"Qual a senha do seu cartão de crédito?"
07/01/13 14:28O Irã é o único país que eu conheça onde são os vendedores, não os clientes, que digitam a senha para pagamentos eletrônicos. A conta do restaurante chega e você pede para pagar com cartão. O garçom estende a mão para pegar o valioso objeto de plástico e, com desconcertante naturalidade, pergunta quais os quatro dígitos confidenciais para acessar sua conta. Instantes depois, ele volta trazendo a fatura. Mesmo quando a maquininha portátil é trazida, o funcionário é quem digita o número, como se estivesse fazendo um agrado ao cliente.
Em várias lojas e mercados, a máquina do cartão fica afastada do caixa, o que leva o atendente a lhe perguntar sua senha quase aos gritos, diante de todos os outros clientes e funcionários. Você não tem escolha a não ser responder alto o suficiente para que ele consiga ouvir. Do mesmo modo, vivo ouvindo senhas alheias. No restaurante, “4-4-3-1”, diz a senhorinha na mesa ao lado. Na agência de viagens, a senha do rapaz na minha frente é “8-6-9-1”.
Os iranianos não entendem porque me espanto com essa prática, que não é sistemática, mas muito comum. Para eles, trata-se de um procedimento padrão aceitável e seguro. O único que se recusa a fornecer sua senha a desconhecidos é um amigo com dupla cidadania de país ocidental. Quando lhe pedem o número, ele simplesmente diz que prefere digitá-lo ele mesmo, o que geralmente lhe vale olhares incrédulos e pouco amistosos. Deixar claro que o funcionário não é confiável é uma grave afronta à honra e dignidade, valores ainda levados a sério pelas bandas de cá.
Confesso não ter conseguido entender porque pagamentos com cartão são feitos assim no Irã. A baixa criminalidade, fruto da combinação de uma repressão implacável e do temor a Alá, não basta como explicação _embora o aparato de segurança local permita rastrear e encontrar golpistas facil e rapidamente. Dubai é ainda mais seguro que o Irã, mas ninguém se mete na senha dos outros. Também pensei que pudesse estar relacionado com o fato de haver apenas bancos iranianos no país, onde, devido às sanções financeiras, não funcionam cartões internacionais, como Visa e Mastercard. A margem de ação de quem rouba um cartão dos bancos Parsian ou Pasargad é infinitamente menor que a de um larápio que tiver em mãos um cartão do HSBC ou do Santander. Mesmo assim, seria muito fácil aproveitar-se do descuido dos clientes. E o Irã é um país abarrotado de dinheiro.
Talvez haja mesmo no Irã um pacto de confiança diferente entre comerciante e cliente. Aqui um vendedor de tapete é capaz de lhe entregar uma peça de milhares de dólares sem receber um tostão em mãos, confiando apenas que você, ao voltar para o seu país, irá transferir o valor da compra para a conta de algum parente dele na Europa ou nos EUA. Nossa mente é capaz de achar isso uma ingenuidade irresponsável, mas o esquema funciona. Há quem diga, no entanto, que isso só é feito com clientes estrangeiros, o que tira metade do brilho desse tal contrato de honra.
No fundo, me parece que esse destemor em relação a senhas bancárias reflete a facilidade com que as pessoas perguntam coisas íntimas no Irã. Com freqûencia desconhecidos querem saber meu salário ou quanto pago de aluguel. Também vivem me interrogando sobre minha vida amorosa e escolhas pessoais. O difícil é chutar para escanteio sem ofender o interlocutor. Estou aprendendo a arte de desconversar com leveza e humor.
Excelente matéria, e o mais importante no final, onde o brasileiro ama de paixão cuidar da vida alheia. Mas tudo é questão de cultura, será que acostumariámos com uma mudança dessa ?
Prezado Samy, linda matéria como, aliás, todas as anteriores. Expôs um inusitado e curioso aspecto da cultura desse país tão distante em muitos sentidos. Aqui, quando se trata de dinheiro ou valores a coisa é séria e não confiamos em ninguém. Faz parte de nossa cultura ocidental, mais que apenas brasileira, que não é melhor e nem pior que a iraniana. Agradeço-lhe pelo belo trabalho.
Samy,li alguns artigos mais recentes seus e foi uma grata surpresa perceber registros não tendenciosos e parciais em relação a um país dito “inimigo” de USA ao contrário de blogs e sites por aí em especial um blog conhecido que fala sobre
OM.Seria profícuo termos um jornalismo como o seu falando mais sobre assuntos do OM(Síria,Líbano,Israel,etc.).Parabéns.
Por falar em desconfiança, recentemente vivi uma situação tragicômica: acompanhei um amigo que queria alugar um apartamento. Ao chegarmos em uma imobiliária vimos um apartamento que meu amigo ficou interessado. Pedimos a chave para ver o apartamento. A atendente nos disse que deveríamos agendar a visita ao apartamento, que aconteceria provavelmente só daqui 1 semana e que seríamos acompanhados por um corretor. Argumentei que só queríamos olhar, que deixaríamos nossos documentos todos na imobiliária e que devolveríamos a chave em pouco tempo. A atendente disse que não podia liberar a chave para nós dois por que “muitas pessoas pedem a chave e usam o imóveis desocupados como motel”. Achei graça e expliquei que não éramos um casal gay, que ele era meu amigo apenas, quase um irmão. A atendente disse que eram normas e ponto final. Ainda tentei argumentar que, caso necessário, eu ficaria na imobiliária e meu amigo iria sozinho ao apartamento. A atendente disse que não, que ele (meu amigo) poderia encontrar no caminho outra pessoa e subir com ela ou ele ao apartamento. Bom, desistimos do apartamento.
A agora entendo por que tanto burocracia, carimbos, autenticações no Brasil…. falta de confiança.
Lamentável.
Como os cartões internacionais não são aceitos no Irã, os turistas têm que levar todo o dinheiro em espécie, que pode ser trocado até em algumas esquinas, onde os comerciantes mantêm, à vista de todos, maços de notas de rials. Outra coisa que me espantou é que os caixas eletrônicos são do lado de fora das casas de comércio, virados para a rua, o que seria inconcebível no Brasil.
Pela tradição muçulmana, chave de uma casa deve ficar do lado de fora. Assim todo aquele que necessitar de abrigo poderá entrar. Esta confiança é similar !!!
Caro Mylton, agradeço, porém “relachado” como escrevi é de doer. Relaxadamente, peço desculpas.
Abraços, Alfredo.
caro Alfredo, não fique preocupado com “deslizes” na ortografia, o importante é o conteúdo do texto. Mais uma vez, sua colocação foi muito boa, a nossa cultura, infelizmente está sedimentada na “Lei do Gerson” – “porque não posso levar vantagem?” os nosso padrão ético ainda estão a um nível abaixo do esperado, no meu caso eu poderia muito bem não depositar o restante do valor mas o meu conceito de integridade moral não permitiu, afinal a coisa que eu mais gosto é de colocar a cabeça no travesseiro e dormir com a consciência tranquila.
Excelente texto. O mais curioso é o modo como o senhor justifica a honra dos iranianos, como um temor à ira divina de Alá apesar da forte repressão policial. Me pergunto o que aconteceria num país como esse se de uma hora pra outra todos virassem agnósticos. Caos generalizado ou manutenção do sistema vigente suportado pelos bons costumes?
Seria possivel tambem fazer uma pergunta-espelho: o que sera que aconteceria no Brasil se todos virassem agnosticos de uma hora para outra? Continuaria a bandalheira ou haveria uma melhora suportada pelo respeito mutuo? Lembrando que declaram-se crentes em alguma divindade mais de 90% dos brasileiros…
EXCELENTE texto. Parabéns Samy. Você está nos passando o dia-a-dia dos iranianos com maestria.
Aqui no Brasil a desconfiança é tanta que tememos até as máquinas de cartões… eu mesmo já tive o meu cartão clonado ao inseri-lo numa máquina em supermercado conhecido em todo o Brasil. Recentemente a polícia descobriu que um grupo funcionários do supermercado, subornados por bandidos, repassavam nossas senhas aos meliantes. A desconfiança no Brasil é tanta que, olhando por esse ângulo, o Irã parece um lugar melhor para se viver…
Fernando/Alagoas/Maceió
hahaha cada vez eu gosto mais desse país! <3
Esses acordos de confiança que alguém subscreve num guardanapo soma da transação a ser compensado por outro em algures ,faz parte da cultura árabe.
Durvaldisko, lembrando apenas que o Irã não é árabe, mas persa, uma etnia totalmente distinta dos árabes, com biotipo, língua e cultura diferentes.
Nossa cultura, infelizmente, tem suas raízes fincadas na desconfiança; a confiança não faz parte de nosso imaginário coletivo. Fomos um povo formado, via de regra, pela trapaça, pelo falso, o engodo. Há sempre uma carapaça defensiva, ou preventiva para não ser o tolo ou o bobo da vez. Quando valores culturais são confrontados, surgem estas “difereças” que espantam, quando não escandalizam. Que brasileiro se sente relachado em relação aos bens materiais mais próximos, tipo cordão, carteira, relógio etc.? Sempre a presença do outro, conduzindo junto aquela desconfiança. Eu diria que é o culto de uma ética que não conhecemos, por isso o espanto, quando um desconhecido pede sua senha do cartão. É como se lhe pedisse algo indecoroso, quase uma invasão de intimidade. Caro Samy, que bom saber que existem lugares e pessoas, que por não estarem com essa tensão permamente, com essa desconfiança constante em relação ao outro ,com certeza devem viver mais e melhor.
caro Alfredo, você colocou muito bem as características culturais do nosso ocidente, lá no Irã eu fiquei boquiaberto quando comprei tapetes para a minha família, o vendedor simplesmente falou que eu poderia depositar o valor restante (50% da compra) em um banco na Áustria quando eu voltasse ao Brasil, foi um “choque” de confiança tão grande que eu não entendia nada na hora, o meu filho é que confirmou, realmente parecia que eu estava em outro mundo. Vamos fazer isto aqui no Ocidente e ver o que acontece
Caro alfredo, longe de contestar sua forma de pensar, mas, nem sempre foi assim, nasci e fui criado em uma pequena cidade do interior de São Paulo, hoje tenho mais de 60 anos, e cresci em um ambiente que o maior bem de uma pessoa era sua palavra, se alguém aprontava algo na cidade, a família se mudava, não tinha mais clima para continuar morando lá, há algum tempo atrás um amigo precisou de um tratamento médico muito perigoso e me passou uma procuração sobre tudo o que ele tinha, caso o pior acontecesse, assim que ele ficou bom, devolvi tudo a ele, inclusive cartões e senhas, acredito que a impunidade favorece a malandragem.
Mais uma novidade pra mim. Interessante essa peculiaridade do Irã. Na minha visão, senha é algo pessoal e não vejo a necessidade de expor. Como um turista consegue sobreviver no Irã sem poder utilizar cartões como Visa e Mastercard? O dollar é aceito ou é necessário trocar pela moeda local ?
João, turistas entram carregados de dólar ou euro, que podem ser trocados por moeda local em qualquer esquina.