Pobre Afeganistão
24/09/12 13:36Após uma semana de imersão no caótico, perigoso e insalubre Afeganistão, onde fiz uma série de reportagens para a Folha, voltei a Teerã com a sensação de estar desembarcando em Zurique ou alguma outra metrópole de primeiro mundo. Aeroporto com painéis eletrônicos, autoestrada impecável e iluminada, ruas limpas e floridas, prédios reluzentes, comércio moderno, mulheres com rosto à mostra… o Irã, apesar dos numerosos e graves problemas, é uma ilha de estabilidade e razoável desenvolvimento numa região marcada por guerra e miséria.
O contraste saltou aos olhos logo que o Airbus da empresa iraniana Mahan Air pousou em Cabul, numa recente manhã de sábado. Sentado na janela, vi dezenas de aviões militares americanos, de todos os tipos e tamanhos, estacionados em frente a imponentes hangares. Surgidos do nada, dois helicópteros de combate Apache aterrissaram lado ao lado. Ao sair do aeroporto, enxerguei, parado no céu, um dos zepelins brancos usados pela CIA para monitorar Cabul. Esse cenário jogou na minha cara, ainda entorpecida de sono por ter saído de casa muito cedo, que eu estava a partir de agora numa zona de conflito.
A capital afegã tem esgoto a céu aberto e montanhas de lixo por toda parte. Um dos lugares mais imundos é o ressecado leito do rio que corta a cidade, hoje um lixão cujo cheiro embrulha o estômago. Me peguei pensando em como beiraria o ridículo a ideia de consciência ambiental num lugar onde nem a capital tem uma verdadeira rede de canalizações. Cuspir no chão e urinar onde der são práticas comuns _para os homens, obviamente.
Também refleti sobre o non-sense que seria cobrar dos afegãos que respeitem regras do trânsito ou até mesmo que tirem carteira de motorista, algo quase inexistente. As ruas, cobertas de buracos até nos bairros onde moram os ricos, não têm sinalização nem faróis nem postes de iluminação. Como se não bastasse, há valas abertas no meio e nas laterais das avenidas, imagino que para canalizar a lama em dias de neve e chuva. A capenga e antiquíssima perua Mazda do meu guia local caiu feio numa dessas valas, da qual só saiu graças a um grupo de jovens que nos ajudou a literalmente carregar o carro de volta para o asfalto. Três décadas de guerra (invasão soviética; guerra contra os soviéticos; guerra civil; invasão americana) deixaram o país sem a mínima estrutura ou produtividade econômica perene.
Claro, nem tudo é tão precário. Há prédios novíssimos e muitos comerciantes dizem estar fazendo bons negócios graças à injeção na economia afegã de bilhões de dólares em ajuda internacional. Condomínios de luxo estão em construção, telefones celulares e internet funcionam bem. De noite, enormes prédios brilham com neons coloridos anunciando “wedding halls”, pavilhões alugados para os casamentos das famílias mais abastadas, o chique do chique na aristocracia local.
Já que o Afeganistão, na sua condição de país ocupado, abriga muito mais expatriados ocidentais que o Irã, é natural que o nível dos hotéis e restaurantes voltados para gringos em Cabul seja bastante superior ao de Teerã. Numas dessas bolhas onde os estrangeiros se escondem da realidade afegã, comi um extraordinário cheese-burguer com batata frita, sonho que até hoje não consegui realizar em terras iranianas.
Mas fora desse circuito trilhado por afegãos bem de vida e trabalhadores estrangeiros, a realidade é terrível. Três quartos da população não sabe ler. Serviços públicos são pavorosos. A expectativa de vida da mulher afegã não chega a 42 anos de idade, ou seja vinte anos a menos que a média mundial. Milhares de pessoas que fugiram da violência no interior vivem amontoadas em condições desumanas em acampamentos nos arredores da capital. Pior de tudo é o fato de serem cidadãos comuns as maiores vítimas da guerra. Morrem a cada ano às centenas em atentados dos rebeldes Taleban e ataques por parte das forças americanas e aliadas.
Os EUA prometem retirar suas tropas até o fim de 2014, entregando ao governo afegão o controle pela segurança do próprio país. França, Reino Unido, Alemanha e demais países também levarão seus soldados de volta para casa. Mas ninguém pode sustentar em boa fé que a vida dos afegãos irá melhorar no curto ou médio prazo.
Do outro lado da fronteira oeste do Afeganistão reina o grande e poderoso vizinho persa. Movida a petrodólares, a República Islâmica do Irã permanece na lista das 20 maiores potências econômicas mundiais, apesar de estar há três décadas sob sanções comerciais e financeiras. Sim, há muitos iranianos na pobreza, mas o país tem vários bons indicadores a seu favor. Não é à toa que o Irã é o destino preferido dos refugiados afegãos que fogem da guerra.
A taxa de analfabetismo entre iranianos é muito baixa. A estrutura social assemelha-se em alguns aspectos à realidade de países europeus _alto nível de instrução, elevada expectativa de vida, baixa natalidade, muitos divórcios. O nível do ensino, universitário principalmente, enche de orgulho até os mais ferozes opositores. Mulheres trabalham, dirigem, estudam, batem boca com a polícia e podem pedir divórcio. As iranianas por lei cobrem o cabelo, mas aqui não existe a burca, aquele indizível pano que cobre o corpo todo, deixando apenas uma grade de tecido na altura dos olhos. A burca no Afeganistão deixou de ser obrigatória, mas é difícil uma mulher que não a use, principalmente fora de Cabul. São raras as afegãs inseridas na vida acadêmica ou profissional.
Os problemas do Irã são outros.
Hoje, por exemplo, a internet amanheceu ainda mais restrita. O governo admitiu ter censurado o Gmail e até o Google, em meio a planos de criar uma internet nacional, cortada do mundo em nome da preservação da segurança nacional. O Irã pode até não ter criminalidade nem sequestros, mas continua com vans da polícia moral em quase cada esquina. Os reformistas, principal força opositora, foram reduzidos ao silêncio. Dias atrás, o governo jogou na prisão a filha do bilionário aiatolá e ex-presidente Ali Akbar Hashemi Rafsanjani (1989-1997) por ter criticado a situação de direitos humanos no país. Na noite de hoje quem foi para a cadeia é um filho de Rafsanjani, sob acusação de ter fomentado protestos antirregime após a controversa reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad, em 2009.
Samy, gostaria que voce escrevesse mais por mes.
Samy, gostaria de ler mais cronicas suas por mes.
O ditador desse belo país não vai fechar a internet até o final do ano?
em tempo.. estou falando do Irã…
Você entao está acessando a página da Folha ou do UOL de dentro do Ira?
Estou querendo saber se é verdade porque isso vai atrapalhar o Samy, não vai? Como ele pensa em enviar a informação? Por carta? Por telégrafo? Fax? … rsrs..
Por que a maioria dos países islamicos, são ditaduras???
ISTO porque voce não entrou com biblias, ao contrário, voce seria decapitado ou queimado vivo!!!!
Não é crime ser cristão em país islâmico algum. Alguns proíbem a conversão ou o proselitismo, mas nenhum proíbe o fato de você ser cristão. No Irã há até cadeiras reservadas no parlamento para os cristão. A proporção de cadeiras é maior que o de cristão na população.
O Irã não é uma ditadura –‘
Esse texto me lembrou que apenas a Síria, do governo de Bashar Al Assad, recebeu refugiados cristãos do Iraque, depois da invasão em busca das “armas de destruição em massa”, nunca encontradas, porque eram um pretexto mentiroso. Nenhum outro país da Europa ou o próprio responsável pela invasão criminosa, EUA, ficou com sequer um iraquiano cristão. Não me lembro de ter visto na imprensa brasileira notícias sobre como viviam esses refugiados na Síria.
Seus comentários estão obviamente factualmente errados, já que você teve a audácia de dizer “os EUA ficou com sequer um iraquiano cristão”. Mesmo supondo que você usou licença poética, na verdade a Jordânia também recebeu bastante refugiados, quase tanto quanto a Síria. Normalmente são os refugiados que escolhem o país e não o contrário.
Nao debato em internet, mas para esclarecer algum leitor desavisado, sobre a acolhida dos cristãos iraquianos por Bashar Al Assad segue uma das várias fontes da informação factual:
“Hoje, mais uma vez, observamos guerras sectárias no Oriente Médio. Os cristãos iraquianos, aliados de Saddam Hussein, precisaram fugir depois da queda do ditador.
Apenas a Síria os recebeu, enquanto outros países fecharam as portas e os EUA os ignoraram.
Agora, estes cristãos e também os sírios de origem cristã são associados ao regime de Bashar Al Assad. Se ele cair, sofrerão.”
http://blogs.estadao.com.br/gustavo-chacra/papa-chega-ao-libano-o-ultimo-oasis-cristao-no-mundo-arabe/
Não tenho dados específicos (PIB; população, por ex) do Afeganistão e Irã, mas acho que essa é mais uma pequena amostra que a última coisa que essas invasões fazem é trazer benefícios ao país.
Após a invasão norte-americana o PIB per capita do Afeganistão dobrou. Não é por causa dessa invasão que o Afeganistão é muito mais miserável que o Irã.
O PIB per capita dobrar não significa nada. O Índice de Gini provavelmente piorou drasticamente.
Samy,
Tuas crônicas, além de belas, continuam a ser, para os leitores brasileiros, o melhor antídoto contra informações tendenciosas veiculadas pela grande imprensa internacional. Aguardo a publicação do livro.
Caro Samy, como sempre, bela reportagem, as vezes me pergunto, como pode tudo isso acontecer? Como você descreveu, quem sofre mesmo são os civis, se eu visse tudo isso, acredito que eu faria o possível para apagar de minha memória.
Shamy,
Se por um passe de mágica você fosse obrigado a se mudar pro Afeganistão e abrir um negócio lá para ganhar a vida. Que tipo de negócio abriria?
Difícil responder, João. O negócio mais viável hoje no Afeganistão é, ao que parece, descolar algum contrato com governos, empresas ou ONGs estrangeiras.
Ou seja, nada muito diferente do Brasil : )
Você precisa se informar mais, hein.
No Brasil, fazer contratos com o governo e ONG´s é uma boa oportunidade de negócios. Sejam eles lícitos ou não. Dai a minha piada.
Recomendo que o Samy plante papoula. Ficará milionário.
O negócio mais pujante no Afeganistão do ditador Karzai é a produção de ópio. Os próprios americanos chamam a economia local de narco-economia. O talebã havia praticamente erradicado a produção de ópio nas áreas que controlava, uma sábia decisão já que apenas 12% das terras afegãs são adequadas a produção de alimentos. Por esta ação recebeu US$ 2 milhões da UN Office of Drug Control and Crime Prevention para continuar a combater a produção. Com a derrubada do regime talebã a produção de ópio do Afeganistão explodiu e atende 92% do mercado mundial. Só uma província afegã é responsável por 47% da produção mundial.
Recomendo uma matéria sobre o combate ao tráfico de drogas no Irã não se esquecendo de mencionar as punições aos criminosos.
Samy, tenho muito interesse em visitar o Afeganistão. Você contactou o guia ainda no Irã? Foi por agência de turismo local? Visitou apenas Cabul ou saiu para outras cidades? Há monumentos históricos no país e regiões geográficas interessantes para se visitar? Não pude ler as matérias que publicou na versão escrita.
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É verdade que o Talebã é sunita e inimigo do governo do Irã?
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Muito interessante a comparação entre a condição da mulher nos dois países. Quando estive no Irã, vi algumas mulheres andando à frente de seus maridos, que, bem calmos atrás, levavam as crianças nos braços ou de mãos dadas. E muitas dirigindo, enquanto os marmanjos estavam do lado. Em vários casos, automóveis somente com mulheres, conversando e rindo, igual ao Brasil. Dentre estas, algumas com chador, outras com hejab, inclusive com ele lá para trás. Foi aí que percebi as mudanças na sociedade.
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Como Ahmadinejad está em fim de mandato, muito desacreditado internamente, as eleições de abril serão uma ótima oportunidade para os reformistas voltarem ao poder. Quem sabe, até um Khatami.
José Henrique, como eu disse no texto, fui a trabalho, fazer reportagem, não foi uma viagem a turismo. Estive em Cabul e Herat, esta sim, uma cidade segura, limpa e com potencial turístico. De fato, o Taleban é inimigo jurado do Irã, mas analistas dizem que os inimigos se juntaram contra os EUA. É um dos temas que abordei nas reportagens impressas.
Samy
Lembra-se do assassinato dos diplomatas iranianos em 1998 pelo talebã?
Lembra-se que o Irã ameaçou o Talebã com uma expedição punitiva similar a feita pelos EUA contra o México atrás de Pancho Vila??
Adivinhe quem ameaçou o governo iraniano para não fazê-lo dizendo que não toleraria tal ação??
Pobre Afeganistão. Triste esta situação, anos em guerra deixaram o páis totalmente destruido, e ao que parece a reconstrução está sendo a passo de tartaruga. Os refugiados afegãos no Irã vivem em situação melhor do que os que continuam no Pais ?
André, muitas vezes os refugiados afegãos deixam tudo para trás, fugindo com a roupa do corpo. A vida no Irã não é fácil, inclusive por causa do preconceito de alguns iranianos e dos relatos de abusos por parte de empregadores sem escrúpulos. Mesmo assim, o governo de Teerã dá aos afegãos a possibilidade de trabalhar e de ter acesso a saúde e educação. Muitos afegãos acabam voltando para seu país de origem com alguma formação e com mais disposição de levar uma vida urbana, não mais rural. As mulheres afegãs, pelo que pude observar, são as principais beneficiadas pela estrutura fornecida pelo Irã, já que no Afeganistão a pressão social as impede de estudar.