de simpatizantes com a guinada repressiva pós-pleito.
Em 2013, mais do que nunca, o Estado quer e necessita se relegitimar. Para tanto, precisa de uma campanha empolgante, de uma votação em massa e de um resultado com pouca margem para contestação. Tudo está ainda indefinido e sujeito a alianças e reviravoltas de última hora. As próxima semanas prometem.
Fiquei curioso mesmo foi para ver a bela candidata iraniana…
Post fantástico. Adoraria poder presenciar algo assim. Parabéns!
Ao que parece, toda instância de poder é decorativa, com exceção do poder do supremo líder. Se a vontade dele é soberana e indiscutível, então para que toda a firula?
Benny, recomendo a leitura de uma análise muito interessante publicada na Folha por um pesquisador de Princeton, profundo conhecedor do Irã.
http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2013/05/1278163-ocidentais-se-iludem-ao-ver-lider-supremo-no-topo-de-estrutura-consolidada-de-poder.shtml
Samy outra dúvida que eu tenho é a seguinte: Segundo a imprensa internacional a população iraniana não está empolgada com as eleições deste ano, como em 2009 em que havia euforia, muitos jornais falam que por causa da repressão após a votação de 2009 o povo perdeu aquele entusiasmo, você já notou algo neste sentido?
Houti, primeiro, uma pergunta: a que “imprensa internacional” você se refere? Veículos sem correspondente no Irã têm pouco contato com a realidade, por isso é preciso ser seletivo em relação às suas fontes de informação sobre o país. Dito isso, tudo por enquanto está mesmo bastante morno. Não há empolgação nem clima de campanha. Mas colegas jornalistas que estão aqui há mais tempo que eu me dizem que é normal, e que os iranianos geralmente só se empolgam quando a campanha começa de fato, isto é quando são anunciados os nomes dos candidatos autorizados a concorrer. Isso deve acontecer na próxima semana. Campanhas eleitorais no Irã tendem a ser tão intensas quanto curtas.
Olá Samy, como foi para vc, um jornalista extrageiro, assim como a chinesa que vc mencionou, poder acompanhar esta cerimonia? É muito legal poder aocmpanhar um pouco do Irã de acordo com a sua visão, ja esotu ansioso pelas proxima spostagens para saber como se desenrola uma campanha presidencial no Irã. Obrigado.
Leon, a chinesa, eu e um punhado de outros colegas formamos a pequena comunidade de correspondentes estrangeiros no Irã. A inscrição das candidaturas foi, sem dúvida, o momento mais interessante da vida pública iraniana neste ano. E está claro que vem muito mais emoção por aí. Os jornalistas estrangeiros em Teerã somos privilegiados por poder acompanhar tudo isso de perto.
Mas vcs, jornalistas, não sofreram algum tipo de interrogatorio. Não digo interrogatorio policial, mas algo para saber as credenciais se seriam ou não ruins par ao regime?
Me bate um questão. Será que há poucos jornalistas pelo fato do Irã ser um pais fechado , ou será que há poucos exatamente como estrategia para manter o pais isolado? De qualquer maneira parabéns por esse privilegio deve ser uma experiencia bem enriquecedora. confesso sentir uma ponta de inveja, mas inveja do bem haha.
Para cobrir eventos oficiais como este, correspondentes estrangeiros com visto de residente no Irã precisam se cadastrar junto ao governo para obter uma credencial que dá acesso aos lugares e direito de fazer perguntas aos políticos. Funciona da mesma maneira no resto do mundo. Interrogatório? De forma alguma. Censura prévia também não. A partir de momento em que há interferência no trabalho do jornalista, não é mais jornalismo. Jornalismo só pode ser exercido se houver liberdade para tanto. É evidente que há dificuldades adicionais em países com governo autoritário, mas a Folha jamais aceitaria manter um correspondente se houve qualquer tipo de controle sobre seu trabalho. Há poucos jornalistas estrangeiros no Irã porque o regime é fechado e desconfia da imprensa internacional – e também porque a crise econômica afetou quase todos os jornais do mundo, que foram obrigados a fechar postos no exterior. Já houve muito mais veículos com correspondentes fixos em Teerã, mas hoje são poucos. Entre os jornais impressos a Folha é o único em língua não inglesa (os outros são New York Times, Washington Post, Los Angeles Times e Financial Times).
Samy eu li vários posts seu e cada vez que eu leio fico impressionado com a forma que voce diz que o Mahmoud Ahmadinejad é uma pessoa que difere e muito do aiatolá, ou seja, mais secular, com idéias de arrepiar as barbas dos aiatolás, por que na midia internacional o Mahmoud Ahmadinejad se mostra tão alinhado com a ideologia do supremo líder enquanto na política interna eles são tão rivais?
Houti, há dois Ahmadinejad. O do primeiro mandato, que apavorou o mundo com suas declarações mas em casa era alinhado ao líder supremo, e o do segundo mandato, que se tornou-se muito mais confiante externa e internamente, contestando abertamente a autoridade do líder supremo. Ahmadinejad sempre foi conservador, mas nunca foi clérigo, ele tem zero credencial religiosa. O segundo Ahmadinejad tem agenda e ideologia próprias, que destoam do atual sistema teocrático. O presidente, influenciado por Mashaee (citado no post), passou a investir num discurso muito mais liberal e um tanto místico.
Samy, pelo que entendi não há partidos políticos no Irã, é isso? Se for assim, como os políticos se agregam, por exemplo, no parlamento? Como se dá a representatividade política dos governantes, as correlações forças, alianças e disputas internas?
Obrigado
Fernando
Fernando, partidos políticos no Irã não têm muita importância. O que vale mesmo é a ligação com uma das duas grandes correntes: conservadores e reformistas. Com a marginalização dos reformistas nos últimos anos, os conservadores se dividiram bastante. Nas eleições parlamentares, os candidatos se unem em torno de frentes, cujos nomes e composição mudam a cada campanha. Na eleição presidencial, eventuais alianças só se consolidam depois de anunciados os nomes dos finalistas.
Samy, tomara mesmo que agora o Irã consiga voltar a ter um pouco mais de liberdade de pensamento (guardadas as devidas proporções que um regime teocrático impõe) e também passe a ter a esperança de retomada econômica. Fica a torcida.
Caro Samy , qual é a função do líder supremo no governo ? é ele quem manda afinal e o presidente apenas um fantoche, ou ele é uma figura representativa com funções parecidas a da rainha na Inglaterra, mas que apenas corrobora as escolhas dos parlamentares ?
Samy, te pergunto isso pois pra mim não ficou muito claro o trecho especifico :
“…a benção de uma autoridade munida de poder divino para dar a palavra final sobre grandes questões nacionais.”
Outra duvida que tenho é como é feita a escolha do líder supremo ?
André Luiz, o líder supremo manda e manda muito. Como expliquei, ele tem poder divino, o que faz dele uma espécie de representante de Deus na terra. Isso lhe dá autoridade incontestável para ser detentor da palavra final sobre política interna, externa, programa nuclear, forças de segurança, mídia estatal, grandes decisões econômicas etc. Ele é o mais alto comandante do país. Trata-se de um cargo vitalício, e o nome é apontado por um órgão chamado Assembleia dos Peritos, formado por 86 clérigos e juristas.