Beleza e lágrimas na capital religiosa do Irã
15/10/12 08:01Voltei há pouco de Mashad, no extremo nordeste do Irã, cidade desconhecida da maioria dos brasileiros mas que é uma metrópole de 3 milhões de habitantes e um dos maiores e mais visitados santuários no mundo.
O aeroporto de Mashad, ou Meshed, tem voos internacionais, os hotéis no centro são modernos e caros e as ruas fervilham de peregrinos estrangeiros falando árabe, inglês, pashtun, urdu etc. É de longe a cidade mais limpa, bem cuidada, florida e ordenada que visitei em quase um ano de andanças pelo Irã.
Mashad abriga o túmulo do imã Reza, descendente direto do profeta Maomé e, por isso, é membro do grupo que originou o xiismo. Aproveito a sua atenção, caro leitor, para corrigir uma inverdade amplamente difundida no Brasil, pela qual xiitas seriam mais “radicais” que sunitas. Pura bobagem. Xiitas não são e nunca foram mais extremistas que os sunitas. Aliás, hoje o grupo mais violento entre facções islamitas é a Al Qaeda, sunita. A rixa entre sunitas e xiitas, duas fés com liturgias e crenças opostas ao ponto de às vezes parecer religiões diferentes, partiu da discórdia acerca da sucessão do profeta Maomé, fundador do islã, após sua morte no século 7. Os sunitas (partidários da “suna” = tradição) acreditavam que os companheiros de Maomé eram os mais qualificados para tomar a frente dos fieis. Já os xiitas (partidários da “xia” = herança) formaram um grupo dissidente que achava que só quem era parente de sangue de Maomé poderia liderar a comunidade.
Pois bem, voltemos então ao imã Reza.
Por pertencer à linhagem familiar do profeta e por sua trajetória de devoção, justiça e martírio, o imã Reza, nascido em Meca (atual Arábia Saudita), é tido como um dos santos mais importantes do xiismo. A história o retrata como um homem simples, que tratava a todos com humildade e respeito, e tinha uma generosidade tamanha que a maioria das pessoas não entendia. Morreu na Pérsia (atual Irã), a milhares de quilômetros de casa, envenenado por um califa sunita invejoso da popularidade que permitia a Reza engrossar cada vez mais o número de muçulmanos xiitas. O corpo foi enterrado ali mesmo. O túmulo virou santuário, e o santuário, de ampliação em ampliação, tornou-se uma das maiores mesquitas do mundo em superfície (mais de 598 mil m²) e capacidade (700 mil fiéis). Seu domo de ouro domina Mashad.
Cravado no centro da cidade, o complexo da mesquita abriga enormes pátios, várias salas de oração, biblioteca, museu, centro de estudos e até um supermercado. A arquitetura é ao mesmo tempo grandiosa e refinada. Os mosaicos de espelhos e azulejos em tom predominante azul-turquesa são pura obra de ourives. Os corredores do prédio central cruzam diversos portões cobertos de ouro até chegar ao túmulo do imã Reza, que fica dentro de um cubo de ouro e prata. A demarcação entre as alas masculina e feminina passa pelo túmulo, fazendo com que multidões de homens e mulheres se espremam na volta do cubo sem se tocar.
Sempre cheio, o mausoléu do imã Reza reflete a essência do islã xiita: passional, intenso e místico. A qualquer hora ou da noite, multidões de homens e mulheres absorvidos pela dor do martírio do imã choram copiosamente ao se espremerem num empurra empurra asfixiante até conseguir tocar o túmulo. Fieis acreditam que isso trará sorte e benção – prática rejeitada por sunitas puritanos, que a enxergam como superstição.
Todos, absolutamente todos os tipos de pessoas passam por lá. Velhos, crianças, cadeirantes, imigrantes afegãos, peregrinos milionários, mendigos, bombadões… Na ala feminina, a mesma diversidade. Até mesmo piriguetes cujo chador deixa à mostra alguns fios de cabelo oxigenado rezam com devoção comovente. Convém não dar as costas ao túmulo, por isso todo mundo se desloca de lado ou andando para trás, gerando esbarrões constantes.
Esse movimento incessante e poderoso é monitorado por dezenas de voluntários reconhecíveis pelo uniforme preto e pelo espanador colorido com o qual tentam coordenar a maré humana. Os voluntários são médicos, advogados, comerciantes ou banqueiros, membros de influentes famílias locais que dedicam ao menos um dia da semana ao santuário. Há centenas de pessoas na fila esperando um dia ter a honra de integrar a grade de trabalhadores a serviço do imã Reza.
Também é uma honra -e uma benção- fazer doações ao mausoléu, que na prática é hoje uma verdadeira fábrica de dinheiro. Há vários pequenos escritórios espalhados pelo complexo onde fieis podem fazer depósitos _o que quiserem, e somente se quiserem. Uns deixam algumas envelhecidas notas de pouco valor, outros doam tijolos de dólares. O próprio túmulo serve de depósito onde as pessoas inserem a toda hora dinheiro e joias. Há relatos de ricos empresários que morreram deixando fortunas ao imã Reza, que também é proprietário, por meio da diaspora iraniana, de prédios e terrenos nos EUA e na Europa. A fundação que administra o santuário investe em agricultura e indústria e tem um patrimônio avaliado em bilhões de dólares.
Essa prosperidade, alimentada tanto pelas doações quanto pelos cerca de 12 milhões de peregrinos do mundo inteiro (inclusive dos EUA) que passam a cada ano pela cidade, irradia-se por toda Mashad, cheia de carrões, gente bem vestida e lojas de todo tipo (entre as quais grifes ocidentais como Benetton e Diesel). Alguns restaurantes locais estão entre os melhores que experimentei no Irã.
O curioso é que, apesar de ser chefiado por um alto clérigo ligado ao regime, o santuário mantém-se alheio às baixezas da política. Não é um lugar de manifestações partidárias nem de exaltação governista. Parece haver um pacto implícito pelo qual todo mundo em Mashad concorda em que o imã Reza transcende clivagens e ideologias. Diz-se que o presidente Ahmadinejad forçou a barra até conseguir visitar o santuário após sua controversa reeleição, em 2009, pois a turma do mausoléu não o queria por lá. Mais curioso ainda é saber que o aiatolá Ruhollah Khomeini, fundador da República Islâmica, jamais esteve no santuário enquanto dirigiu o Irã (1979-1989).
Bons tempos aqueles em que pessoas sabiam, realmente, ou ao menos se esforçavam para fazer uso da educação ao se expressar e transmitir ao outro o que desejavam comunicar, sem cair na vala suja da ofensa pessoal ou da tentativa de desqualificar seu interlocutor. O comunicar-se era então uma arte, quase um dom. Bons tempos aqueles! Entretanto, lamentavelmente, esses bons e apreciáveis costumes parece-nos que estão se perdendo nos descaminhos da vida moderna, facilitadora de percepções apressadas e posturas venais abraçadas por muitos. É uma pena! Uma grande pena, realmente.
Em tempo, mais uma vez, minhas congratulações ao Samy por mais esta excelente e enriquecedora matéria.
Samy experimenta o seu farsi, aqui vai um link q é 8ª parte de depoimentos dos prisioneiros politicos, mulheres, jornalista… eu digo prisioneiros sem culpa, as outras partes estão anexadas nesta, muito interessante, só um detalhe se vc realmente mora em Teerã e se usa internet nacional corre o risco de ñ poder abrir, aqui vai:
http://www.iranianuk.com/page.php5?id=20121022143334022
É importante frisar que no Irã, um não muçulmano pode visitar um local sagrado do Islã sem correr o risco de ser morto por isto. Se ele tentasse visitar Meca ou Medina seria degolado pela ofensa.
Minha nossa senhora, de onde vcs tiram estas notícias!!!
Talvez se esconder ou negar a sua verdadeira crença sim, possa visitar!
É isso aí, André. Eu visitei várias mesquitas no Irã. E portava um crucifixo à mostra, depois de perguntar à guia, recebendo dela a informação de que não havia problema algum. Não sofri um só ato de discriminação. Aliás, andei intencionalmente com o crucifixo por várias cidades, bazares, prédios públicos etc., justamente para testar a hipótese. Era uma das dúvidas que eu pretendia tirar nessa viagem. Desde o avião na chegada, vi umas mulheres que o levavam explicitamente no peito, sem qualquer problema. No islamismo, Jesus é considerado um profeta. Em outras religiões, é um tanto diferente.
Bom eu creio q existe um conceito errado aqui de misturar iraniano com o Regime Islamico!
Talvez Samy poderia disponibilizar um post sobre assunto.
De fato na Árabia Saudita é completamente diferente, vc vai para a Turquia e pode circular a vontade e para onde vc quiser com ou sem véu, tem uma mistura fascinante de gente andando nas ruas, isto sim é um país muçulmano secular. Agora no Irã é diferente, iranano é hospitaleiro por natureza, gosta de estrangeiro e o governo também quer passar uma boa imagem então também dependendo quem estiver para te receber, a situação muda.
Samy de fato vc escreve bem mas, sinceramente, não quero te ofender, ou vc recebe bem do Regime Islâmico ou não sabe de nada. O q vc escreve aqui é só elogios ao governo, descreve um país rico com um povo cheio de conforto apesar de não gozar de muita liberdade; o q vc escreve sobre existir injustiça mas tão de leve q dá a ideia ao leitor brasileiro q a final aqui no Brasil também há muita injustiça!!!
Escreva Samy sobre as prisões q estão cheios dos jornalistas, advogados, mulheres, estudante, até gente simples como a gente q o governo acha q representam perigo para a sua soberania, gente de outras crenças como os sunitas, bahá’ís, de outras etnias como os kurdos;
Escreva sobre pobreza abaixo do zero (como o próprio povo chama a misera), pobreza q obriga os pais venderem um dos seus rins para ganhar dinheiro; pobreza q faz as meninas acatarem aos casamentos por contrato ou se vc acha q este tipo de casamento é uma questão cultural e aceito pelo povo está muito enganado;
Escreva sobre pena da morte dos menores, sobre esta Mashad e quanto os mullas roubam dos cofres de Imam Reza, escreve sobre mansões e palacetes dos ayatolláh’s , Já escreveu sobre a Neda q foi morta em direto e ao vivo para o mundo inteiro? Ou vc também acha q aquilo foi show?! Ou os jovens q foram reconhecidos através de alta tecnologia vendida pela Nokia e Siemens ao governo iraniano e presos no Kahrizak, sabe onde é Kahrizak??? Sabe Samy q lugar é este?! Claro q não sabe a final vc não está pago para saber estas coisas!!!
Podemos discutir, mas sem ofensas, por favor.
Espero bem q sim Samy!
Samy, a cada artigo seu vou me convencendo mais e mais da forte semelhança entre os povos iraniano e brasileiro. Ao ler que o tal monumento religioso funciona como uma verdadeira “fábrica de dinheiro” parecia estar lendo sobre algo nosso, daqui mesmo. Impressionante!
Prezado Samy gostaria de te fazer uma pergunta que nada tem a ver com esse seu post que por sinal achei sensacional. O Irã possui diversos pontos turisticos que me agradam. Uma curiosidade que sempre tive é sobre a poligamia no Irã, queria saber se é bastente comum, se é regra geral ou a maioria das familias são compostas de 1 casal apenas ?
Caro André, a poligamia praticamente inexiste no Irã. Trata-se de algo mais comum nos países árabes, mas mesmo assim em proporções muito pequenos.
Caro André, a poligamia praticamente inexiste no Irã. Trata-se de algo mais comum em alguns países árabes, mas mesmo assim em proporções muito pequenas.
Como a poligamia praticamente inexiste no Irã???!!! vc não lê as notícias? será q vc já aprendeu farsi ou se relaciona em inglês?
Só pode ser por isto q vc não sabe das coisas
Que notícias? Acho que quem está mal informado é você. Sim, estou me virando cada vez melhor em farsi.
O governo está mesmo incentivando poligamia, a situação socio-economico de país está cada vez pior, com certeza vc tá morando num belo apartamento na zona norte de Teerã e quando viaja se hospeda nos melhores hoteis, o q é absolutamente natural. Pode ter certeza q não estou mal informada não e se vc quiser eu posso passar para vc todos os links q vc precisar, eu sinceramente acho q vc está falando de um outro país!!!
Se quiser pode me mandar email, o endereço eletronico tá valendo e é verdadeiro
Lendo seus posts, em especial aqueles que abrangem o islamismo, sempre tenho a impressão de que o livro “Tirando o sapato”, do Nilton Bonder, deveria constar de sua “biblioteca”. Ele é um rabino carioca, de mente aberta, escritor, pacifista. O subtítulo do livro é “O caminho para o outro”. E fala da convivência dele com pessoas de outras religiões, inclusive muçulmanos, durante uma peregrinação pelo Caminho de Abrahão, da Turquia a Israel (trata-se de um projeto da ONU em parceria com Harvard). O livro relata não só a viagem, mas também as transformações vividas, a necessidade de se tirar o “sapato” (conceitos, preconceitos, pré-conceitos) para tentar entender a questão religiosa do ponto de vista do outro. Ou seja, para pisar no terreno do sagrado, como Abrahão fez, tem que se tirar o “sapato”. A meu ver, você está sempre “tirando o sapato” quando toca nessas questões. Parabéns pelo post. Em tempo, para evitar mal entendidos/comentários inconvenientes: não sou judia; apenas, como o Nilton Bonder, tento manter minha mente bem aberta. Deus é único. Para todos.
A fundação que administra o santuário investe em agricultura e indústria e tem um patrimônio avaliado em bilhões de dólares.
Grande Irã, belo exemplo, nem digo mais nada.
Olá Samy, eu realmente viajei a Mashhad e entrei junto com os fiéis no mausoléu do Imam Reza lendo apenas lendo esta postagem! Eu tenho alguns amigos iranianos que citam esse santo xiita com tanto carinho e devoção que realmente fiquei com vontade de conhecer esse lugar! E ainda recomendam que quando eu estiver lá ou quando falar com alguém de Mashhad que possa transmitir o meu “salam” ao Imam Reza! Será que você poderia fazer esse favor para eles, Samy?
Parabéns pela descrição detalhada e genial da história, da qualidade artística do monumento e de seu funcionamento, assim com da diversidade dos fiéis !
Mais um excelente post. Sinta-se o grande responsável por eu passar as minhas próximas férias neste belo país. Parabéns!
Genial a descrição da piriguete iraniana. Samy, depois de ler seu blog fico cada vez com mais vontade de conhecer o Irã.
Ótimo artigo, Samy.
Na minha próxima viagem ao Irã pretendo conhecer essa cidade. A imagem que você nos passa é de um ambiente muito mais agradável do que a da Mesquita do Imã Khomeini, nos arredores de Teerã. Achei essa muito pesada.
Interessante a parte que fala dos sunitas: Al Qaeda, Hamas, Salafistas e Talibã. Hoje, o sunita Hamas está se aproximando de salafistas e cada vez mais alheio ao Irã e os outros são inimigos.
No entanto, por causa da invasão da embaixada dos EUA e dos reféns os xiitas ficaram tidos como os mais radicais, o que não é verdade.
E assim a gente vai aprendendo com sua coluna, a melhor da Folha. Parabéns!
Esse Henrique é uma figuraça, xiitas e sunitas impondo regras esquizas nas sociedades e jogando bombas uns nos outros nunca foram radicais, não, são todos santos, mais santos ainda os xiitas, não é Henrique?
Caro Sr. Edison, aconselho-o a estudar e entender a diversidade religiosa e a cultura de um povo antes de tecer comentários, o Sr José Henrique demonstrou conhecimento e experiencia “in loco” da cultura e da religião no Irã e corroboro com ele nos seus comentários, inclusive porque já estive lá.
para não haver entendimentos dúbios, eu concordo plenamente com os comentários do Sr. José Henrique dos Santos.
Eu só solicito que seja menos ideológico e mais racional, mas seria um milagre isso, não?