A amizade forçada entre Irã e Síria
04/12/12 13:06O maior e mais fiel aliado do governo sírio na guerra contra rebeldes que se arrasta há 20 meses e deixou 40 mil mortos é o Irã. Há quem diga que Bashar Assad já teria caído não fossem as armas, o dinheiro e a tecnologia fornecidas por Teerã a Damasco. Tudo em nome do plano comum para resistir à agenda que Turquia, monarquias árabes e potências ocidentais querem impor na região. Mas o curioso é que Irã e Síria, apesar da parceria estratégica, não têm nada em comum. São regimes, povos e culturas que quase tudo opõe, como pude comprovar nos sete dias de reportagem que acabo de passar na Síria.
A Síria é árabe e o Irã, persa. São línguas e culturas completamente diferentes. Os sírios são predominantemente sunitas enquanto os iranianos seguem o islã xiita. O Irã é uma potência econômica movida a petrodólares. Até hoje, apesar de inúmeras rodadas de sanções, o país está entre os 30 mais ricos do mundo. A Síria também tem petróleo, mas em quantidade muito menor. Apesar do impressionante desenvolvimento sob Bashar Assad, o país continua com um longo caminho a percorrer. Paradoxalmente, a Síria tem uma economia muito mais aberta que o Irã. Marcas ocidentais são onipresentes em Damasco. Em Teerã, são raras.
Os dois regimes são autoritários, mas com ideologias distintas. A República Árabe Síria tem um governo secular fundado no início dos anos 70 por um golpe de Estado perpetrado pelo pai de Bashar, Hafez Assad, um general marxista que acreditava na união de todos os povos árabes. Já a República Islâmica do Irã, como o nome sugere, é uma teocracia. Além de governar por meio de leis pretensamente divinas, seus dirigentes cultivam a ideia da excepcionalidade do povo persa. Altos funcionários iranianos usam terno sem gravata e ostentam barba rala e anéis de oração nos dedos. Na Síria, ministros e afins andam sem barba e usam gravata.
Ou seja que a Síria, ao contrário do Irã, é um país liberal em termos morais e sociais. Em Damasco e muitas outras cidades sírias é possível comprar bebida alcoólica em cada esquina. Casais namoram na rua sem ser incomodados ou inquiridos sobre seu estado civil. Há cinema e música ocidental, assim como casas noturnas, algumas das quais ainda operam nesses tristes tempos de guerra. Tudo isso é banido no Irã. Na Síria o uso do véu não é obrigatório, e fiquei com a impressão que a maioria não usa. No Irã as mulheres só podem sair de casa com cabelo coberto. A internet também é muito mais aberta na Síria, onde redes sociais e sites como Youtube podem ser acessados livremente, o que não acontece na rede iraniana.
O sagrado na Síria de Bashar Assad não é a religião, mas a liberdade para praticá-la. Há sunitas, xiitas, drusos, alauítas, ismaelitas, cristãos e até alguns poucos judeus. É verdade que o judaísmo é mais livre no Irã, mas as minorias iranianas em geral se sentem mais confortáveis levando uma vida espiritual discreta.
Síria e Irã são dois Estados unidos por puro pragmatismo estratégico. Ambos enxergam-se como países independentes e soberanos e os únicos verdadeiros defensores da resistência palestina contra a ocupação israelense. A aliança remonta aos tempos de Assad pai, quando a Síria contrariou o mundo inteiro ao apoiar o Irã contra o Iraque de Saddam Hussein, até então amigo das potências. A amizade se manteve quando Bashar assumiu o poder, em 2000. Seis anos depois, os aliados assinaram um acordo de parceria militar de contornos vagos. O comércio bilateral nunca decolou, mas a revolta síria, deflagrada em março de 2011, levou os dois aliados a ser mais importantes do que nunca um para o outro. Damasco precisa de apoio forte, e Teerã teme ficar sem aliados regionais (e, portanto, estrategicamente enfraquecido) se Bashar Assad cair.
No meu voo de Teerã até Damasco, muitos dos passageiros eram claramente funcionários dos dois governos. Na chegada, a fila destinada aos portadores de passaportes diplomáticos era maior que a dos passageiros com passaporte comum. Um grupo de iranianos com visual governista foi recebido efusivamente no desembarque por funcionários sírios. Houve beijinhos no rosto e abraços. Tendo a achar que os iranianos eram membros da Guarda Revolucionária, a elite das forças de Teerã que admitiu em público estar ajudando o Exército de Bashar Assad. Mas é impossível decretar com certeza quem os homens de barba realmente eram.
O fato é que existem sinais de que a aliança perde fôlego. O Irã desde o início da crise parece mais disposto do que a própria Síria a encontrar uma solução política para o conflito. Teerã acolheu há três semanas um encontro no qual oposicionistas sírios fizeram críticas públicas a Bashar Assad. Relatos de imprensa dizem que Teerã está irritado porque parte do dinheiro enviado ao Exército sírio teria ido parar no bolso de generais. Autoridades iranianas também sentem-se desconfortáveis com a enorme quantidade de civis mortos nos combates. Um quadro do regime disse a um dos meus amigos: “Não estamos gostando dessa escalada de violência, queremos que isso pare”. O Irã sabe que boa parte da opinião pública mundial está contra Assad.
A questão central talvez não esteja na aliança Damasco-Teerã, mas no pacto entre a Síria e a Rússia, a grande potência geopolítica que bloqueia movimentações anti-Assad no Conselho de Segurança da ONU. Dias atrás, o presidente russo, Vladimir Putin, reuniu-se com Recep Tayyep Erdogan, premiê da Turquia e hoje arqui-inimigo de Assad. Putin deixou claro que se opõe a qualquer intervenção externa contra a Síria, mas saiu da conversa dizendo: “Não somos os defensores do governo sírio, não somos os advogados do governo sírio”. Isso foi visto como um sinal de que Moscou talvez esteja reavaliando seu apoio incondicional ao governo Assad.
Caro Samy,
Jornalista em tempo integral, com a sua gana por notícia e técnica apurada, não me surpreendo ao ler relatos quase cinematográficos. Brilhante! Parabéns e grande abraço.
Alfredo Gomes de Azevedo · Faculdade Direito e História
O post é de primeira qualidade, sem nenhuma dúvida. Porém, existe algo que ainda não vi nas abordagens que cuidam desses “levantes” populares que se iniciaram na Tunísia e que se espalharam pelo Crescente Fértil, derrubando governos com velocidades maiores ou menores. O caso da Síria, pelas peculiaridades próprias do país será um imbróglio de mais difícil resolução. A questão a que me referi e que ainda não vi abordada é a que se resume, como diria, às legitimidades. A mim tem se apresentado como “legítimo” todo movimento insurgente que venha satisfazer os interesses ocidentais. Emprestam legitimidade a verdadeiros bandos, na maioria das vezes orientados de fora e, não poucas vezes comandados por mercenários.O exemplo mais contundente foi o da Líbia.
O caso da Síria não foge muito á regra na insistência de tentarem convencer a opinião pública mundial de que o fulcro da luta gira em torno da defesa de um suposto eixo “Democrático”, isto é, seria em nome da Democracia que a luta seria legitimada, tirando portanto dos detentores do poder, sempre alcunhados de ditadores, qualquer possibilidade de se defenderem nos foros internacionais. Vejam, não estou entrando no mérito de que estes governantes sejam ou não ditadores.A mim interessa a questã da legitimidade. Interessante é também o fato de que o apoio maior às insurgências, sempre coincidam com regiões ricas em petróleo. Por hipótese: um grupo se insurge contra a monarquia saudita( pouco provável porque de pronto seria eliminado), mas imaginemos que se sustentasse em confronto contra o que há de mais perfeito governo antidemocrático. Qual seria a postura dos democratas Ocidentais? Dariam apoio logístico, mercenários e considerariam legítma a insurgêcia? Pouco provável.
Noutra frente e com outra motivações, a Catalunha se insurgisse contra o poder central espanhol? Também por hipótese qual seria a postura dos apoiadores desses levantes? E a Irlanda?
Acho por fim, que a legitimação do poder e o respeito a ele devido, hoje se encontra, nos países periféricos, sobremodo aos possuidores de riquezas minerais estratégicas, ao sabor da boa ou má vontade que para com eles tenha o poderoso Ocidente. Gostaria muito de ver esse debate em foco, caro Samy.
Abraços, Alfred
Acho que a oposição síria vai gerar uma nova teocracia na região, se o governo laico de Bashar Al-Assad cair. Samy, eu queria saber mais sobre o sufismo no Irã. Abraço
Otimo post. De fato, em relações internacionais os países são movidos por interesses nacionais e realpolitik e não por ideologia. O seu relato é mais um exemplo.
Outro exemplo é a aliança entre os EUA e a Arábia Saudita: dois países com ideologias e políticas internas muito distintas, mas no cenário externo grandes aliadas.
Abrs.
São duas ditaduras opressivas, e isso basta para aproximá-las. A explicação é essa, embora confunda que enxerga o mundo através de ideologias políticas ou seitas religiosas. As tiranias fizeram entre elas uma versão do pacto Ribbentrop-Molotov.
Um sinal disso é que ambos os países expulsaram os judeus, de forma mais ou menos violenta, mais ou menos declarada, um pouco mais repressora ou um pouco mais tolerante, mas em nenhum caso sutil. Isso aconteceu recentemente, nas últimas décadas, um instante na história milenar das comunidades judaicas nesses países.
Tirania é tirania, o resto é detalhe.
Caro Samy,
Sou leitor assíduo do seu blog, além de constantemente elogiá-lo e recomendá-lo a todos que conheço, pois é muito bom saber sobre os usos e costumes de um país tão satanizado.
Gostaria que você abordasse a relação entre o Irã e as ex-repúblicas soviéticas, como a Armênia, o Azerbaijão e, especialmente, com os países da Ásia Central, como o Turcomenistão, com quem o país divide uma enorme fronteira.
Desde já, agradeço pela oportunidade. Abraço