Relato de uma coletiva com Ahmadinejad
03/10/12 14:02O aviso veio por SMS na manhã do último domingo, dia útil aqui no Irã. O governo recorria mais uma vez às mensagens de celular para avisar que o presidente Mahmoud Ahmadinejad falaria com a imprensa na tarde do dia seguinte. Nenhuma dúvida de que o tema central da entrevista coletiva seria a queda vertiginosa do rial, a moeda nacional, que perdeu 40% em uma semana, causando pânico generalizado num país já submetido a inflação e desemprego.
Mesmo na reta final de seu segundo mandato e impedido por lei de se candidatar novamente na eleição de junho, Ahmadinejad precisava reagir à artilharia pesada das facções inimigas dentro das próprias fileiras do regime. Quem acompanha a política interna iraniana sabe que o presidente está isolado e enfraquecido por adversários poderosos que o acusam de ser incompetente na gestão econômica e de defender ideias liberais incompatíveis com a moral estatal (sim, caro leitor, Ahmadinejad é hoje o mais moderado dirigente iraniano, ao menos em matéria de liberdades individuais).
Atendendo a recomendação do SMS, cheguei às 13h da última segunda-feira no complexo ao centro de Teerã que abriga o governo e as residências oficiais de seus mais altos dirigentes. Os prédios, com poucos andares e enfileirados ao longo de ruas fechadas para o trânsito, são sisudos e sem luxo. A coletiva começaria uma hora depois, uma vez feitos todos os procedimentos de segurança, muito menos rigorosos do que se espera no coração do regime iraniano.
Cerca de 150 jornalistas, fotógrafos e cinegrafistas, repórteres iranianos e estrangeiros como eu, rapidamente abarrotaram uma grande sala de paredes brancas e teto altíssimo, espécie de sala de conferências enfeitada para a ocasião. Em cima do palco, a mesa onde o presidente falaria tinha um arranjo de enormes flores coloridas. Na parede de trás, um cartaz anunciava o evento em inglês e farsi: “Conferência de Imprensa do Senhor Presidente da República Islâmica do Irã, outubro 2012”. Como a entrevista atrasou, repórteres ali presentes matavam o tempo batendo papo sobre tudo e nada. Por volta das 15h30, uma agitação se espalhou entre os homens do presidente na sala, seguranças e assessores reconhecíveis pelos ternos escuros sem gravata e barba rala, prenunciando a chegada do chefe.
Ahmadinejad entrou na sala a largas passadas e logo acomodou-se no palco. Parecia mais magro e abatido do que nas outras vezes em que estive perto dele. Seu maxilar estava tenso quando todos se levantaram para o hino nacional. Enquanto altos falantes executavam a melancólica e bela melodia, um telão descido do teto projetava rostos dos soldados mortos na guerra Irã-Iraque (1980-1988) e imagens das conquistas tecnológicas do país, mas sem menção explícita ao programa nuclear.
Como esperado, a primeira pergunta, formulada por uma jovem repórter iraniana, foi sobre a crise cambial. Era o início de uma apaixonada, aguerrida e às vezes raivosa autodefesa de Ahmadinejad, propalada pela linguagem direta dos que não têm mais nada a perder. Ao longo de mais de duas horas e meia, o presidente disparou críticas e atropelou a posição oficial do Estado sobre vários temas.
Ele admitiu que as sanções estão, sim, fazendo muito mal ao país ao impedirem a entrada de moeda estrangeira. Mas ele culpou tantos as potências ocidentais quanto os inimigos internos que, segundo ele, manipulam o câmbio para minar seu governo: “Há um grupo de pessoas que consegue alterar a cotação mediante simples telefonema”.
Ahmadinejad atacou seu arqui-inimigo Ali Larijani, presidente do Parlamento, que o acusou dias atrás na imprensa de ser responsável por 80% dos problemas econômicos nacionais ao supostamente abusar de programas sociais e obras faraônicas: “Ele deveria pôr a mão na massa e ajudar em vez de dar entrevistas”.
Ahmadinejad riu algumas vezes, fez piada com jornalistas que tentavam furar a fila das perguntas e mostrou-se disposto a responder tranquilamente todas os questionamentos sem tabu. O clima era o de uma conversa informal, zero cerimônia. Mas o homem parecia mesmo nervoso, gesticulando muito e falando freneticamente, na contramão do jeitão sereno ostentado em entrevistas na TV. O presidente queria mesmo era acertar as contas.
Outros disparos contra rivais:
“Fazemos reuniões importantes para tentar resolver os problemas do país. Concordamos e planejamos várias coisas, mas logo na saída dos encontros algumas pessoas aproveitam o primeiro microfone para detonar o que foi acertado.”
“[Alguns setores] parecem estar jogando contra e não entendem que é preciso acompanhar as decisões do governo.”
“Quando tudo vai bem, todo mundo quer crédito. Quando há problemas, só eu tenho culpa.”
“Quando fui prefeito de Teerã, um juiz mandou cortar algumas árvores para construir um prédio, e eu fui muito criticado por isso. Hoje vejo muitas árvores cortadas sem que ninguém reclame do atual prefeito.”
“Só eu recebo tantas críticas. Imaginem como reagiriam outras pessoas se sofressem os mesmos ataques. Eu não ligo, deixo falar o que quiserem a meu respeito, desde que na prática trabalhemos juntos na mesma direção.”
“Se não me quiserem mais, então escreverei apenas uma linha para dizer: ‘Adeus'”
Houve também arriscados posicionamentos políticos.
Sobre a prisão do seu assessor de imprensa e o fechamento de um jornal por supostas ofensas ao Estado: “O que foi ordenado pelo Ministério da Cultura e Orientação Islâmica foi um erro. A tolerância e a liberdade devem ser absolutas.”
Sobre as constantes críticas ao seu governo formuladas pela agência de notícias Fars, supervisionada pela elite militar: “Uma certa agência de notícias relacionada aos órgãos de segurança deveria parar de atacar o governo que a financia”. Um repórter da Fars rebateu as críticas, iniciando um bate boca cheio de sarcasmo com o presidente.
Sobre pedidos de setores ultraconservadores por regras mais rígidas no uso do véu: “As mulheres iranianas são as mais puras do mundo, é preciso confiar nelas para que usem o véu como bem entendem”.
Sobre a liberdade em geral: “Somos uma grande nação milenar, e podemos conviver muito bem com diferenças de opiniões e ideias. Ninguém deve impor sua visão.”
Claro, houve também os esperados ataques aos EUA e Israel, mas foi quase tudo mais do mesmo, com a exceção de uma frase sobre o Estado judaico que chamou minha atenção. “Se [Israel] se comportar como um bom menino, talvez consiga um lugar [na região]”. Soou como um possível recuo na sua posição tradicional que consiste em descartar de forma irrestrita e absoluta a existência do Estado judaico.
Na manhã seguinte à entrevista, protestos irromperam pelo centro de Teerã contra a crise econômica. A ira esteve claramente voltada contra o presidente. Houve tropa de choque nas ruas, pancadaria e algumas prisões. O presidente do Parlamento teve que cancelar planos de chamar a imprensa para responder a Ahmadinejad. Há quem diga que os protestos foram orquestrados pelos rivais do presidente para fomentar a desordem.
O Irã vive dias agitados.
Parabéns Samy por outra bela e ilustrativa matéria. Política no Irã não é para amadores!
“Somos uma grande nação milenar, e podemos conviver muito bem com diferenças de opiniões e ideias. Ninguém deve impor sua visão”. Ué, então por que mesmo as prisões estão cheias de opositores e até de jornalistas que só estavam fazendo o seu (digo) trabalho? Por que mesmo que dezenas de jovens foram sacrificados na ponta de uma corda apenas por pensarem diferente e por lutarem na defesa de seus ideais? Balela! Mentiroso de uma figa!
Minha Nossa!!! Depois dessa matéria consegui até ver uma aura de santo sobre a sacra cabeça do Ahmadinejad!!! São Mahmud… soa meio diferente mas é absolutamene adequado para a amorável figura objeto da matéria. Ao dizer que as mulheres têm que ser deixadas à vontade, sem sofrer aporrinhações por conta do véu, ganhou meu coração e o meu voto, com toda certeza. E por fim, o fato de, tão generosamente, conceder o direito à existência a Israel se tiver o comportamento de um bom menino … ah, essa magnanimidade tão extrema emocionou-me tanto que fui levado a lágrimas incontidas!
Samy, gostaria de pedir que você escrevesse um dia mais detalhes sobre como é essa divisão de poder no Irã entre presidente e líder supremo. Vejo muitos comentários gerais sobre como “o líder supremo é o mais importante” mas pouco detalhes sobre como funciona. A única coisa que eu sei é que ele comanda a guarda revolucionária além de alguns poderes de vetos. Mas, por exemplo, quem fraudou as eleições presidencial de 2009 (se houve fraude)? Quem mandou a polícia pra cima dos manifestantes? Quem os mandou para prisões onde foram espancados? Enfim, que é “o ditador”?
Samy, a interdição à internet (total), se acontecer, vai prejudicar o seu trabalho?
Edison, o mais provável é que a tal internet local seja paralela à internet global, ninguém aposta de verdade numa exclusão da rede mundial, isso seria um desastre inclusive para a economia. Por isso não estou muito preocupado.
Samy, ler seus textos é, para mim, um ótimo momento para conhecer outras visões. Não sou muçulmano, mas compartilho do pensamento de muito leitores da folha, que afirmam que temos no oriente irmãos, independentemente de suas religiões, e não demônios, como pregam tantas vezes, nossos meios de comunicação de massa. Em todos os lugares do planeta, sempre teremos pessoas boas e ruins, seja lá o que isso signifique para cada um, e no Irã, assim como no Brasil, não poderia deixar de ser diferente.
Entretanto, vejo o Irã como uma nação de vencedores, pois, mesmo com todas as dificuldades oriundas de sansões e mais sansões, a vida prossegue com grau de satisfação popular, parece-me daqui, até melhor do que o nosso aqui no Brasil, em determinados momentos. Convido-o então a, em algum momento de seu trabalho, traçar um comparativo entre costumes, dificuldades e facilidades na vida de nossos dois países: Irã e Brasil. Felicidades e sucesso em seu trabalho.
É… “tem sansões e mais sansões”, mas nunca esqueça que para cada Sansão sempre haverá uma Dalila.
Concordo com a Evelyn, jamais imaginaria que o Ahmadinejad teria um temperamento desses. O que mais me impressionou mesmo foi ele ter dito “Somos uma grande nação milenar, e podemos conviver muito bem com diferenças de opiniões e ideias. Ninguém deve impor sua visão”. Se formos analisar só pelo que pintam as “notinhas internacionais” da TV, por exemplo, jamais atribuiríamos essa visão ao presidente iraniano.
Adorei o relato, Samy. Tenho acompanhado seu blog desde o início, sua visão e seus textos são muito interessantes, parabéns!
“Ninguém deve impor sua visão”, mas tem uma prisão especial só para os contrários políticos dele, com solitária, a cadeia ainda tem sindicalistas e jornalistas presos desde a primeira passeata que fizeram contra a fraude eleitoral, a passada, e outras pessoas que são candidatos a presidência estão em prisão domiciliar. Mais um parlapatão que fala para galera de ignorantes se sentirem impressionados com as palavras, mas na real a coisa é outra. Por que não enxerga a diferença entre o discurso e a prática?
Edison. Baseado neste seu posicionamento, todos os chefes de estado da historia serão considerados parlapatões (não conhecia esta palavra), pois todos usam de alguma maneira destes métodos. E não me venha dizer que no ocidente, nos estamos livres disso. Aqui no Brasil temos uma liberdade de pensamento que chega a ser incomoda as vezes. Mas isto não acontece, por exemplo, com nossos ‘chefes’ ocidentais. EUA e Guantanamo, Reino
Unido e Jean Charles. Mas, penso que o irã esforça-se, a seu modo milenar, como disse o presidente, para ser um lugar melhor.
Lula foi outro parpalatão de primeira.
O que eu disse é que muitos ainda se autoenganam com as palavras dessa gente e esquecem de fazer o básico, que é olhar para a realidade e ver se “fecha”. E se outros fizeram, isso não é desculpas para ele mentir dizendo que está “tudo bem” e não está.
O Irã se esforça? kkkk…
Ele está deixando? As mulheres concordam com a contínua perseguição nas ruas porque está usando um batom que não deveria?
Os presos politicos que querem mudar o Irã para melhor estão sendo permitidos falarem e participarem das eleições?
As pessoas conseguem acessar a internet e as redes sociais livremente?
Ele está promovendo liberdade de expressão e política para que todos possam, mostrando as diferenças, tentar melhorar o país?
Viu como você também faz um discurso favorável a ele que não é real? Por que? Qual é o seu interesse?
Ele está fazendo esforços em causa dele, na crença antisionista que defende, ele quer colocar fogo no mundo à qualquer custo, do alto custo do próprio bem estar da sociedade dele. Isso é coisa de mente doente.
Excelente matéria!
Tem razão. A matéria é excelente, mas precisamos de um pouco de crítica também, né? Ou vamos acreditar em tudo isso sem nada questionar? Já que o articulista fez apenas uma descrição, penso que pretendeu dar-nos uma oportunidade para o questionamento, não acha?
Gostei muito da matéria! Mostrou-me um Ahmadinejad totalmente diferente do que a mídia costuma mostrar.
Fico realmente triste com a situação economica do Irã, e de outros paises que passam muitas dificuldades por terem governos sem muita competencia para gerir a sério sua economia, Um país que é o 5º maior exportador de petroleo do mundo não poderia ter uma população passando tantas dificuldades. Recentemente vi um documentário sobre as pessoas que mandam cartas para o presidente Ahmadinejad , e da pra perceber que uma grande parcela da população passa sérias dificuldades financeiras, triste de ver uma mãe chorando , dizendo que teve de economizar duas semanas para poder comprar morango pro filho. A inflação crescente pune a camada mais pobre da população. Acho que o documentário é da época da reeleição de Ahmadinejad e as dificuldades permanecem. Não sei se o Irã planeja realmente construir bombas atômicas , mas se for verdade seguirá o mesmo caminho do Paquistão que tinha o famoso lema ” comeremos grama e folhas por mil anos, mesmo ficando com fome, mas nós também construiremos a Bomba”. E construiram.