Khomeini, Carrefour e Sarkozy
12/06/12 16:12Uma das únicas ruas de Teerã com nome ocidental é a Neauphle-Le-Château, no centrão caótico e poluído. A via, que abriga a centenária embaixada francesa, ganhou essa denominação após a Revolução Islâmica de 1979, como homenagem à França por ter abrigado o aiatolá Ruhollah Khomeini, então perseguido pelo xá Reza Pahlevi. Neauphle-Le-Château é o nome do vilarejo a leste de Paris onde Khomeini e seus assessores passaram parte do exílio antes da volta triunfal ao Irã para comandar a revolução.
França e Irã têm longa tradição de afinidade e interesses comuns, apesar de alguns momentos tensos, especialmente nos últimos anos.
Em poucos lugares o recente fracasso do direitista Nicolas Sarkozy para se reeleger à Presidência francesa foi tão festejado quanto em Teerã. Sarkozy não só aboliu a histórica distância regulamentar da França em relação a EUA e Israel, virando íntimo dos arquiinimigos do Irã, como também foi um dos maiores defensores da pressão linha dura contra o programa nuclear iraniano. Sarkozy é tido como um dos principais responsáveis por torpedear um salutar acordo sobre o dossiê nuclear iraniano costurado por Brasil e Turquia em 2010, que selava as bases de negociações mais amenas de ali em diante. As últimas sanções da União Europeia contra o Irã estão entre as mais duras já impostas a um país.
Na era Sarkozy, o comércio bilateral e o investimento francês no Irã despencaram, minando os gordos lucros de empresas como Total, Carrefour, Peugeot e Renault na República Islâmica. Representantes destas companhias apresentaram reiteradas queixas às autoridades francesas, atreladas ao que o jargão diplomático chama de “agenda negativa”.
Segundo relatos de bastidores, a França irritou até a aliada Alemanha, partidária de uma abordagem menos agressiva em relação ao regime iraniano.
Os iranianos obviamente ficaram furiosos. Em 2009, acusaram a Embaixada da França em Teerã de fomentar a onda de megaprotestos contra a reeleição supostamente fraudulenta do presidente Mahmoud Ahmadinejad. Depois disso um jornal pró-regime chamou a então primeira dama Carla Bruni Sarkozy de “prostituta” por ter defendido Sakineh Ashtiani, a mulher condenada à morte ao apedrejamento por adultério e por ter matado o marido _a pena não foi aplicada.
O Irã estava amargurado com a guinada de Paris. Afinal, o antecessor imediato de Sarkozy, Jacques Chirac, estendera duas vezes (em 1999 e 2005) o tapete vermelho para o então colega iraniano, Mohammad Khatami. Tudo bem que Khatami carregava a áurea de reformista e expoente do diálogo das civilizações criado para diluir as tensões identitárias alimentadas pelo 11 de Setembro. Mas o presidente era também um puro produto da teocracia iraniana, famoso pela retórica anti-Israel e por esmagar protestos estudantis.
O início dos anos 2000 foi uma época excepcional na relação bilateral, impulsionada por uma parceria econômica abençoada para empresas francesas. Em 2003, Chirac fez um baita agrado aos iranianos ao ordenar uma batida policial contra os terroristas do MKO, grupo dissidente iraniano que operava a partir de uma base nos arredores de Paris. Em 2004, a Air France retomou em grande pompa os voos diretos para Teerã, suspensos havia sete anos.
Eram tempos em que a elite iraniana podia beber sem culpa na fonte cultural e intelectual francesa. Iranófilos e iranalógos franceses desembarcavam aos montes nas cidades do grande país persa.
Mas Chirac cedeu o lugar ao desafeto Sarkozy, o linha dura revisionista Ahmadinejad assumiu a Presidência iraniana e o impasse nas conversas nucleares deixou todo mundo com os nervos à flor da pele. A Air France voltou a interromper os voos para Teerã.
E cá estamos, num momento pra lá de tenso, com negociações árduas entre o Irã e as grandes potências, França inclusive, para tentar evitar mais uma guerra no Oriente Médio.
Ninguém espera que a saída de “Sarkô, o americano”, como era chamado por diplomatas de Washington, irá resgatar de uma hora para outra a idade de ouro nos laços entre a República Islâmica e a República Francesa. Até porque o governo de Hollande já disse que se opõe à ideia da Rússia, defendida pela ONU, de convidar o Irã para uma conferência sobre o conflito na Síria, já que Teerã é um dos sustentáculos do regime de Assad. O Irã por sua vez tem trauma dos socialistas franceses já que o então presidente François Mitterrand bancou e armou o Iraque de Saddam Hussein no ataque ao Irã nos anos 80.
Mesmo assim, há quem enxergue uma possível distensão. Um dos sinais encorajadores é a recente viagem a Teerã do ex-premiê Michel Rocard, um peso pesado do Partido Socialista francês, velho conhecido de François Hollande. Rocard foi recebido por dois figurões do regime: o chanceler Ali Akbar Salehi e o negociador chefe do programa nuclear Saeed Jalili. A imprensa iraniana, eufórica com a visita, garante que Rocard foi a Teerã como emissário de Hollande, o que foi negado pela Presidência francesa. Difícil saber a verdade, mas é improvável que alguém do cacife de Rocard tenha viajado sem ao menos o aval do presidente.
Também se sabe que o novo chanceler francês, Laurent Fabius, é assessorado por diplomatas experientes sem agenda ideológica, muito menos anti-Irã. A Embaixada da França em Teerã, que nunca deixou de funcionar apesar dos sobressaltos, torce para a melhora geral dos laços.
A curto prazo, o mais provável é uma mudança de tom das duas partes _menos ataques verbais, mais frases de conciliação, mais propensão ao diálogo e, talvez, um resgate do diálogo político bilateral. Na verdade muito vai depender das negociações nucleares, que terão um capítulo decisivo em Moscou na próxima semana. Segundo pessoas envolvidas no dossiê, um acordo entre o Irã e as potências levaria rapidamente a uma normalização, com retomada do comércio e das visitas bilaterais. Há muita gente em Paris e Teerã torcendo para que a velha amizade seja retomada.
Acho ótimo a gente poder ter a visão do Iran por meio de um brasileiro que reside la, pois por aqui sempre só aparecem as versões manipuladas do quartel general da midia mundial (NY).
Mesmo a distancia eu admiro o Iran pois foi um dos poucos paises que teve coragem de encarar os EUA de frente. Valeu Iran.
Samy, esse post foi ótimo, cheio de retrospectivas históricas, diminuindo minha vasta ignorância sobre o assunto.
Fiquei decepcionado com Mitterrand, ao saber que ele apoiou Saddam Hussein, quando ele invadiu o Iraque.
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Naquela guerra, o Iraque usou armas químicas, vendidas pelos EUA, o que gerou uma quantidade enorme de vítimas de câncer no Irã, muito superior à média dos outros países. Ao que soube, o Irã também recebeu a proposta de compra desse tipo de armamento dos EUA (seria a fonte de dinheiro para os terroristas “contras” na Nicarágua), mas teriam se recusado a usá-las. Isso é verdade?
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Eu gostaria de ler alguma coisa sobre esses pacientes de câncer no Irã, pois eles são sempre esquecidos no noticiário comum e o Irã necessita muito de isótopos radiotativos para radioterapia. Parece que pediram aos EUA para fornecê-los, em troca de não enriquecerem o Urânio necessário, mas os EUA teriam se recusado!!! Obrigado.
Corrigindo: “quando Saddam Hussein invadiu o Irã”; “isótopos radioativos”
José Henrique, publiquei há algumas semanas na versão impressa uma ampla reportagem sobre a produção de isótopos e a medicina nuclear no Irã. Está disponível na parte do site reservada a assinantes.
Samy, obrigado. Vou procurar. Abraço
muito bom o texto, parabéns Samy! Só vale recordar que o nome da rua na verdade é Nofel Leshatô, ou نوفل لو شتو
Das duas, uma: ou EUA, França e todos os demais portadores de artefatos nucleares os destroem, ou qualquer outro país que adquira a tecnologia irá querer produzi-los.
Ei samy,legal vc escrever sobre shiraz e outras cidades iranianas na ultima reportagem.Vou ter de voltar aí para conhece-las.Achei Isfahan a cidade mais bonita que já vi.Vc de alguma forma ajuda as pessoas aqui a entenderem que o Irã não é esse país “terrorista”,cheio de ‘homens-bombas’,esteriotipado pela mídia judaica ocidental,inclusive a sua folha.
Bem de qualquer forma abraços e boa sorte aí no Irã. Julio
O acordo nuclear entre Brasil, Turquia e Irã não tinha nada de salutar. Foi só mais uma tentativa de ganhar tempo por parte do Irã e mais uma molecada do Itamaraty.
Aquela correspondência diplomática americana que o governo Lula vazou para a Folha indicava condições de acordo com certo estoque de urânio enriquecido. O acordo feito era de acordo com essas condições, mas quando o estoque de urânio iraniano já era bem maior. O estoque iraniano continuaria alto, acima do limiar desejável. E foi por isso que nenhum país caiu no truque.