Papo existencialista com taxistas iranianos
13/11/12 13:04Passo muito tempo em táxis, indo a entrevistas em bairros distantes ou preso nos engarrafamentos monstruosos de Teerã. Até meses atrás, matava o tédio observando a paisagem e organizando emails no smartphone. Tudo mudou depois que as aulas de farsi começaram a surtir efeito, graças ao empenho de Sara, minha implacável professora. Hoje o que ouço faz sentido, às vezes entendo bem e, melhor de tudo, já consigo construir frases completas, usando diferentes tempos verbais. Falo truncado e devagar, mas o suficiente para aproveitar cada corrida de táxi como exercício prático. As conversas quase sempre giram em torno de política (tema tratado sem tabu) e futebol.
No entanto, o mais interessante é que, para além de minhas intenções meramente utilitárias, essas conversas muitas vezes acabam se transformando numa incrível experiência humana. Há taxistas de todos as idades, origens e opiniões. E as histórias pessoais que compartilham comigo, com suas alegrias e tragédias, formam um recorte de realidade que ajuda a entender o Irã de hoje.
Saïd, por exemplo, um grandalhão na faixa dos 50 anos, é formado em arquitetura e fala italiano, inglês e algo de francês. Morou oito anos em Turim, onde tinha uma loja de tapetes, e já viajou a Mônaco, França, Tunísia e vários outros lugares a passeio e a trabalho. De volta ao Irã, comandou até pouco tempo atrás uma empresa que fabricava embalagens especiais para a indústria petroleira. Mas as sanções econômicas o levaram à falência, e Saïd virou taxista. “Perdi milhões, e hoje sou obrigado a contar trocados”, me disse. “O táxi me distrai, penso menos nos problemas”. Saïd, que diz viver um casamento fracassado, se despediu perguntando se eu não queria comprar tapetes de um estoque guardado na casa da irmã.
Bahram, com 40 e poucos anos, também morou no exterior. Ele cresceu em Paris, onde acompanhava os tios, funcionários da embaixada iraniana. Voltou ao Irã nos anos 90 falando francês perfeito, inclusive com carregado sotaque parisiense. Mas tudo que achou em Teerã foi um cargo de tradutor na mídia estatal. Como o dinheiro não dá para sustentar a família, Bahram também teve que virar taxista. Seu principal cliente é um gringo, feliz da vida por ter à disposição alguém tão distinto. Há alguns meses, Bahram candidatou-se a uma vaga para ser motorista da Embaixada da França em Teerã, mas não conseguiu o emprego porque mora numa periferia muito distante. “Sinto muita saudade da França, mas não sei quando poderei dar uma volta por lá”.
O sessentão Amir é um homem posudo e amargo, com a cara deformada pela tristeza e pelo cigarro. Ele foi um oficial da Aeronáutica na época do xá Reza Pahlevi, que jura ter conhecido pessoalmente. Amir chegou a fazer treinamento técnico nos EUA, com quem o Irã tinha ótimas relações naquela época. O poder e o status do oficial evaporaram-se com a Revolução Islâmica, em 1979, que o empurrou para a reserva. Desde então, luta pela sobrevivência da família. Como é de se esperar, Amir detesta o governo dos “mulás” e acha que os iranianos são “burros” por ter derrubado o regime do xá.
Também amargo, Behrooz, 29, formou-se em engenharia, mas nunca encontrou emprego. Ele gostaria de casar-se, mas diz não ter condições de sustentar uma família. Por isso vive com os pais, como boa parte dos iranianos não casados. Mehrdad, um moleque de 23 anos com cabelo espetado de gel, só pensa em emigrar para a Suécia, onde vivem parentes. Ele me perguntou o que eu achava da ideia. Desconcertado com a responsabilidade de responder uma questão existencial tão profunda, só conseguiu dizer algo bastante tolo: “Faz muito frio lá”.
Mohamad, um tiozinho nos seus 50 anos, parece mais feliz com a vida. Suas crianças cresceram, estudaram e hoje são adultos com bons empregos. Um dos filhos mora na Europa e já bancou várias viagens do pai ao Velho Continente. Mohamad achou os franceses “muito frios”, mas adorou a Itália. “As pessoas de lá são afetuosas e brincalhonas, como os iranianos”. Ele morre de rir ao contar como ficou bêbado num voo internacional depois de descobrir que não precisava pagar pela cerveja.
Outro pai orgulhoso é Ahmad, um homem sisudo e de bigode branco, que tem uma filha médica e um filho engenheiro. Andei um bocado com o senhor Ahmad, que trabalha na agência de táxi do lado do prédio onde moro. Uma figura. Com cerca de 60 anos de idade, é um dos mais fervorosos simpatizantes do governo iraniano que conheci. Ele sempre começa o papo perguntando sobre o Brasil. “Tem muito problema com drogas?”. “Por que essa senhora presidente [Dilma] se afastou do Irã?”. E a conversa invariavelmente ruma para os inimigos da República Islâmica. Ahmad sempre dá um jeito de dizer “Morte aos EUA” e “Morte a Israel”. Às vezes pinta também um “Morte a Saddam”, resquício do ódio pelo fato de o então ditador iraquiano ter invadido o Irã e gerado uma guerra atroz nos anos 80. Mas como Saddam já morreu, a frase não é pronunciada com a mesma ênfase. Religioso devoto, o tiozinho Ahmad coloca Deus em praticamente cada frase. “Graças a Deus”. “Se Deus quiser”. “Glória a Deus”. Confesso que essa conversa já me cansou, e prefiro andar com outros motoristas.
A cada corrida, uma história. Já vi um motorista defender com unhas e dentes, no longo trajeto do aeroporto internacional de Teerã até a minha casa, que o islã xiita é a única salvação do mundo e que a Pérsia é o epicentro intelectual, moral e científico da humanidade. Outro jurava ser o único iraniano a possuir um título de treinador de futebol da UEFA, a poderosa federação europeia. Falava alemão e dizia ter condições de ser técnico de qualquer time. Reclamou por não ter chance no razoavelmente rico campeonato iraniano, que só “funciona na base do apadrinhamento”. Mas no fim da corrida, admitiu que o passado de militância antirregime dificultava qualquer contratação. Acabou perguntando se eu tinha contatos no futebol brasileiro.
Quase sempre, a experiência com os taxistas é cordial, desde que se aplique a regra de combinar o preço antes de entrar no carro. Certa vez, um motorista fedido e mal encarado resolveu aumentar o preço no meio da corrida “por causa do trânsito”. Bati o pé e jurei que não pagaria um centavo além do combinado. O sujeito ficou agressivo, e o único jeito foi descer antes do previsto e terminar a corrida a pé, sem pagar o adicional que ele exigia.
Mas há também casos de extrema gentileza. Uma vez um senhor foi até minha casa para dar um pote de geleia de limão feita pela esposa.
PS: Alguns nomes foram alterados para preservar a identidade das pessoas citadas.
O que causa profunda tristeza é a cultura árabe ser aos poucos abafada pela cultura religiosa. Um país lindo, com tradição milenar na cultura, onde buscava-se cultura e conhecimento, desde a antiga Pérsia. Levará muitos anos para verificarem que a hegemonia da religião sobre a humanização,a a cultura, tolerância e fraternidade só traz prejuizo ao povo e vantagens para a classe dominante que estabelece uma teocracia militarizada.
Reinaldo, lembrando apenas que o Irã não é um país árabe nem tem cultura árabe, mas persa.
Samy, Parabéns pelo seu blog, tem nos mostrado a verdadeira face do Irã, a visão do seu próprio povo que é o que interessa. Já estava me questionando se não foi o Irã quem causou a segunda guerra mundial…rsrsrs
Faça uma cobertura do “Ashura” para Nós…
Ricardo, o Ashura foi tema da primeira matéria que assinei na Folha ao chegar ao Irã, um ano atrás.
Todas as vezes que leio a edição da folha on-line, sempre vejo suas impressões sobre esse belo país, chamado Irã, que tu estudas.
Aliás, sugiro que essas crônicas se tornem um livro, com toda certeza comprár-lo-ei.
Bertrand Russel “nos diz” que o maior remédio contra o nacionalismo é viajar.
Acredito que ao ler essas suas impressões todos os teus leitores viajamos.
obrigado, e boa viajem pelo Irã e adjacências.
Samy, ainda não li nem um post sobre a homossexualidade no Irã. Sei que é um tema difícil de abordar aí, mas, se puder diga-nos alguma coisa. Existem locais de encontro gays (bares, praças). Dizem que a mudança de sexo é permitida, é verdade? Vi recentemente uma foto de jovens enforcados numa praça pública e a legenda da foto dizia que eram jovens gays enforcados em público no Irã. Isso procede ou é mais uma “mentira” da midia ocidental?
Um abraço
Fernando
Fernando, mudança de sexo é um processo às vezes incentivado pelo governo, que não reconhece a homossexualidade. A sodomia é, em tese, passível de pena de morte, mas quase nunca aplicada oficialmente por essa razão porque a condenação exige que haja quatro testemunhas, o que é obviamente difícil de encontrar. Gays levam uma vida discreta, mas menos do que se imagina.
Certamente há muito desconhecimento do Irã por nós ocidentais-o regime dos aiatolás não permite sequer a interação pela net.Mas cá prá nós: Um país que apedreja e decapita supostas pessoas criminosas ou mesmo as executa, por enforcamento, em “guindastes da morte” em praça pública e sob aplauso da multidão.Um país onde ser gay ou ser hérege é motivo para ser condenado à morte.Do que adianta lindas paisagens naturais e história, se não há o mínimo respeito à dignidade humana.
Fui ao Irã em maio desse ano e adorei o país. A hospitalidade do povo em geral, as paisagens naturais e principalmente as históricas foram impressionantes e gratas surpresas. Desfiz vários mitos e imagens reducionistas que a mídia vulgar tenta transmitir. Recomendo aos leitores que conheçam o Irã, uma viagem que vale a pena. O visto sai rapidinho. Andei de metrô, ônibus, táxi, barco etc. Só faltou camelo. (Risos) Além das iranianas, muito bonitas, as crianças são doces e educadas. Mas acima de tudo, são crianças: vi algumas andando de bicicleta no meio de uma mesquita, apesar dos pedidos da mãe. Outras, dentro de fontes, caminhando com água pelo joelho, aos gritos de alegria. Meninos pescando no Mar Cáspio e andando de bicicleta, apostando corrida. Enfim, nada da imagem aterrorizante que se tenta passar por aí. Samy, faz uma reportagem sobre as crianças iranianas e seu lazer. Entrevista algumas, para saber o que pensam sobre esportes, livros, escola, namoro, família. É difícil a gente ver algo sobre como pensam crianças de outros países.
Ficou pra hoje minha vontade de dizer que gostei muito deste post. Não vou ficar de frescura, mas realmente é dos melhores que já li aqui na folha.
Histórias pessoais são sempre muito ricas pra mostras o quanto a vida dá voltas nesse nosso mundo laissez-faire. O que tem tb de gente herdando milhões e que se tivesse que trocar um pneu de carro no deserto morria de sede, não tá no gibi.
E como em todo o mundo, tem que combinar o preço antes. Voltei hoje deste fascinante país hoje e uma mesma corrida chegou a custar 70 mil e 200 mil Rials. (a taxa de câmbio foi na média 30 mil Rials por dólar).
Querido Samy,
passei por aqui e tive o prazer de ler o seu post, é um livro, transforme cada parágrafo em capítulos, monte um bazar de experiências, sua leveza ao narrar é um tom guache aprazível criando um contraste com cores tão fortes que você vê; útil e entretém, e quem sabe até mais…
Mas você quase me cria um problema existencial — “tiozinho de 50” — eu tenho 54 quer dizer que na Copa de 2014 já serei vovozinho?
Forte abraço
peazê
Seu blog é de muito bom gosto, até as pessoas que comentam são diferentes, parabéns!!!
É isso Samy, o mundo é assim mesmo e, salvo melhor juizo, os taxistas, representam os melhores interlocutores para se ter uma média sobre realidades que nos escapam. Formamos ,a grosso modo uma idéia a partir de lugares comuns, preconceitos arraigados e que não resistem a uma boa conversa com meia dúzia de taxistas. Penso que nos últimos tempos, poucos países foram tão maltratados em suas realidades como o Irã. Não é fácil se encontrar na imprensa ocidental, relatos desse dia-a-dia tão semelhante ao nosso, com esse leque de opiniões, pontos de vistas, colhidos com inteira liberdade e que de algum modo traça o perfil verdadeiro de um povo. Parabéns por ter essa facilidade de transmitir verdades, colhidas da boca do povo, sem o “mau costume” tão comuns aos seus colegas repórteres de deixarem pegadas subjetivas no que noticiam e, acabam por turvar o noticiado.
Não tenho a mínima vontade de conhecer o Irã.Esse país é um retrato vivo da idade média.Se não fosse o petróleo o regime dos “mulás” já estaria acabado há tempos.
Sr. Eduardo, permita me discordar de vc. Por que muitas pessoas pensam assim é que a imagem do Irã continua obscurecida para o Ocidente. É claro que o Irã não é comparável a nenhum paraíso de 1º mundo feito sob medida para turistas. Mas cada vez mais ouço relatos de pessoas que foram conhecer este país e ficaram encantadas com a beleza natural, a riqueza histórica e a hospitalidade de seu povo. E por falar em Idade Média, por que as pessoas só enxergam este capítulo da história como barbarismo e obscurantismo? Porque não enxergam o desenvolvimento humano e científico que despontou também nesta epoca?
Vale sempre a pena revermos nossas opiniões. Abraço.
O retrato vivo da Idade Média está localizado do outro lado do golfo.
Chama-se Árabia Saudita. Lá existem masmorras, caças às bruxas, decapitações públicas, perseguição religiosa, etc.
Esses relatos me lembram o tempo da ditadura militar aqui, em que uns poucos fervorosamente torciam a favor e boa parte na esperança de trocar de ares.
realmente Sr. Edison os relatos me lembram a ditadura, principalmente os relatos do meu pai, que até hoje ele afirma que a ditadura veio para expurgar os “comunistas oportunistas”, hoje corruptos condenados no STF, afinal, depois desta devassa nos “autenticos” socialistas que pregavam a distribuição de renda para a população e agora comprovam que a “distribuição” de renda era para os membros do Partido e afins. Parabens Samy pelo seu blog, voce simplesmente conta a história de um povo com um valores morais que não diferem da nossa, temos muitos pontos em comum, uma população que vive como nós, é claro com costumes do dia a dia diferentes, por exemplo padrões de comportamento social, mas as reclamações são as mesmas a respeito dos dirigentes da nação. Quanto a troca de ares, hoje trocamos os ares, os maus ares serão confinados na PRISÃO por corrupção ativa, passiva e FORMAÇÃO DE QUADRILHA, o meu unico medo é que na ditadura os “comunistas” ensinaram os bandidos a organizarem-se (leia-se COMANDO VERMELHO) e agora os bandidos darem aula aos “coitados” condenados como aprimorar os crimes.
É interessante ver como as pessoas pensam ao redor do mundo. Dá pra ver também que tem muito neguinho lelé da cuca!! rsrsrsrsrs
Tenho vontade de conhecer, quem sabe um dia, o Oriente Médio, principalmente, a cidade de Jerusalém!!
Super interessante estes relatos, mas Samy, quando teremos relatos de iranianos nos trasportes publico como o metro e o ônibus ? Aí sim acredito que seriam dezenas de ricas histórias. Quem sabe sabe quando a fluência no farsi melhorar. Estou sendo inconveniente na sugestão ? Não leve a mal. Seu blog é disparado o mais interessante da Folha, parabéns.
Obrigado, André. Ando bastante de ônibus também, mas há menos interação com as pessoas. Em todo caso, dica anotada.
E a cada visita ao seu Blog é um experiência única também, é tão bacana ler sobre algo que parece tão distante da nossa realidade e ver que no final não é tão diferente assim!
Eu ia dizer o mesmo!