Visitei a casa onde o aiatolá Khomeini morava
01/03/13 13:44Dia desses aproveitei o clima de ufanismo governista pelo 34º aniversário da revolução islâmica para conhecer a casa onde morou até morrer Ruhollah Khomeini, o aiatolá que fundou o atual estado teocrático iraniano.
A residência fica num pequeno complexo que leva o nome do bairro onde está situado, Jamaran, conhecido por ser um enclave tradicional num dos bairros mais ricos e modernos de Teerã. Na verdade, Jamaran é um antigo vilarejo ao pé das montanhas que acabou alcançado e cercado pela maré de ruas, lojas, prédios e mansões provenientes do centro, alguns quilômetros ao sul. Imagino que a aura de santidade tenha blindado o local contra a especulação imobiliária. As apertadas ruas vivem cheias de mulheres de chador preto, véu integral sobre o corpo, mais usado em meios tradicionais. Destoando dos shoppings e supermercados que dominam a capital, Jamaran tem vendinhas e pequenos comércios de esquina. A área é deliciosamente mais silenciosa e agradável que os bairros ao sul.
Uma pacata viela pedestre leva até o portão metálico que dá acesso ao complexo onde morava o imã Khomeini _no islã xiita, imã é um título dado a líderes envoltos de santidade. Soldados sem armas, aparentemente jovens em serviço militar, controlam o acesso, que é gratuito. Homens entram de um lado, mulheres, do outro. Uma rampa coberta leva até os locais de visitação. Naquela gelada e ensolarada manhã, havia famílias, alguns turistas estrangeiros e uma excursão escolar.
O primeiro lugar acessível ao público é uma sala subterrânea que abriga uma espécie de museu do Khomeni. A vida do grão-aiatolá (nível máximo nos estudos teológicos do xiiismo) é contada numa sucessão cronológica de fotos pregadas na parede, quase todas em preto e branco. Criança, Khomeini já ostentava o semblante grave que o caracterizou para sempre. Há também registros do jovem Ruhollah estudando no santuário de Qom e, décadas depois, pregando diante de milhares de seguidores contra a a ditadura do xá Reza Pahlevi. Minhas fotos preferidas são as de 1978, quando Khomeini se refugiou num povoado a leste de Paris com seus mais próximos colaboradores. Acho fascinante a imagem desses homens barbudos de túnica e turbante na cabeça rezando no jardim de uma casinha tipicamente europeia, enquanto são observados por ocidentais vestidos à moda dos anos 70. Há outras imagens poderosas, como as da maré humana que recebeu Khomeni em seu triunfal retorno a Teerã, dias depois de o xá ter sido obrigado a deixar o Irã. Uma das fotos mostra um cartaz sobre a multidão no qual os judeus iranianos saúdam a volta do imã. A galeria termina com registros de Khomeni, doente e abatido, numa clínica construída especialmente para tratá-lo, a alguns metros de sua casa em Jamaran, onde morreu em 1989, aos 86 anos, em decorrência de complicações cardíacas e digestivas.
O acervo do museu inclui ainda objetos pessoais de Khomeni (óculos, chinelos de couro, passaporte, carteira de motorista, perfume francês Chloé etc), folhas com poemas escritos por ele à mão e cartas enviadas do mundo inteiro com pedidos ao líder. Umas sugerem terminar à guerra contra o Iraque, que se arrastou de 1980 e 1988, outras pedem paz na Palestina, e por aí vai. Na saída da sala, visitantes podem levar para casa, gratuitamente, livros e revistas em vários idiomas que tratam de Khomeini e seu pensamento. Eu fiquei com uma coletânea de artigos, traduzidos para o inglês, nos quais o imã disserta sobre cultura e sociologia do islã.
O segundo lugar a ser visitado é uma mesquita construída rente a um galpão onde Khomeini fazia suas pregações. Local simples, sem grandes atrativos.
A visita a Jamaran termina com um acesso ao pátio e varanda da residência de Khomeini. O lugar é minúsculo e desprovido de qualquer charme. Quarto e sala, literalmente, com uma porta-janela de vidro. A sala tem um sofá e um tapete no chão. Nem mesa nem cadeira nem objeto de enfeite. O dormitório está escondido por uma cortina de pano. O homem que mudou a história do século 20 morava em condições incrivelmente simples, condizendo com sua personalidade austera.
Khomeini não sorria. Ou ao menos não se deixava fotografar com os dentes à mostra. No auge da revolução islâmica, quando um repórter americano lhe perguntou o que sentia ao ser recebido por milhões de pessoas na volta ao país, o imã respondeu: “não sinto nada”. Anos depois, Khomeini afirmou em discurso no rádio que “não há diversão nem piada no islã” (visão amplamente contestada entre muçulmanos, inclusive clérigos). Tudo bem que eram tempos difíceis, com o vizinho Saddam Hussein mandado seus soldados invadirem e bombardearem cidades iranianas, o Ocidente inteiro conspirando contra a revolução islâmica e uma economia em ruínas. Mesmo assim, Khomeini talvez seja o líder político mais estoico dos tempos modernos. O imã se considerava um mensageiro de Deus e, por isso, desprezava emoções, manifestações do ego e apegos à vida material. A dimensão mítica, embalada por um carisma messiânico, era reconhecida até por seus adversários.
Um simpático militar explica, cheio de orgulho, que a casa pertencia a um rico empresário que a doou a Khomeini, mas o líder rejeitou a oferta e fazia questão de pagar aluguel. O rapaz conta ainda que a mulher do imã, descendente da realeza iraniana do século 19, abriu mão de sua imensa fortuna para viver com simplicidade ao lado dele. “O imã Khomeini gostava muito da sua mulher, ele lhe dava muito crédito e a tinha como grande parceira”, garante o guarda.
Para uns, Khomeini foi um herói, um santo xiita que abriu mão de sua vida pessoal para se dedicar aos oprimidos e lançar as bases de um Estado rico capaz de prover amparo social aos mais necessitados. Muitos citam como exemplo de sua nobreza o fato de ter emitido um decreto religioso para permitir que um devoto cidadão pudesse trocar de sexo e virar mulher. O caso de Feyreddun Molkara, em 1984, pavimentou o caminho para a atual lei iraniana que rejeita gays, mas estimula e subsidia operações para mudar de sexo.
Essa imagem positiva é rejeitada por muitos outros, que consideram o primeiro líder supremo do Irã um homem cruel e implacável com opositores e inimigos apontados, entre eles o escritor indiano-britânico Salman Rushdie, que teve a cabeça colocada à prêmio por Khomeini por publicar o livro anti-islã “Versos Satânicos”.
Khomeini quis por muito tempo que seu sucessor fosse o grão-aitolá Hussein-Ali Montazeri, um clérigo com irretocáveis credenciais revolucionárias e grande senso social. Mas o imã mudou de ideia depois que Montazeri criticou violações de direitos humanos na república islâmica. Khomeini decidiu então que seu sucessor seria apontado por decisão colegiada. O escolhido foi Ali Khamenei, atual líder supremo. Mas o rosto de Khomeini continua até hoje onipresente em eventos e ambientes oficiais, lado a lado com o retrato de Khamenei.
Rooz Bekheyr! Shoma Chetorid? Acabo de ler a matéria sobre o Zoroastrismo. Lembro-me de lhe ter pedido uma reportagem com esse tema há alguns meses. KheylyMotachakeram!
Mas mudando de assunto, seria interessante uma matéria sobre os índices de violência no Irã, não!
Quantos assaltos a banco ocorrem por mês por aí? É como no Brasil, onde diariamente explodem caixas eletrônicos e muitas vezes o banco inteiro e até as pessoas junto? Arrombamentos, furtos de veículos, depredação do patrimônio público em brigas de torcida depois de jogos de futebol, enfim como são essas coisas por aí?
Khoda Hafez!
Prezado Samy, qual foi o motivo que levou Khomeini a se refugiar ? e porque a França ? Países muçulmanos não o aceitaram ?.
Não tenho visto reportagem sua na versão impressa da Folha.
PUXA, DEVE TER SIDO EMOCIONANTE.
Khomeini é uma destas figuras que fundaram sistemas políticos personalistas, daí por que agradam uns e são odiados por outros. Quando um regime político tem por base a vontade de uma pessoa (vide Fidel Castro e outros ditadores), haverá sempre aliados e perseguidos, amados e odiados, bons e maus. Esta é mais uma razão para que eu defenda o regime democrático que, com todos os seus problemas, impede que o poder fique nas mãos de um homem apenas.
Samy, parabéns pelo comentário. Por gentileza, faça outros. O leitor brasileiro precisa conhecer melhor o Iran, seu povo, sua cultura. No Brasil, parte da mídia escreve sobre o Iran sem nunca ter pisado em terras persas, nem em sonho.
“No Brasil, parte da mídia escreve sobre o Iran sem nunca ter pisado em terras persas, nem em sonho.”
Uai! O que isso significa? A propósito, eu nunca estive no século XIX, mas seria capaz de fazer uma boa e fiel descrição sobre o Brasil império!
Claro que o blog de Samy é excelente e altamente esclarecedor – disso niguém duvida, mas a mídia nacional não me parece estar tão ruim assim quanto o nobre colega pretende nos fazer crer.